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O homem social está envolvido por um meio ideológico vivo e complexo, repleto de materialidades sígnicas das mais diversas: “de palavras realizadas nas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e outras; de afirmações científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim por diante” (MEDVIÉDEV, 2012, p.56). Esse meio ideológico que envolve o homem densamente é “a consciência social de uma dada coletividade, realizada, materializada e exteriormente expressa” (MEDVIÉDEV, 2012, p.56). Num dado período da história, a consciência social, que é determinada pela existência econômica, manifesta-se por diferentes discursos que constituem o “espírito” de uma dada época.

O “espírito da cidadania global”, o “novo espírito do capitalismo”, o “espírito da Globalização”, todos esses e ainda outros (componentes da novlangue ou new speech) que poderíamos levantar aqui vão convergindo no atual período para o espírito da competitividade. Ele é, ao mesmo tempo, motor e base para o funcionamento e para a organização desse mundo globalizado em grande medida. As repetições de padrões fabulosos de enunciados que vão propagando a bondade de todas as medidas e de todos os processos homogeneizadores de globalização não passam de complexos exercícios de fabulações, essenciais à existência e manutenção de uma perversidade sistêmica, que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade e que tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas (SANTOS, 2013, P.20).

Entrecruzadas e interpenetradas pelo “espírito” de competitividade, que não é um espírito, mas uma materialidade, uma realidade concreta, as relações sócio-históricas vão se constituindo de modo que incorporam esse espírito e o alimentam em nome dos processos de organização atual do mundo. Esse contato da organização e do funcionamento do mundo com os discursos da competitividade não é um contato simbólico, mas se dá num espaço e num tempo. As relações que se constroem, então, são relações de cronotopos com cronotopos, intermediadas pelas materialidades discursivas e ideológicas de um espaço-tempo de globalização.

Nesse espaço-tempo global, o estudo da palavra como signo ideológico é um estudo também revelador do espírito de uma época. Não só revelador, mas construtor desse espírito. A Globalização é uma construção, uma produção, uma elaboração humana. Assim também o é a competitividade. Sem as fábulas e mitos produtores desse período histórico, ele não existiria (SANTOS, 2013, p.43). Entre as fabulações mais recorrentes que constituem esse período globalizado, Milton Santos apresenta: 1) o mito da aldeia global, ligado à ideia de comunicação, agora possível em nível planetário (no entanto, “a informação sobre o que acontece não vem da interação entre as pessoas, mas do que é veiculado pela mídia, uma interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos” (SANTOS, 2013, p.41)); 2) o mito do espaço e do tempo contraídos, creditado aos prodígios da velocidade (“Só que a velocidade apenas está ao alcance de um número limitado de pessoas, de tal forma que, segundo as possibilidades de cada um, as distâncias têm significações e efeitos diversos e o uso do mesmo relógio não permite igual economia de tempo” (SANTOS, 2013, p.41)); e 3) o mito da humanidade desterritorializada, somado à ideia de uma cidadania universal, sob a justificativa do desfalecimento das fronteiras, (mas as fronteiras “nunca estiveram tão vivas, na medida em que o próprio exercício das atividades globalizadas não prescinde de uma ação governamental capaz de torná-las efetivas dentro de um território” (SANTOS, 2013, p.42)). Esses discursos produzem e reproduzem uma época, o que se diz sobre ela, o modo como se olha para ela e o modo como se age nela.

Os mitos e as fábulas não são, no entanto, os únicos discursos que entrecruzam a base material da sociedade. Há infinitas possibilidades discursivas, mas a hegemonia se constitui a partir de processos dentro de toda a complexidade do funcionamento dessa base na relação com os discursos. Essa inter-ligação dos padrões enunciativos com os padrões de comportamento é estudada por Augusto Ponzio, que, a partir da leitura de Rossi-Landi,

apresenta as programações sociais comportamentais em três dimensões, sempre co-presentes: “1) os modos de produção (forças produtivas e relações de produção); 2) as ideologias; 3) os programas da comunicação verbal e não-verbal que atravessam os sistemas sígnicos” (PONZIO, 2007, p.327). E para compreender como, então, a partir dessas programações as hegemonias se constituem, retomo as palavras do autor, segundo o qual a situação de hegemonia e de poder é melhor exercida por quem exerce o maior controle sobre o sistema geral da comunicação.

Hoje se percebe claramente que a classe dominante não é aquela que é dona de coisas e nem tampouco aquela que é proprietária de meios de produção, mas aquela que controla setores amplos da rede da comunicação, através das quais se realizam a produção e a cotação das coisas humanas. […] Na atual fase do sistema capitalista, ocorre que o domínio não depende da posse de coisas, mas do controle das relações de comunicação, do controle da troca dos bens no nível do mercado e da produção. Pode-se dizer que com isso mesmo a classe dominante possui o capital, mas é mister que a expressão “capital” seja agora especificada, sobretudo como controle da comunicação. Se, de modo geral, na troca comercial o segredo da mercadoria se desvela remontando até as relações comunicativas humanas, hoje, mais do que nunca, no atual sistema capitalista, o capital é um fato sígnico (PONZIO, 2007, p.328).

O controle das relações de comunicação, o controle da troca dos bens no nível do mercado e da produção é um controle universalizador de discursos, universalizador do espírito hegemônico de uma época. E “falamos aqui em hegemonia admitindo que tal racionalidade, mesmo não sendo a única, tem a força de determinar a tendência de todas as demais formas de desenvolvimento do processo de produção material da vida na fase atual do capitalismo” (KAHIL, 2010, p.478). A produção material da vida se dá, na contemporaneidade, em diversos níveis e esferas, inclusive nos discursos, que são materialidade prenhe de vida e que, em sua cadeia infinita e inquebrável de significados, também emprenha a vida.

As hegemonias se dão, dessa forma, na repetição de padrões carregados de interesses de classes e de grupos, produzindo e reproduzindo racionalidades capazes de compor o espectro de concepções e de organização do mundo e da vida em sociedade. A ideologia compõe essas racionalidades, construindo determinada tendência social e valorativa, um determinado projeto ligado a determinado grupo social, a uma certa classe social, “com tendências que vão indiferentemente na direção da inovação, da revolução e da ciência, como também da ocultação, da mistificação e do conservadorismo” (PETRILLI, 2013, p.38).

A produção de um processo de globalização em que os sistemas técnico-científico- informacionais servem de instrumento, em comunhão com a produção de discursos que pintam um imaginário que sustente toda essa produção, também sustenta e fortalece um sistema econômico e de organização de mundo em que os que não atendem às características de um determinado tipo de identidade, criada de forma a obedecer aos ditames e às lógicas de funcionamento de uma época, são dessa lógica toda excluídos ou por ela explorados. Nas palavras de Milton Santos,

É uma forma de totalitarismo muito forte e insidiosa, porque se baseia em noções que parecem centrais à própria ideia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, e do que são os países e os lugares (SANTOS, 2013, p.45).

São discursos que apontam, em nome da liberdade e da igualdade, para uma direção, mas o que de fato se vivencia são caminhos opostos. O que nos é vendido como “liberdade de opinião” ou “liberdade de imprensa” é o que Augusto Ponzio considera a distinção essencial que se deve fazer entre “liberdade de palavra” e “liberdade da palavra”. Para o autor, é preciso que haja a possibilidade de circulação da palavra nos lugares de discurso; já que a liberdade

depalavra faz parte de uma segurança ilusória, “é também indício de demagogia secundária, baseada na qual não somente uma pessoa 'toma a palavra', a 'pretende', a 'concede', a 'dá' (Dou a minha palavra!), mas, mais ainda, a distribui, dividida, segundo um tempo igual para todos: a cada um um tempo de palavra” (PONZIO, 2010, p.19) (“Agora passo a palavra para o próximo debatedor”). A liberdade de palavra dita e mantém uma ordem, uma hierarquia, é verticalizada; a liberdade da palavra é fazer a palavra circular, é colocar junto da ideologia oficial (da manutenção da atual ordem das coisas) a ideologia do cotidiano (da ruptura, da quebra da ordem), é a palavra da Roda de Conversa, do Círculo em que as palavras não hierarquizadas circulam e movimentam a roda, uma palavra horizontalizada.

O discurso de um mundo único, globalizado, prega a liberdade de palavra em nome da democracia, da igualdade (todos têm lugar e tempo de fala), contudo, como afirma Ponzio, é uma demagogia secundária: todos têm lugar de fala dentro de uma mesma identidade. Assim também a tolerância, lembrada por Milton Santos, tolerar o outro é ainda afirmar a lógica da identidade, aqueles que não se enquadram devem ser tolerados, dentro de uma identidade de superioridade e bondade, já que “sou tão bom que sou capaz de tolerar aqueles que pensam ou agem diferentemente de mim”. É ainda afirmar que a ordem das coisas deve ser uma só, mas

que podemos “tolerar” aquilo que não a segue. O espírito da competitividade nessa época globalizada é um espírito propagador da liberdade de palavra, dentro da identidade da mais- valia universal.

E nessa lógica identitária da época globalizada, o controle das relações de comunicação e da troca dos bens, tanto no nível do mercado quanto no nível da produção, fica a cargo de agentes também hegemônicos. Essa lógica, como também outras, reflete determinadas interpretações da realidade que se refratam signicamente. Esse é o jogo ideológico que se estabelece para refletir uma lógica competitiva de uma interpretação da realidade pautada nas relações econômicas neoliberais. A ideologia é, portanto, esse conjunto de reflexos, uma vez que “Por ideologia entendemos todo o conjunto de reflexos e interpretações da realidade social e natural que se sucedem no cérebro do homem, fixados por meio de palavras, desenhos, esquemas ou outras formas sígnicas26” (VOLOCHÍNOV, 2013, p.138).

Os reflexos e as interpretações da realidade que vêm se construindo em discursos capitalistas dominantes refletem e interpretam a realidade de um determinado ponto de vista, atribuindo a ela valores de verdade, de mentira, construindo a partir dela as valorações de benefícios e beneficiários em oposição àqueles que não têm habilidade de se encaixar nesse sistema, entre outros valores que constroem a competitividade como âncora, como alvo e como a melhor (ou única) alternativa para a organização social global. Essas valorações, de certa forma, “naturalizam” determinados conjuntos de signos que são funcionais a determinadas interpretações da realidade e a determinados pontos de vista. No entanto, os pontos de vista, as valorações não são naturais, mas sociais e históricos. “E seu lugar de constituição e materialização é na comunicação incessante que se dá nos grupos organizados ao redor de todas as esferas de atividades humanas” (MIOTELLO, 2012, p.170).

A comunicação verbal constitui e materializa as diferentes interpretações da realidade e os signos verbais dela constituintes abarcam e se recobrem de sentidos funcionais a interesses de determinados grupos sociais, ora reproduzindo e mantendo como definitiva algumas interpretações, ora colocando determinadas interpretações em discussão em tentativas de subversão da ordem estabelecida. Os discursos dominantes expressam seus pontos de vista e suas valorações em tom de explicação, orientando sua argumentação a partir de uma só

26 Essa é a única definição de ideologia que se pode ler nos escritos do Círculo Bakhtiniano e está publicada no

consciência27.

Os discursos dominantes, que explicam a realidade no exercício de sua hegemonia em determinado momento da história são marcados por características que lhes são típicas. Reproduzo aqui algumas dessas características apontadas por Miotello para compor a reflexão acerca de grupos humanos que construíram poder hegemônico e os discursos também hegemônicos a partir disso produzidos:

i) a fala e a autorização da fala produtora e sempre veiculadora de sentidos vem exclusivamente do setor dominante, incluído; por obviedade, o dominador é quem também domina as narrativas; ii) esta fala pretende sempre construir um discurso de igualdade, e por

isso inclui no discurso dominante os excluídos, falando por eles e falando para eles;

iii) aparentemente também há um lugar de inclusão dos pretensos discursos dos excluídos nesse discurso hegemônico;

iv) esse discurso, por se comportar como discurso absolutamente único e monológico, visa garantir um eco permanente, universal e necessário;

v) o discurso é intermediação mais eficaz que armas para garantir dominação e subalternização, e institucionaliza o mais urgente e da melhor forma possível suas pretensões (MIOTELLO, 2005, p.272).

Para compreender essas características, Miotello olhou para discursos como o Discurso Católico na Idade Média, o Discurso do Estado nos séculos XVII e XVIII, o Discurso Industrial no século XIX, o Discurso do Mercado no século XX e o Discurso da Tecnologia nas últimas décadas do século XX.

O discurso capitalista neoliberal produzido no período da Globalização instaura a mono- lógica da identidade competitiva e ecoa de maneira universal e permanente as explicações e interpretações da realidade do ponto de vista do dominador.

Nesse contexto neoliberal, os agentes da globalização, como podemos chamá-los, regulam, mediam e conferem as relações produtivas, comerciais e comunicativas, produtoras e reprodutoras do espírito competitivo e homogeneizante da globalização. É sobre esses agentes e sobre a construção do discurso da competitividade por eles promovida que tratarei no item

27 Bakhtin faz uma distinção entre os níveis da explicação e da compreensão em “O problema do texto na

linguística, na filologia e em outras Ciências Humanas”: Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de elementos dialógicos (além do retórico-formal). Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica” (BAKHTIN, 2003, p.316).

seguinte, para compreender, um pouco que seja, a formação do “espírito” dos interesses globais. Esses discursos contribuem também para a construção do processo de Globalização como fábula contemporânea e refletem e refratam a organização e o funcionamento da sociedade contemporânea.

2.3 Os agentes da Globalização (os governos mundiais) e a construção do discurso da