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2 DA INTERNACIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS ANTICOMPETITIVAS: OS

3.2 A DEFINIÇÃO DE EFEITOS PARA FINS DE APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL

3.3.2 Análise comparativa dos principais regimes

Como acima aduzido, a introdução do programa de leniência, no âmbito do antitruste, deu-se nos Estados Unidos, em 1978, quando foi adotado o primeiro Corporate Leniency Policy286. Todavia, ele permaneceu em larga medida ineficaz até 1993, quando foi levada a cabo uma reforma que estabeleceu um novo programa de leniência naquele país. A partir de então, a concessão da leniência antes do início da investigação (type A leniency) passou a ser automática. Ademais, a leniência passou a ser permitida depois de a investigação ter sido instaurada (type B leniency) e a ser automaticamente estendida para os diretores e empregados integrantes da corporação que cooperem junto com a empresa nas investigações. Em 1994, foi também estabelecido um programa de leniência para pessoas físicas, aplicando-se para aqueles que denunciem o conluio em nome próprio, e não como parte integrante da confissão de uma empresa. Outra importante mudança ocorreu em 2004, quando se passou a conceder ao delator o benefício de ser responsabilizado por danos simples (detrebling of damages), ao invés dos tradicionais danos em triplo (treble damages), além da não aplicação da responsabilidade solidária com os coconspiradores em relação aos danos a que não deu causa, nas posteriores

284 INTERNATIONAL COMPETITION NETWORK (ICN). ICN Cartel Working Group, Subgroup 2 – Enforcement Techniques. Anti-Cartel Enforcement Manual. Chapter 2 - Drafting and Implementing an Effective Leniency Policy. p. 9; LEVENSTEIN, Margaret; SUSLOW, Valerie. International Cartels. p. 1109; MARTYNISZYN, Marek. Leniency (Amnesty) Plus: a Building Block or a Trojan Horse? In BENEYTO, José- Maria; MAILLO, Jerómimo (ed.). The Fight Against Hard-Core Cartels in Europe: Trends, Challenges and Best International Practices. Brussels: Bruylant, 2016. p. 103/125. Vide o último texto para interessante crítica à adoção de tal instituto em várias jurisdições. De acordo com o autor, a leniência plus foi desenvolvida nos Estados Unidos (onde é conhecida como amnesty plus), no contexto de investigações de cartéis internacionais, e recentemente, foi transplantada para outras jurisdições. Todavia, segundo ele, em geral, tal implementação foi apenas parcial, visto que, enquanto nos EUA a referida ferramenta, quando aplicável, é compulsória (sob pena de uma sanção adicional, a penalty plus), em muitos outros regimes ela é apenas opcional. Dessa forma, tais jurisdições (dentre as quais se encontra o Brasil) teriam apenas introduzido cenouras extras (a redução adicional das sanções), mas não bastões extras (por inexistir qualquer penalidade na ausência de confissão da participação em cartéis conexos). Ademais, em muitos países, permitiu-se o uso de tal instituto várias vezes em relação à mesma sanção. Assim, ao invés de um instrumento para a repressão de cartéis, a leniência plus, em tais sistemas, ter-se-ia transformado em uma ferramenta para conspiradores, tendo efeito pró-colusivo por funcionar como incentivo para a formação de cartéis em mercados conexos.

285 Aqui serão apresentadas apenas as características principais dos programas de leniência dos Estados Unidos, da União Europeia e do Brasil. Para uma análise de programas de leniência em outras jurisdições, vide INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). ICC Leniency Manual: Launch Edition. ICC Commission of Competition. Paris, April 2016. Disponível em: <http://www.iccgermany.de/fileadmin/user_uplo ad/Content/Wettbewerb/ICC-Leniency-Manual-Launch-Edition.pdf>. Acesso em: 12/09/2016; MELLO, Magno Antonio Correia de. Programas de Leniência em Países Membros e Parceiros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, Área VIII – Administração e Serviço Público. Brasília, novembro de 2015. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2644 2>. Acesso em: 12/09/2016.

ações civis de reparação (follow-on actions), desde que coopere com os autores destas287. Dessa forma, o programa de leniência norte-americano288 foi sendo aperfeiçoado, tendo obtido muito sucesso, o que pode ser traduzido na elevação dramática no número de persecuções a cartéis internacionais289.

Por sua vez, a União Europeia, muito embora já tivesse antes reduzido multas ou até mesmo se abstido de aplicá-las em decorrência da cooperação prestada pelo agente, adotou, inspirada pelo sucesso obtido nos Estados Unidos, um programa de leniência290 em 1996, o qual foi posteriormente reformado em 2002 e em 2006291. Tal qual no regime norte-americano, na UE, também pode ser concedida a imunidade de qualquer multa (leniência completa) à empresa292 que primeiro293 submeter informações e evidências referentes a um cartel cuja investigação ainda não foi iniciada ou em relação ao qual, ainda que já sob investigação, a Comissão não possui provas suficientes para a condenação. A seu turno, os agentes que não sejam elegíveis para obter a imunidade podem-se beneficiar de uma leniência parcial (redução das multas), desde que apresentem à Comissão elementos que acresçam um valor às provas já em posse da autoridade. A redução das multas pode variar de 50 a 20 %, de acordo com a data na qual as provas suplementares foram apresentadas (ou seja, a posição do agente na ordem de

287 Isto é, o beneficiário da leniência passa a ser civilmente responsável apenas em relação aos danos que causou e em relação a seus próprios clientes.

288 Apesar de o sistema norte-americano conceder a leniência apenas ao primeiro agente a se apresentar diante da autoridade antitruste (regime do winner takes all, com um sistema de markers), é possível que um agente inelegível para a leniência (o second in the door) se aplique para o plea bargaining (ou plea agreement), através do qual, em se admitindo culpado e cooperando com a autoridade (second-in cooperation), obtém algum benefício, o qual é determinado caso a caso. Para uma maior análise desse instituto, vide HAMMOND, Scott. The U.S. Model of Negotiated Plea Agreements: a Good Deal with Benefits for All. OECD Competition Committee Working Party No. 3. Paris, October 17, 2006. Disponível em: <https://www.justice.gov/atr/speech/u

s-model-negotiated-plea-agreements-good-deal-benefits-all>. Acesso em: 11/09/2016.

289 WILS, Wouter. op. cit. p. 215/216; EVENETT, Simon; LEVENSTEIN, Margaret; SUSLOW, Valerie. op. cit. p. 1238; BORRELL, Joan-Ramon; JIMÉNEZ, Juan Luis; GARCÍA, Carmen. op. cit. p. 108. As regras do programa de leniência norte-americano estão previstas no Corporate Leniency Policy, de 10 de agosto de 1993, e no Individual Leniency Policy, de 10 de agosto de 1994, ambos do U.S. Department of Justice. Para um maior esclarecimento de tais regras, vide igualmente HAMMOND, Scott; BARNETT, Belinda. Frequently Asked Questions Regarding the Antitrust Division’s Leniency Program and Model Leniency Letters. U.S. Department of Justice, November 19, 2008. Disponível em: <https://www.justice.gov/atr/file/810001/download>. Acesso em: 11/09/2016.

290 Na União Europeia, leniência se refere tanto à imunidade completa (immunity), como também a outras reduções das sanções.

291 Em 2006, a União Europeia instituiu também o Programa de Leniência Modelo da Rede Europeia da Concorrência (European Competition Network Model Leniency Programme), o qual foi revisado em 2012. O objetivo desse instrumento foi servir de parâmetro para uma harmonização dos programas de leniência dos Estados-Membros, além de ter introduzido um procedimento de aplicação sumária uniforme para casos que envolvam mais de três Estados-Membros.

292 Vale ressaltar que inexiste, no Direito da Concorrência da União Europeia, a responsabilização de pessoas físicas, de sorte que não há programas de leniência destinados a diretores, empregados ou qualquer outra pessoa natural. Ademais, repise-se que, em tal sistema, a prática de cartel não configura crime, a leniência não dizendo respeito, portanto, a sanções penais.

apresentação perante a Comissão) e o grau de valor agregado. Desse modo, ainda que exista uma corrida pelas senhas, o programa de leniência europeu não configura propriamente um regime do winner takes all, sendo melhor caracterizado como um sistema do quid pro quo, visto que, apesar de apenas conceder a leniência completa ao primeiro denunciante, também confere benefícios aos posteriores294, de acordo com o caráter decisivo da prova apresentada295-296.

Já no Brasil, o programa de leniência foi introduzido no ano 2000, tendo sido reformado pela Lei n.º 12.529/2011. Permite-se que empresas ou indivíduos participantes de um cartel celebrem com o CADE, através da Superintendência-Geral, acordo de leniência, por meio do qual cessam a conduta ilegal, confessam a prática ilícita e cooperam com as investigações, identificando os demais coconspiradores e apresentando informações e documentos que comprovem a infração. Em troca, confere-se ao delator a imunidade administrativa e criminal297, caso a autoridade antitruste não tenha conhecimento prévio do ilícito, ou a redução de um a dois terços das penalidades aplicáveis, de acordo com a efetividade da informação prestada e a boa-fé do agente, na hipótese de o procedimento administrativo já ter sido iniciado298. Tal qual nos Estados Unidos, o programa de leniência brasileiro consubstancia um

294 É bem verdade que, nos Estados Unidos, conforme antes visto, os agentes que não são os primeiros a se apresentarem também podem beneficiar-se de uma redução das sanções, através da celebração de um plea agreement. Trata-se, porém, de instituto distinto da leniência, muito embora ambos possuam resultados práticos semelhantes.

295 MARCHAL, Florian. op. cit. p. 76/77; WILS, Wouter. op. cit. p. 210/218; FEESS, Eberhard; WALZL, Markus. Quid-Pro-Quo or Winner-Takes-It-All? An Analysis of Corporate Leniency Programs and Lessons to Learn for US and EU Policies. Research Memorandum No. 59, Maastricht University School of Business and Economics, 1 January 2005. Disponível em: <https://cris.maastrichtuniversity.nl/portal/files/1144059/guid-89205720-706f- 4ddb-89a8-3aa1e71508f8-ASSET1.0>. Acesso em: 11/09/2016. p. 2/4. As regras do programa de leniência da UE estão previstas no 2006 Leniency Notice (Comunicação da Comissão Relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis).

296 Em relação à responsabilização civil do beneficiário da leniência, a Diretiva (UE) 2014/104/UE previu, em seu art. 11, 4, tratamento mais favorável para ele. Assim, o agente que assinar acordo de leniência será civilmente responsável perante seus adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos, mas apenas o será em relação aos demais consumidores lesados se a reparação integral não puder ser obtida das outras empresas implicadas na mesma infração.

297 Pelo fato de o cumprimento do acordo de leniência acarretar a imunidade do processo criminal referente aos crimes contra a ordem econômica (tipificados na Lei n.º 8.137/1990) e aos demais crimes conexos (consoante o art. 87 da Lei n.º 12.529/2011), muito se criticou que o CADE, enquanto autoridade administrativa, pudesse conceder a referida imunidade. Para minimizar tais críticas, embora não seja uma exigência legal, a experiência do CADE busca viabilizar a participação do Ministério Público (titular privativo da ação penal pública e detentor de atribuição criminal), a fim de conferir maior segurança jurídica aos participantes do programa de leniência, além de facilitar a investigação criminal do cartel. Nesse sentido, a cooperação entre as autoridades administrativa e criminal tem-se mostrado bastante eficaz (MARTINEZ, Ana Paula. Challenges Ahead of Leniency Programmes: The Brazilian Experience. p. 261).

298 Cabe ressaltar que, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e na União Europeia, a leniência, no Brasil, não tem qualquer efeito sobre a responsabilidade civil do seu beneficiário, ou seja, este não é eximido de responder por danos concorrenciais em eventuais ações privadas de indenização, continuando responsável solidário com os demais coconspiradores. Entretanto, na minuta de Exposição de Motivos do projeto de nova resolução que o CADE submeteu à consulta pública em 7 de dezembro de 2016, foram elaboradas propostas legislativas (a serem submetidas à apreciação do Congresso Nacional) sobre aspectos cíveis do ajuizamento de ações de reparações por danos concorrenciais, sugerindo a inserção de quatro parágrafos no art. 47 da Lei n.º

regime do winner takes all, visto que só pode dele ser beneficiado o primeiro agente a se apresentar perante a autoridade. Nesse contexto, também foi implantado um sistema de senhas, permitindo que o proponente que ainda não esteja de posse de todas as informações e documentos necessários complete o pedido a posteriori, sendo-lhe garantida a posição de apresentação299. Além disso, o sistema de markers é igualmente importante para os agentes que não tenham habilitação para a leniência, visto que lhes é permitida a celebração de termo de compromisso de cessação (TCC), também lhes conferindo benefícios, tais como a redução da contribuição pecuniária devida, proporcionais à ordem na fila de espera e à relevância da colaboração prestada300.

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