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3.2 Discursos que sustentam a agricultura globalizada: diálogos entre Planos e Relatórios

3.2.1 Plano Agrícola e Pecuário 2000/2001

No Plano Agrícola e Pecuário referente ano ano-safra 2000/20001, o então Ministro da Agricultura e Abastecimento, Marcus Vinicius Pratini de Moraes, assina o texto de apresentação. Embora seja um documento oficial do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, no texto todo de apresentação o signo agricultura só aparece em dois momentos: 1) quando o nome do Ministério é citado – O Ministério da Agricultura e do

Abastecimento está ao lado do produtor [...]; e 2) embaixo do nome do Ministro, na indicação de seu cargo – Ministro da Agricultura e do Abastecimento. Em outros momentos dessa apresentação, quando o documento declara os valores que serão destinados às produções do ano-safra correspondente, as atividades pecuárias são referidas como Atividade Pecuária e

pecuária, ao passo que, no trecho que expressa os valores que serão destinados às produções agrícolas, o termo utilizado é setores estratégicos do agronegócio.

O uso do signo agronegócio em vez de agricultura reflete e refrata materialidades sócio- históricas que foram se acumulando nele a partir de mudanças na base material, revelando aí valores de classe. É nessa realidade material do signo que nós podemos auscultar o “horizonte social de uma época e de um grupo social determinados” (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 2009a, p.45). E o horizonte social, bem como os valores de grupos sociais determinados pelo

emprego do signo agronegócio em vez de agricultura são marcados também pelo termo que o acompanha: Os setores estratégicos do agronegócio. As políticas estratégicas, os setores estratégicos trazem as marcas dos discursos hegemônicos globais que vão construindo a setorização estratégica, os usos estratégicos do território, as políticas estratégicas para ancorar, ao mesmo tempo em que movem, as ações na esfera global. Setores estratégicos para alcançar a mais-valia universal, estratégicos para atingirem níveis de competitividade ditados pela escala global. São tão estratégicos que a própria apresentação do Plano dita os produtos

prioritários neste ano-safra – milho, sorgo, trigo e algodão; produtos esses que receberão estímulos para expansão da área cultivada (BRASIL, 2000, p.1).

Ainda reforçando as estratégias, o texto de apresentação do Plano afirma com que objetivo os investimentos serão direcionados aos setores ali anunciados: Essa orientação da política

agrícola criará ambiente propício a um novo esforço de investimentos nessas atividades, que poderá gerar emprego e agregar renda ao meio rural, além de diversificar nossa pauta de exportações. Por essa declaração dos efeitos da reorientação proposta para o ano-safra 2000/2001, podemos fazer algumas considerações: a) no trecho que declara a busca pela criação de um “ambiente propício a novos investimentos”, pela forma como o verbo é empregado – criará –, essa criação é dada como certa a partir dos investimentos e da reorientação política anunciados; b) já em relação à geração de emprego e renda no meio rural, há uma hesitação expressa pelo emprego da locução verbal poderá gerar em vez de gerará, o que pode remeter à existência de uma possibilidade de gerar emprego e renda a partir de tudo o que foi anunciado, mas não de uma certeza de que isso ocorrerá; c) além disso, a possibilidade de geração de emprego e renda no meio rural é algo secundário em relação à diversificação de nossa pauta de exportações, uma vez que é possível gerar emprego e renda

além de ampliar a pauta de exportações; o emprego da expressão além de remete a essa diversificação da pauta como algo primário, prioritário, e a geração de emprego e renda como algo secundário, como um possível adendo.

Trabalhando com o corpo do texto do Plano para o ano-safra 2000/2001 como um todo, fiz uma busca pelo número de ocorrências das palavras agricultura e agronegócio. Exceptuando- se as ocorrências do signo agricultura para designar o Ministério e Secretarias da Agricultura, além de nomes de Programas, esse signo aparece quatro vezes ao longo de todo o documento: (1) [...] investimento na agricultura brasileira, (2) [...] aplicação na agricultura […], (3)

palavra agronegócio ocorre, também, ao longo do corpo do texto, quatro vezes: (1) Os setores

estratégicos do agronegócio [...], (2) [...] evolução estrutural e conjuntural do agronegócio, (3) Setores específicos do agronegócio [...] e (4) [...] alavancar o agronegócio do caju [...]. O número de ocorrências coincide; num exercício de compreensão, substituí o termo agricultura nos contextos em que ele ocorre pelo termo agronegócio: investimento no agronegócio

brasileiro; aplicação no agronegócio; produtividade do agronegócio brasileiro; percentual de

perdas no agronegócio. Fizemos ainda a mesma substituição dos termos no segundo conjunto:

Os setores estratégicos da agricultura; evolução estrutural e conjuntural da agricultura;

Setores específicos da agricultura; alavancar a agricultura de caju. Esse exercício nos serve para questionarmos se esses dois signos – agricultura e agronegócio – não são usados, muitas vezes, como sinônimos, mesmo que em suas materialidades já tenham sido depositados sentidos diversos, refletindo e refratando consciências diversas, de épocas diversas, e com valores diversos. O uso de um termo pelo outro, numa construção de efeito de sinônimo, pode constituir um exercício de monologização das vozes, numa tentativa de ir consolidando esses dois termos como sinônimos e apagando os conflitos ideológicos e de interesses de classes neles contidos e por eles expressos, uma vez que a palavra “reflete sutilmente as mais imperceptíveis alterações da existência social” (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 2009a, p.47) e essa troca processual de um signo por outro pode se constituir numa tentativa de monologização das vozes e de contenção das tensões existentes entre esses signos.

Além disso, os termos competitividade, competitivo (a, os, as) e estratégicos (as) também ocorrem no texto do Plano, cinco, duas e duas vezes, respectivamente. Essas são palavras do contexto global de organização e direcionamento das ações, das políticas, dos discursos e compõem esse discurso do Plano com diferentes funções: a competitividade e suas variações ora aparecem construindo sentidos de alvo, daquilo que se quer atingir por meio de todos os esforços expressos no planejamento do Ministério ([...] aumentar a competitividade [...]; [...]

uma busca contínua da melhoria da competitividade; Aumento da qualidade, segurança e

competitividade dos produtos [...]; Prioridade para os segmentos e as culturas mais

competitivas e importantes [...]; Programa Nordeste Competitivo).

Tanto nas ocorrências na classe dos substantivos (competitividade), quanto na classe dos adjetivos (competitivas e competitivo) essas palavras carregam sentidos daquilo que se almeja e que se valoriza e isso podemos compreender a partir do alargamento do nosso olhar para as outras palavras com as quais compõem os enunciados: aumento da competitividade; busca

contínua da melhoria da competitividade; aumento da qualidade, da segurança e competitividade; prioridade para os segmentos mais competitivos. Nesses enunciados, a competitividade é algo que se busca, é o alvo, é a finalidade almejada, tão almejada quanto a qualidade e a segurança e tão almejada que se quer aumentar, a ela há uma busca contínua, a ela se oferece prioridade.

Como um signo constituído e constitutivo da hegemonia ideológica global, posto que diferentes nações vêm sendo estudadas e compondo rankings mundiais de acordo com seus níveis de competitividade, o signo competitividade, que é ideológico, vivo e dinâmico, pode ser feito, como afirmam Bakhtin e Volochínov (2009a) de um instrumento de refração e deformação; tomam-se signos já tidos como desejáveis num contexto social e histórico geral, como os signos qualidade e segurança, por exemplo, e a eles associa-se um outro – competitividade –, conferindo a ele, conforme os interesses hegemônicos, “um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente” (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 2009a, p.48); como se a competitividade carregasse em sua materialidade somente as vozes e os valores desejáveis para a esfera agrícola e também para a sociedade como um todo, posto que milhões de reais dos cofres públicos estão sendo destinados para ações embasadas e focadas na competitividade.