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A proteção da confidencialidade dos acordos de leniência multijurisdicionais

2 DA INTERNACIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS ANTICOMPETITIVAS: OS

3.2 A DEFINIÇÃO DE EFEITOS PARA FINS DE APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL

3.3.3 Desafios na celebração de acordos de leniência em múltiplas jurisdições

3.3.3.1 A proteção da confidencialidade dos acordos de leniência multijurisdicionais

Um dos problemas mais graves envolvendo a multiplicidade de leniências em vários ordenamentos diz respeito à confidencialidade das informações oferecidas às autoridades antitruste pelo denunciante. É que a confidencialidade é demasiado importante para o funcionamento eficaz de um programa de leniência, o demandante necessitando de tal garantia sobretudo devido ao risco de as informações fornecidas serem transmitidas para outros países ou para as vítimas e utilizadas contra si. Em relação aos primeiros, o delator precisa ter a segurança de que outras jurisdições não terão acesso às informações, especialmente aquelas que não dispõem de um programa de leniência ou aquelas nas quais ele não conseguiu obtê-la. Já quanto às vítimas do cartel, o denunciante necessita assegurar que as evidências fornecidas não

311 PEREIRA FILHO, Venicio Branquinho. op. cit. p. 107; TALADAY, John. op. cit. p. 45; LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 71; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 20.

312 MARCHAL, Florian. op. cit. p. 78, 107; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 26; DESBROSSE, Pierre. op. cit. p. 234; BAIRD, Bruce; HULL, David; ROSENBAUM, Steven. op. cit. p. 20, 22/23; MARTINEZ, Ana Paula; ARAUJO, Mariana Tavares de. op. cit. p. 227.

serão empregadas para fundamentar futuras ações privadas de indenização. Caso contrário, ele estaria constituindo prova contra si próprio, podendo desencadear uma reação em cadeia de enforcement público e privado em outros Estados, o que evidentemente enfraqueceria a credibilidade do programa313.

Nesse sentido, como antes afirmado, as autoridades antitruste, em princípio, garantem a confidencialidade da identidade do delator e das informações por ele concedidas. Vale ressaltar, todavia, que a proteção aqui referida diz respeito aos documentos voluntariamente disponibilizados pelo beneficiário da leniência e não àqueles obtidos por outros meios, os quais podem ser divulgados, com a devida cautela em proteger as investigações314.

No Brasil, em conformidade com o art. 86, § 9º da Lei n.º 12.529/2011 e com o art. 207 do RICADE, via de regra, o conteúdo do acordo de leniência e de todos os seus documentos relacionados são de acesso restrito e não serão divulgados ao público, mesmo após a eventual instauração de inquérito ou processo administrativo pelo CADE. Ademais, a identidade dos signatários, em geral, é de acesso restrito perante o público até o julgamento final pelo CADE do processo administrativo referente à infração denunciada. Além disso, o CADE também não compartilha informações do acordo de leniência com autoridades antitruste de outros países. Finalmente, a confidencialidade da leniência é também um dever de seu signatário, o qual não pode comprometer o sigilo das investigações. A desobediência desse dever sujeita os infratores à responsabilização administrativa, civil e penal315.

Entretanto, diante da importância da cooperação com outras agências antitruste para a efetividade das investigações (tema que será analisado com mais profundidade na terceira parte deste trabalho), é comum que a autoridade concedente da leniência questione o demandante se ele também requereu benefício similar em outros países316. É que, consoante já mencionado, é

313 LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 71; MARCHAL, Florian. op. cit. p. 104/105; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 18/19, 23; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Fighting Hard-Core Cartels: Harm, Effective Sanctions and Leniency Programmes. p. 10; INTERNATIONAL COMPETITION NETWORK (ICN). ICN Cartel Working Group, Subgroup 2 – Enforcement Techniques. Anti-Cartel Enforcement Manual. Chapter 2 - Drafting and Implementing an Effective Leniency Policy. p. 14/15.

314 CARUSO, Antonio. Leniency Programmes and Protection of Confidentiality: The Experience of the European Commission. Journal of European Competition Law & Practice, Vol. 1, No. 6, 2010. p. 455/456; BAER, William; FRAZER, Tim; GYSELEN, Luc. International Leniency Regimes: New Developments and Strategic Implications. In HANCOCK, William (ed.). Corporate Counsel's International Adviser. Chesterland, Ohio : Business Laws, 2005. p. 246-03, 246-06; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Fighting Hard-Core Cartels: Harm, Effective Sanctions and Leniency Programmes. p. 27/28.

315 CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE). Guia Programa de Leniência Antitruste do CADE. p. 48/50.

316 Nesse sentido, de acordo com os arts. 201 e 202 do RICADE, a proposta de celebração de acordo de leniência deve informar sobre outras propostas referentes à mesma prática apresentadas em outras jurisdições, desde que não haja vedação para tanto por parte das autoridades estrangeiras.

possível haver o compartilhamento de informações com autoridades estrangeiras, uma vez os denunciantes expressamente o permitindo, através de um termo de renúncia (waiver) de confidencialidade317. Em realidade, com frequência, demandantes de leniência em múltiplas jurisdições concedem renúncias transfronteiriças, de sorte a que todas as autoridades perante as quais o benefício foi requerido possam trocar as informações decorrentes do acordo entre si. Isso é benéfico para o delator, pois ele evita a duplicação das informações a serem produzidas e reitera sua disposição em cooperar, a recusa podendo gerar suspeitas sobre sua boa-fé. Por sua vez, a autoridade passa ter acesso a evidências e testemunhas localizadas em outros ordenamentos, coordenando os procedimentos em âmbito internacional, conservando recursos e acelerando as investigações. Nesse sentido, é do interesse das autoridades incentivar o requerente da leniência a também demandá-la em outras jurisdições318.

A confidencialidade das informações fornecidas pelo denunciante também não se aplica em relação aos demais coconspiradores investigados, os quais poderão acessar o conteúdo do acordo de leniência. Todavia, tal acesso deve ser limitado para fins de exercício do direito ao contraditório e ampla defesa e apenas a partir de quando a investigação estiver devidamente consolidada319, de modo a evitar que os demais participantes ajam para enfraquecer sua integridade, por exemplo, através da destruição de evidências320.

O mesmo, é evidente, não se aplica em relação às vítimas do cartel. Em realidade, como mencionado, são elas uma das grandes preocupações relativas à manutenção da confidencialidade da leniência. Contemporaneamente, vem ganhando bastante força o enforcement privado do Direito Antitruste, em especial no que concerne à propositura de ações civis privadas para a reparação dos danos. Tal modelo não mais se limita, como outrora, aos Estados Unidos, havendo-se espalhado para vários outros sistemas, inclusive o Brasil, onde a

317 No Brasil, além da prévia concordância do signatário do acordo de leniência, tal compartilhamento de informações também exige a anuência da Superintendência-Geral do CADE (CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE). Guia Programa de Leniência Antitruste do CADE. p. 50).

318 LEVENSTEIN, Margaret; SUSLOW, Valerie. International Cartels. p. 1117; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 22; INTERNATIONAL COMPETITION NETWORK (ICN). ICN Cartel Working Group, Subgroup 2 – Enforcement Techniques. Anti-Cartel Enforcement Manual. Chapter 2 - Drafting and Implementing an Effective Leniency Policy. p. 14; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Fighting Hard-Core Cartels: Harm, Effective Sanctions and Leniency Programmes. p. 28; UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT (UNCTAD). The Use of Leniency Programmes as a Tool for the Enforcement of Competition Law against Hardcore Cartels in Developing Countries. p. 8. 319 No Brasil, via de regra, os representados serão informados e poderão tomar conhecimento dos termos da leniência a partir da notificação para a apresentação da defesa no processo administrativo, sendo-lhes garantido pleno acesso aos documentos utilizados para a formação da convicção do CADE (arts. 69 e 70 da Lei n.º 12.529/2011 e arts. 52, parágrafo único e 207, § 2º do RICADE). Já na União Europeia, o referido acesso pleno aos documentos ocorre após a notificação da comunicação de objeções pela Comissão.

320 CARUSO, Antonio. op. cit. p. 460; BAER, William; FRAZER, Tim; GYSELEN, Luc. op. cit. p. 246-06; MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 264.

mencionada prática está em franca ascensão nos últimos cinco anos. Nesse sentido, não raro, os custos provenientes das posteriores ações civis de reparação superam o valor das multas administrativas, de sorte que se tornam um determinante decisivo para a propositura, ou não, de um acordo de leniência. A questão assume ainda mais relevância no contexto dos cartéis internacionais, nos quais o vazamento de informações obtidas em uma jurisdição pode repercutir em outros ordenamentos, levando a um desencadeamento de condenações dos conspiradores em ações privadas ao redor do mundo321.

Em última instância, pode acontecer de o agente que voluntariamente cooperou com a autoridade antitruste na persecução do cartel ser posto em uma situação mais desfavorável que os outros coconspiradores nas ações privadas de indenização, tendo em vista que, diferente destes, aquele forneceu evidências que lhe são autoincriminadoras. Uma tal situação representa grande desincentivo para o requerimento da leniência, sobretudo devido ao fato, como visto, de a grande maioria dos programas não repercutir na responsabilidade civil dos cartelistas. Uma das formas de reverter tal cenário, encorajando a propositura de acordos de leniência, tem sido a reforma de alguns programas, como nos Estados Unidos, onde, consoante já analisado, o beneficiário é protegido dos danos em triplo (treble damages) e da responsabilidade solidária com os outros coconspiradores em relação aos danos a que não deu causa. Outro exemplo é a União Europeia, onde o denunciante só é obrigado a indenizar os outros consumidores lesados pela conduta (isto é, aqueles que não foram seus adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos) caso a reparação integral não puder ser obtida das demais empresas implicadas na mesma infração322.

Sob esse prisma, fica evidente que os Estados têm utilizado duas estratégias descoordenadas e às vezes até conflituosas, quais sejam o incentivo à celebração de acordos de leniência e a criação de condições que facilitam ações privadas de indenização contra os membros do cartel, incluindo aqueles que se beneficiaram do instrumento em discussão. De

321 CANENBLEY, Cornelis; STEINVORTH, Till. Effective Enforcement of Competition Law: Is There a Solution to the Conflict Between Leniency Programmes and Private Damages Actions? Journal of European Competition Law & Practice, Vol. 2, No. 4, 2011. p. 317/318; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 23; MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 264.

322 NIELEN, Myrthe. Leniency Material Unveiled? Access by Cartel Victims to Commission and NMa Files from a Perspective of EU Fundamental Rights and Cartel Enforcement. 73 f. Dissertação de Mestrado em Direito Europeu – Utrecht University, Utrecht, 2012. Disponível em: <http://renforce.rebo.uu.nl/wp- content/uploads/2013/12/Scriptie-Myrthe-Nielen.pdf>. Acesso em: 25/09/2016. p. 11/12; MILLER, Samuel; NORDLANDER, Kristina; OWENS, James. U.S. Discovery of European Union and U.S. Leniency Applications and Other Confidential Investigatory Materials. The CPI Antitrust Journal. Vol. 6, No. 1, March 2010. p. 3/4; CARUSO, Antonio. op. cit. p. 456; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 23; MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 264; ARAÚJO, Mariana Tavares de; CHEDE, Marcio Benvenga. op. cit. p. 230.

fato, muitas autoridades antitruste vêm encorajando tal movimento das vítimas, como é o caso do CADE, que, pela primeira vez em 2010, remeteu cópias de sua decisão condenatória do cartel dos gases aos setores potencialmente afetados. Nesse contexto, tal política antitruste desconexa se reflete, por exemplo, em situações como a ocorrida no Estado de São Paulo, em 2013, onde apenas o denunciante foi civilmente demandado para a reparação dos prejuízos causados pelo suposto cartel de licitação envolvendo a construção e manutenção do metrô de São Paulo, tendo o juiz da causa requerido a emenda da inicial para também incluir os outros coconspiradores323.

Por outro lado, as vítimas têm-se aproveitado do caráter multijurisdicional dos cartéis internacionais para obter evidências hábeis a fundamentar as ações privadas de indenização, as quais, como já afirmado, espalham-se por todo o mundo. Nesse sentido, nos Estados Unidos, os demandantes em ações civis de reparação começaram a requerer, com fundamento na Rule 26 do Federal Rules of Civil Procedure, a produção antecipada de provas (discovery procedure) a fim de obter documentos apresentados pelo beneficiário da leniência naquele país e, sobretudo, em jurisdições estrangeiras. Tal procedimento permite que um tribunal norte- americano ordene a uma empresa que forneça provas escritas confidenciais de um litígio em curso perante um tribunal estrangeiro. Em resposta a tais investidas nos Estados Unidos, muitos ordenamentos, como o Brasil e a União Europeia, passaram a adotar processos sem papel, permitindo que os denunciantes façam declarações orais (que são tomadas a termo e se tornam documentos oficiais internos das autoridades), libertando-os da obrigação de criar novos documentos incriminadores que possam ser, no futuro, requeridos em procedimentos como o acima descrito. Protege-se, dessa forma, a confidencialidade do respectivo programa de leniência e confere-se mais segurança jurídica aos delatores324.

Já do outro lado do Atlântico, inúmeros Estados-Membros da União Europeia possuem regras de processo civil que, em princípio, permitiriam a seus tribunais ordenar a divulgação de documentos provenientes da leniência que sejam relevantes para um dado litígio. Nesse contexto, em 2011, o Tribunal de Justiça da União Europeia, em sua decisão no caso Pfleiderer, determinou que as cortes nacionais devem, através de uma análise casuística e de acordo com o respectivo direito nacional, ponderar os interesses em favor da publicização e da proteção das

323 CANENBLEY, Cornelis; STEINVORTH, Till. op. cit. p. 316; MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 264; MARTINEZ, Ana Paula; ARAUJO, Mariana Tavares de. op. cit. p. 269/270; ARAÚJO, Mariana Tavares de; CHEDE, Marcio Benvenga. op. cit. p. 230

324 OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 24/25; DESBROSSE, Pierre. op. cit. p. 232/233; BAIRD, Bruce; HULL, David; ROSENBAUM, Steven. op. cit. p. 22; CARUSO, Antonio. op. cit. p. 458; BAER, William; FRAZER, Tim; GYSELEN, Luc. op. cit. p. 246-06; SPRATLING, Gary; ARP, Jared. op. cit. p. 53.

informações voluntariamente fornecidas pelo denunciante325. Nos casos subsequentes, todavia, os tribunais nacionais (por exemplo, na Alemanha, na Áustria e no Reino Unido) negaram a publicização das evidências, protegendo a confidencialidade da leniência326.

Por sua vez, a Diretiva (UE) 2014/104/UE solucionou definitivamente a questão, ao estabelecer regras especiais relativas à divulgação de evidências incluídas em processos administrativos conduzidos perante as autoridades antitruste (seja a Comissão ou as autoridades da concorrência nacionais), em casos de ações de indenização intentadas perante tribunais nacionais dos Estados-Membros da UE. De acordo com o art. 6º, 6 da Diretiva, os Estados- Membros devem assegurar que, para efeitos de ações de indenização, os tribunais nacionais não possam em nenhum momento ordenar a uma parte ou a um terceiro a publicização das informações contidas nas declarações de leniência. Dessa forma, fica garantida, no âmbito da União Europeia, a confidencialidade das informações fornecidas pelo delator327.

Por sua vez, no Brasil, em que pese haver, em princípio, a proteção ao conteúdo da leniência e de todos os seus documentos, consoante acima descrito, recente julgado do Superior Tribunal de Justiça decidiu ser a conclusão da instrução preliminar do processo administrativo (marcada pelo envio do relatório circunstanciado pela Superintendência-Geral ao Presidente do Tribunal do CADE) o momento em que se encerra o sigilo do aludido acordo. Aduziu-se que o sigilo, após aceito e formalizado o instrumento da leniência, só se justifica no interesse das apurações ou em relação a documentos específicos cujo segredo deve ser preservado em tutela da concorrência, de sorte que não poderia ser protraído no tempo de modo indefinido, sob pena de perpetuar o dano causado a terceiros, garantindo ao denunciante favor não assegurado pela lei (já que esta apenas garante a isenção das penas nas esferas administrativas e penais). Nesse sentido, determinou-se não haver óbice que inviabilizasse o traslado de documento do

325 Processo C-360/09 (Pfleiderer AG c. Bundeskartellamt). Acórdão da Grande Secção do Tribunal de Justiça, de 14 de junho de 2011.

326 OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 24/26; MÄGER, Thorsten; ZIMMER, Daniel; MILDE, Sarah. Access to Leniency Documents – Another Piece in the Puzzle Regarding Public and Private Antitrust Enforcement? (Germany). Journal of European Competition Law & Practice, Vol. 4, No. 2, 2013. p. 182/184; CATÓN, Pablo González de Zárate. Disclosure of Leniency Materials: A Bridge between Public and Private Enforcement of Antitrust. Research Paper in Law No. 08/2013, European Legal Studies, College of Europe, 2013. Disponível em: <https://www.coleurope.eu/sites/default/files/research-paper/researchpaper_8_2013_gonzalezdezaratecaton. pdf>. Acesso em: 25/09/2016. p. 14/17.

327 Merece destaque o considerando n.º 26 da aludida Diretiva: “(...) As empresas poderão ser dissuadidas de cooperar com as autoridades da concorrência no âmbito de programas de clemência e procedimentos de transação, se forem divulgadas declarações autoincriminatórias, como sejam declarações de clemência e propostas de transação produzidas unicamente para efeitos dessa cooperação com as autoridades da concorrência. Tal divulgação implicaria o risco de expor as empresas cooperantes ou o seu pessoal de gestão à responsabilidade civil ou penal em condições mais desfavoráveis do que os coinfratores que não cooperam com as autoridades da concorrência. Para assegurar que as empresas continuem dispostas a apresentar voluntariamente às autoridades da concorrência declarações de clemência ou propostas de transação, esses documentos deverão ser excluídos da divulgação de elementos de prova (...)”.

procedimento administrativo, proveniente de acordo de leniência, para instrução de ação privada de indenização328. Ainda que o aludido caso tenha-se referido a uma ação privada proposta no Brasil, não seria impossível que vítimas estrangeiras se baseassem naquele entendimento para obter provas a fim de fundamentar ações propostas em outras jurisdições. Dessa forma, tal julgado representa grande risco à política do CADE sobre os programas de leniência329, podendo reduzir os incentivos para a celebração de tais acordos no país, o que seria bastante deletério para o enforcement público de cartéis330.

Sob esse prisma, em que pese as autoridades antitruste dos Estados prometerem a confidencialidade dos documentos fornecidos pelo denunciante, tal garantia não pode ser tomada como certa, havendo sempre o risco de vazamento, sobretudo em se tratando de leniências multijurisdicionais. Afinal, como visto, as vítimas do cartel vão tentar utilizar os instrumentos legais disponíveis nos vários ordenamentos para obter evidências aptas a fundamentar ações privadas de indenização. Por outro lado, muitas pessoas acabam tendo acesso ao conteúdo da leniência. Como visto, os coconspiradores acusados têm o direito de examinar os documentos, não sendo impossível de imaginar que eles queiram utilizá-los como meio de retaliação ao delator. Ademais, nos sistemas em que as buscas e apreensões demandam autorização judicial ou em que haja investigações paralelas (como é o caso do Brasil, com a investigação criminal), a autoridade antitruste não terá a última palavra em relação à confidencialidade, sendo possível que o tribunal decida pela publicização das informações provenientes do acordo de leniência331. Nesse contexto, e sobretudo em jurisdições onde os

328 REsp n.º 1.554.986-SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado pela Terceira Turma do STJ, em 8 de março de 2016.

329 E também de TCCs, já que os argumentos discutidos no aresto podem ser, igualmente, replicados ao contexto desses instrumentos.

330 Nesse sentido, a já mencionada minuta de resolução submetida à consulta pública pelo CADE, em 7 de dezembro de 2016, visa a regulamentar os procedimentos no órgão para acesso a documentos provenientes de acordos de leniência, TCCs e de operações de busca e apreensão, definindo os parâmetros de confidencialidade a documentos e informações provenientes de tais instrumentos. Dessa forma, é reforçada a proteção de sigilo a peças que necessitam de confidencialidade mais prolongada, tais quais as oriundas de acordos de leniência, de modo a não se causar prejuízos às investigações, nem desencorajar as empresas e indivíduos a celebrarem tais acordos. Pretende-se, assim, criar maior segurança jurídica aos signatários de leniência ou TCC, protegendo-os de decisões como a do STJ acima mencionada. Dentre as regras previstas na minuta, vale destacar a do art. 13: “parágrafo único. Serão mantidos como de acesso restrito, mesmo após a decisão final pelo Plenário do Tribunal do Cade, e não poderão ser disponibilizados a terceiros em razão do risco à condução de negociações (art. 23, II da Lei nº 12.527/2011), às atividades de inteligência (art. 23, VIII da Lei nº 12.527/2011), e à efetividade dos Programas de Leniência e de TCC do Cade: I – o Histórico da Conduta e seus aditivos, elaborados pela Superintendência-Geral do Cade com base em documentos e informações de caráter auto-incriminatório submetidos voluntariamente no âmbito da negociação de Acordo de Leniência e TCC, que não poderiam ter sido obtidos de qualquer outro modo senão por meio da colaboração no âmbito dos Programas de Leniência e de TCC”. Se consubstanciada, tal alteração legislativa irá ao encontro do que ocorreu na UE, com a edição da Diretiva (UE) 2014/104/UE, subsequente a vários processos no TJUE que discutiram a confidencialidade de informações fornecidas pelos delatores. 331 Tal qual ocorreu no julgado do STJ acima mencionado.

mencionados programas ainda não estão plenamente consolidados, não raro ocorrem divulgações prematuras dos documentos entregues pelo denunciante332-333.

3.3.3.2 Alternativas para a redução dos problemas decorrentes de programas de leniência

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