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Alternativas para a redução dos problemas decorrentes de programas de leniência

2 DA INTERNACIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS ANTICOMPETITIVAS: OS

3.2 A DEFINIÇÃO DE EFEITOS PARA FINS DE APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL

3.3.3 Desafios na celebração de acordos de leniência em múltiplas jurisdições

3.3.3.2 Alternativas para a redução dos problemas decorrentes de programas de leniência

Como visto nas seções anteriores, os programas de leniência tornaram-se muito mais complexos no contemporâneo contexto dos cartéis internacionais, daí decorrendo inúmeros problemas que colocam em cheque a sua eficácia. Nesse sentido, fica evidente que os referidos instrumentos, tão importantes para o enforcement antitruste, não se encontram plenamente adaptados para lidar com conluios transfronteiriços, os quais exigem uma pluralidade de acordos celebrados em múltiplos ordenamentos. Dessa forma, é preciso que se operem modificações na atual fórmula prevista pelos direitos nacionais, de modo a conformar os programas de leniência a essa nova realidade334.

Sob esse prisma, várias são as propostas formuladas e as medidas efetivamente tomadas para se reduzirem as dificuldades geradas pelos programas de leniência em múltiplas jurisdições. Por exemplo, ressalta-se a necessidade de maior harmonização das regras dos vários sistemas. Afinal, como já aduzido, embora haja grande proximidade entre os diversos programas, ainda persistem diferenças significativas entre eles, o que gera tensões e desincentivos. Dessa forma, uma maior convergência entre os vários direitos antitruste nacionais reduziria os custos de transação dos delatores e propiciaria um ambiente mais favorável à propositura de acordos de leniência. Além disso, o incremento na cooperação entre as autoridades de defesa da concorrência também auxiliaria a reduzir as efeitos negativos causados por programas multijurisdicionais. É precisamente nesse sentido que algumas organizações internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development – UNCTAD), além da International

332 Este é o caso do CADE, o qual, apesar de já estar bastante avançado em sua transição para um conjunto maduro e testado de práticas e regras referentes ao programa de leniência, ainda apresenta, ocasionalmente, alguma turbulência. Cita-se, por exemplo, o incidente, em 2013, envolvendo o vazamento da identidade do delator, ainda na fase inicial das investigações, de um suposto cartel de licitação envolvendo a construção e manutenção do metrô de São Paulo (MARTINEZ, Ana Paula; ARAUJO, Mariana Tavares de. op. cit. p. 270; MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 267).

333 ARAÚJO, Mariana Tavares de; CHEDE, Marcio Benvenga. op. cit. p. 230; MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 264/265; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 22.

Competition Network (ICN), vêm trabalhando, havendo produzido resultados positivos, consoante será analisado com mais vagar na terceira parte deste trabalho335.

Ademais, são também sugeridas outras proposições, como o estabelecimento de programas de leniência plus em âmbito internacional336, havendo até mesmo a menção a um ambicioso (e pouco factível) programa de leniência global337. Entretanto, aqui será melhor analisada a proposta que parece ser a mais eficaz e exequível no atual contexto internacional. Trata-se da criação de um guichê único (one-stop shop) global para markers, que garanta ao demandante o primeiro lugar na fila nas diversas jurisdições. Essa foi a solução que o Comitê Consultivo Econômico e Industrial da OCDE (Business and Industry Advisory Committee – BIAC) sugeriu como resposta para as dificuldades enfrentadas atualmente pelos programas de leniência, em um estudo sobre o uso de markers realizado pela referida organização internacional338. A Câmara de Comércio Internacional (International Chamber of Commerce – ICC) também apresentou uma proposta no mesmo sentido à ICN339.

Seria criado, portanto, um mecanismo que assegurasse ao primeiro agente a solicitar um marker perante uma determinada instância o primeiro lugar na fila em todas os ordenamentos participantes do sistema. Em outas palavras, seria possível a um candidato reservar sua posição em várias jurisdições através da demanda de apenas uma senha no guichê único. Este, por sua vez, notificaria as autoridades indicadas pelo requerente, comunicando as informações básicas para a identificação do cartel, bem como a data e a hora oficiais da apresentação da pedido. Caso alguma autoridade já tivesse recebido uma solicitação anterior em relação à mesma conduta, ela poderia rejeitar, em sua respectiva jurisdição, a requisição feita perante o guichê

335 OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 27/28; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Using Leniency to Fight Hard Core Cartels. Policy Brief. Paris: OECD Observer, 2001. Disponível em: <http://www.oecd.org/daf/ca/1890449.pdf>. Acesso em: 03/10/2016; UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT (UNCTAD). The Use of Leniency Programmes as a Tool for the Enforcement of Competition Law against Hardcore Cartels in Developing Countries; INTERNATIONAL COMPETITION NETWORK (ICN). ICN Cartel Working Group, Subgroup 2 – Enforcement Techniques. Anti- Cartel Enforcement Manual. Chapter 2 - Drafting and Implementing an Effective Leniency Policy.

336 MARCHAL, Florian. op. cit. p. 105/106. 337 OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 28.

338 ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Use of Markers in Leniency Programmes. Note by the Secretariat. DAF/COMP/WP3(2014)9, 24 March 2015. Paris: OECD, 2015. Disponível em: <http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/ WP3(2014)9&doclanguage=en>. Acesso em: 04/10/2016. p. 25; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO- OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Use of Markers in Leniency Programmes. Contribution from BIAC. DAF/COMP/WP3/WD(2014)38, 11 December 2014. Paris: OECD, 2014. Disponível em: <http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=daf/comp/wp3/wd(2014)38&doclang uage=en>. Acesso em: 04/10/2016.

339 INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). Proposal to the International Competition Network for a One-stop-shop for Leniency Markers. An issues paper prepared by the ICC Commission on Competition. 225/752. March 2016. Disponível em: <http://www.iccwbo.org/advocacy-codes-and-rules/areas-of- work/competition/cartels-and-leniency/>. Acesso em: 04/10/2016.

único como o primeiro da fila, embora não poderia interferir nas demandas referentes a outros países340.

O guichê único poderia ser implementado e administrado por alguma autoridade antitruste nacional, como o DOJ ou a Comissão Europeia, ou sob os auspícios de alguma organização internacional, como a OCDE ou a ICN341. Parece, contudo, ser a ICN o foro mais indicado para a centralização do sistema, por ser uma instituição internacional, de dedicação exclusiva a temas relacionados à defesa da concorrência, composta pela grande maioria das autoridades antitruste nacionais e de grande sucesso em seus quinze anos de existência342.

Além disso, cabe ressaltar que a proposta em análise se refere a um guichê único somente para markers, e não para a concessão da leniência. Dessa forma, a instância responsável só seria competente como primeiro contato para demandas em múltiplas jurisdições, reservando a primeira posição na fila em todas aquelas (princípio do stop-the-clock) e conferindo um prazo para que o requerente completasse seu pedido perante cada autoridade. Assim, cada ordenamento continuaria a estabelecer os requisitos necessários e a ter a competência para conceder o benefício. Tratar-se-ia apenas de uma unificação da concessão de markers, ou seja, o guichê único iria simplesmente declarar que determinado agente fora o primeiro a se apresentar demandando a leniência num dado caso de cartel internacional. Em seguida, a parte teria um prazo para reunir documentos e outras evidências e decidir perante quais nações desejaria, de fato, apresentar-se e concluir o pedido. As autoridades antitruste nacionais, por sua vez, usariam a declaração emitida pelo guichê único como uma senha válida. Desse modo, elas precisariam sempre checar a existência de algum marker pendente no banco de dados da agência responsável pela administração do sistema antes de conceder qualquer senha ou conferir uma leniência343.

Sob esse prisma, fica evidente que a comentada proposição consiste em uma mera convergência procedimental, de sorte que nenhuma regra de fundo precisaria ser alterada. Não haveria, pois, qualquer sacrifício da soberania dos Estados, os quais continuariam a ser independentes para conceder, ou não, a leniência. Ao revés, tal sistema daria a cada jurisdição

340 INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). op. cit. p. 1/2; TALADAY, John. op. cit. p. 47. 341 TALADAY, John. op. cit. p. 43.

342 SOKOL, Daniel. International Antitrust Institutions. In GUZMAN, Andrew (ed.). Cooperation, Comity, and Competition Policy. New York: Oxford University Press, 2011. p. 200/202; SILVEIRA, Paulo Burnier da; OLIVEIRA, Giovanna Bakaj Rezende. A Segunda Década da Rede Internacional da Concorrência: os Desafios da Promoção da Convergência na Diversidade. Revista de Defesa da Concorrência, n°1, Maio 2013, p. 5/6, 13/14. 343 OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 28; LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 72/73.

uma melhor oportunidade para exercer sua autoridade soberana na persecução de cartéis internacionais344.

Ademais, o sistema de guichê único para markers seria voluntário para os denunciantes, os quais poderiam escolher apresentar seus pedidos perante tal instância ou individualmente em cada país. Além disso, caso decidissem utilizar o guichê único, eles não seriam obrigados a demandar uma senha para todas as jurisdições integrantes do sistema, mas poderiam escolher perante quais agências desejam solicitar o benefício. E ainda que não requeressem um marker para determinado ordenamento, nada os impediria de buscar depois a leniência diretamente perante tal autoridade, embora não tendo garantido o primeiro lugar na fila. Enfim, devido às divergências nacionais quanto ao tratamento do segundo e posteriores postulantes, o sistema deveria ser usado apenas em relação ao primeiro requerente. Assim, os candidatos subsequentes seriam informados de que o primeiro marker não está mais disponível, devendo-se apresentar individualmente perante cada nação para obter a senha que garanta outro lugar que não o primeiro na fila345.

Nesse contexto, a implementação de um guichê único para markers traria inúmeros benefícios, tanto para as autoridades antitruste como para os demandantes de leniência, superando muitas das dificuldades em se gerir programas em múltiplas jurisdições. Nesse sentido, seria aumentada a possibilidade de se descobrir cartéis internacionais em seu estágio inicial (sobretudo em países cujo direito antitruste ainda não é tão desenvolvido), e seria facilitada e incrementada a cooperação e coordenação entre as autoridades da concorrência participantes do sistema. Ademais, evitar-se-iam múltiplos e simultâneos pedidos de markers em vários ordenamentos e situações em que senhas (e posteriores leniências) são concedidas a agentes distintos. Também haveria uma concentração das informações e uma redução no número de pessoas que teriam contato com elas, o que diminuiria a possibilidade de vazamentos. Dessa forma, seria constituído um efetivo sistema para se delatar cartéis internacionais, com grandes incentivos para requerer leniências em múltiplas nações, o que evidentemente aumentaria a eficiência das agências antitruste na repressão contra tais conluios346.

Vale mencionar que um sistema semelhante ao aqui proposto já foi implementado, com bastante sucesso, em relação às patentes. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual

344 TALADAY, John. op. cit. p. 46; LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 73.

345 TALADAY, John. op. cit. p. 47; INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). op. cit. p. 1. 346 LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 74; TALADAY, John. op. cit. p. 46/47; INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). op. cit. p. 3/4; OBERSTEINER, Thomas. op. cit. p. 28.

(OMPI) administra o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent Cooperation Treaty – PCT), que conta com mais de 140 países signatários. Tal sistema dispõe de um pedido internacional de patente, através do qual o primeiro a solicitá-la é reconhecido como o primeiro demandante em todos as jurisdições participantes. Por outro lado, a concessão das patentes permanece sob o controle de cada Estado, através dos processos internos (a chamada fase nacional), devendo apenas ser observada a data em que houve o pedido na OMPI. Nesse contexto, a função do sistema internacional é apenas proteger o primeiro requerente, de modo a reduzir a burocracia e a insegurança jurídica para os agentes que desejam pedir uma patente em vários países347.

Entretanto, muitos fatores dificultariam a implementação do sistema em questão, como as divergências entre os ordenamentos nacionais quanto ao período de tempo que é concedido ao demandante para completar o pedido da leniência, às informações que são exigidas e à discricionariedade ou não na concessão do marker. Tais diferenças procedimentais são ainda mais perceptíveis quando se confrontam modelos de enforcement administrativo, penal e misto (como é o caso do Brasil). Em relação ao primeiro tema, é preciso que todos os participantes concedam um prazo inicial comum para o aperfeiçoamento do requerimento. Todavia, tal questão não deve ser tão problemática de se resolver, posto que a maioria das jurisdições confere um prazo similar, de aproximadamente 30 dias. Quanto às informações que o candidato deve apresentar no momento em que solicitar o marker, é provável que os ordenamentos que exigem menos informações não se oponham em receber mais dados. Deve-se, na verdade, chegar a um denominador comum, que satisfaça a maioria das nações participantes, o que deverá incluir o nome do demandante e seu endereço, os membros do alegado cartel, a natureza da conduta, o produto e o território afetados, além da duração do suposto conluio. Finalmente, a discricionariedade, ou não, das autoridades na concessão do marker também não deve ser um obstáculo ao sistema. Ora, aqueles países que dispõem de um modelo discricionário não precisarão alterá-lo, podendo informar ao administrador que, em sua apreciação, determinado pedido não merece a concessão de um marker. Por outro lado, as demais jurisdições continuarão a conferir o marker de forma automática, apenas realizando um juízo de discricionariedade quando da concessão da leniência348.

347 LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 73; TALADAY, John. op. cit. p. 43; INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). op. cit. p. 2.

348 LACERDA, João Felipe Aranha. op. cit. p. 74; TALADAY, John. op. cit. p. 47/48; INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). op. cit. p. 2/3; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Summary of Discussion of the Roundtable on the Use of Markers in Leniency Programs. DAF/COMP/WP3/M(2014)3/ANN2/FINAL, 29 May 2015. Paris: OECD, 2015. Disponível em:

Entretanto, apesar de ser possível solucionar a maioria de tais dificuldades, de o sistema em comento ser teoricamente exequível e de todos os benefícios que traria, na prática, ele ainda encontra grandes obstáculos para ser implementado, demandando-se estudos mais aprofundados a seu respeito. Tanto é assim que mesmo a União Europeia (em que há um conjunto coeso entre as autoridades antitruste supranacional e nacionais) ainda não dispõe, em seu interior, de um guichê único para markers349.

3.4 A DETERMINAÇÃO DAS SANÇÕES EM CASOS DE CARTÉIS INTERNACIONAIS

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