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3.2 Discursos que sustentam a agricultura globalizada: diálogos entre Planos e Relatórios

3.2.4 Plano Agrícola e Pecuário 2003/2004

O Plano Agrícola e Pecuário 2003/2004, primeiro Plano publicado pelo Governo Lula, em junho de 2003, apresenta, já em sua materialidade estética, diferenças marcantes em relação aos documentos das safras anteriores (2000/2001; 2001/2002; e 2002/2003) (Figuras 20, 21, 22 e 23).

Figura 20 – Capa PAP 2000/2001– MAPA

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2000/2001

(MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO, 2000).

Figura 21 – Capa PAP 2001/2002 – MAPA

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2001/2002

Figura 22 – Capa do Plano Agrícola e Pecuário 2002/2003 – MAPA

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2002/2003

(MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO, 2002).

Figura 23 – Capa do Plano Agrícola e Pecuário 2003/2004 – MAPA

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2003/2004

A capa do Plano 2003/2004, composta por um mosaico de imagens fotográficas (que retratam o trabalho em plantações e colheitas, a pecuária, a produção de flores, pesquisas em laboratórios, cidadãos fazendo compras num supermercado, trabalhadores do ramo da confecção, uma carteira de trabalho e um prato típico da alimentação de grande parte da população brasileira) e os dizeres Plano Agrícola e Pecuário 2003/2004 – Mais alimentos e renda para os brasileiros. Mais desenvolvimento para o Brasil. Por meio de todo esse conjunto que compõe a capa, já é possível entrever um princípio de movimento na materialidade discursiva do documento, em relação aos anteriores, com a inserção do prato de comida, da família em compras no supermercado – nos signos imagéticos – e na palavra

alimentos estampada já na capa desse Plano. Ao longo do corpo todo do Plano do ano-safra 2003/2004, a palavra alimento é empregada dezessete vezes. Retomando os Planos dos anos- safra 2000/2001, 2001/2002 a mesma palavra foi empregada duas, e uma vez, respectivamente, e no documento de 2002/2003 ela não aparece nenhuma vez. A presença dessa palavra já na capa do documento do Ministério é um indício sígnico de um movimento, de uma mudança, do início da instauração de um diálogo entre as vozes da hegemonia discursiva e as vozes não-hegemônicas, refletindo o início (ou a tentativa) de uma ruptura que refrata também o início de uma organização da base material da sociedade brasileira de um modo diverso.

O novo Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é quem assina o texto de apresentação, que recebe o mesmo título estampado na capa do documento. Já na primeira linha, o texto afirma que o Governo brasileiro aposta no agronegócio como alavanca do

desenvolvimento econômico do país (p.4). Novamente, as vozes da hegemonia que defendem o agronegócio como a chave para o desenvolvimento econômico do Brasil, como a porta para a inserção e consolidação do nosso país no cenário econômico global, essas vozes já vão constituindo o discurso desse novo Ministério. Contudo, ainda no primeiro período do texto de apresentação, outras vozes vão também compondo esse discurso: [...] de modo a propiciar

a inclusão social de expressivas parcelas da população brasileira (p.4). No mesmo enunciado em que se encontra expressa a aposta no agronegócio como alavanca para o desenvolvimento

econômico, entrecruzado ao econômico está o social; a mesma alavanca (o agronegócio) será utilizada, pelo que se vê na construção desse enunciado, para impulsionar o desenvolvimento econômico e para incluir socialmente expressivas parcelas da população brasileira.

atividades agrícolas e pecuárias no Brasil, vai se compondo ao longo de todo o texto de apresentação: As medidas favorecem em especial a produção de alimentos básicos (p.4). Esse anúncio da prioridade na produção de alimentos básicos põe em jogo uma resposta; resposta, considerando, como nos lembra Augusto Ponzio, que “Bakhtin sublinhava da palavra o seu caráter 'semi-outro', a sua natureza 'condominal' (PONZIO, 2010, p.13). Um caráter “semi- outro”, que poderíamos pensar em função de a palavra não ser totalmente própria, a palavra enunciada já é uma resposta a uma palavra outra. Isso, como também explica Ponzio (2010), não de modo binário, em contraposição, não em modo de oposição, mas de diálogo, de entrecruzamento. Aqui, nesse enunciado, o anúncio das medidas não se expressa em resposta direta às prioridades das medidas do Plano Agrícola; mas tendo já auscultado as vozes dos documentos anteriores – que anunciavam prioridade aos setores estratégicos do agronegócio – auscultamos também as vozes que priorizam a produção de alimentos básicos, no mesmo Plano em que se declara a aposta no agronegócio. Os discursos não são lineares, homogêneos; são tecituras de fios, fios ideológicos, os quais, ao serem puxados, possibilitam a construção de sentidos entrecruzados nas palavras que auscultamos.

O favorecimento da produção de alimentos básicos em resposta às prioridades para os setores estratégicos do agronegócio justificam-se pelos dizeres do texto: Essa estratégia se impõe

como forma de atender o aumento da demanda que resultará dos novos programas sociais do Governo, como o Fome Zero, para recompor os estoques públicos (p.4). É também uma

estratégia priorizar a produção de alimentos básicos, estratégia essa que atende não mais às

exigências imprescindíveis do mercado global, mas à demanda que será gerada pelos novos programas sociais.

O jogo das vozes é também materializado quando, ainda no texto de apresentação, o montante de investimentos a ser administrado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) é anunciado no mesmo parágrafo em que se expressa o montante a ser administrado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), mesmo que o primeiro seja da ordem de R$ 27,15 milhões e o segundo da ordem de R$ 5,14. A hegemonia dos recursos para o MAPA ainda se mantém, no entanto, as vozes do MDA, que antes não se escutavam entre esses anúncios, começam a despontar, rompendo, mesmo que ainda de maneira tímida, com a suposta monologicidade dos discursos sobre os investimentos nas atividades agrícolas e pecuárias no nosso país.

No Plano, há ainda a materialização de um outro embate, que é do âmbito geográfico: Pela

primeira vez, os Preços Mínimos e as regras das Aquisições e Empréstimos do Governo Federal (AGF e EGF) para as culturas regionais e das regiões Norte e Nordeste foram anunciados junto com o Plano de Safra para o Centro-Sul, permitindo ao produtor mais tempo para a tomada de decisões (p.4). Esse enunciado, a partir de sua constituição, nos permite construir sentidos ligados ao tempo em que os anúncios de todas essas medidas era feito. E a justificativa apresentada para tal decisão é de que Essa medida do governo Lula

atende a uma antiga reivindicação de agricultores, pecuaristas e de entidades de classe do setor agropecuário (p.4). Há, nas palavras que constituem esse anúncio, um encontro de vozes diversas: a) as vozes do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, posto que esse é um documento oficial anual do Ministério; b) as vozes do Ministro – Roberto Rodrigues –, que assina o documento; c) as vozes do partido do Ministro, posto que este é um membro de uma organização política que trabalha segundo seus princípios e interesses; d) as vozes do Governo Federal, que, no texto, vêm expressas pelos termos Governo Lula; e) as vozes das regiões Norte, Nordeste e Centro-Sul; e f) as vozes de agricultores, pecuaristas e entidades de classe do setor agropecuário. Todas essas vozes constituem esse enunciado e vão emprenhando de sentidos as palavras que são assinadas por um só sujeito – neste caso, o Ministro. As vozes constituintes desse encontro constituem também os discursos circulantes nesse documento, discursos esses que, assim como todas as formas de interação verbal, acham-se muito estreitamente vinculados

às condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social. Assim é que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis que, mais tarde, encontram sua expressão nas produções ideológicas acabadas (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009a, p.43).

Dessa forma, esse encontro não é somente um encontro de todas essas vozes porque elas aparecem ali expressas nas palavras as quais podemos auscultar pelo estudo dos contextos de produção desse documento; esse encontro reflete e refrata movimentos, que vão reorganizando socialmente a base material, num jogo contínuo, dinâmico, vivo.

No entanto, mesmo não sendo um discurso de uma única voz, as hegemonias não se quebram, não se rompem integralmente. O mesmo discurso que declara a aposta no agronegócio, expressa já na abertura do documento, desponta novamente em seu fechamento: Todas essas

medidas de apoio efetivo aos produtores demonstram que o Governo Lula prioriza o agronegócio (p.4). E essa afirmação é interpenetrada pela confiança na capacidade de gerar

emprego no campo e na cidade, de multiplicar renda e de interiorizar o desenvolvimento em proveito de parcelas menos favorecidas da população (p.4). Mesmo que o agronegócio seja ainda uma aposta desse Governo, assim como o que vem expresso nos Planos anteriormente analisados, as parcelas menos favorecidas da população começam ao menos a serem citadas num texto de apresentação de um documento oficial desse Ministério.