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O caso Timberlane, a doutrina da cortesia e a regra jurisdicional da razão

2 DA INTERNACIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS ANTICOMPETITIVAS: OS

3.2 A DEFINIÇÃO DE EFEITOS PARA FINS DE APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL

3.2.1 A evolução da teoria dos efeitos nos Estados Unidos

3.2.1.2 O caso Timberlane, a doutrina da cortesia e a regra jurisdicional da razão

Visando a amenizar as comentadas reações internacionais à aplicação da teoria dos efeitos, os Estados Unidos passaram a adotar algumas medidas de modo unilateral. A primeira delas tratou-se da adoção, pelos tribunais, da chamada doutrina da cortesia (comity doctrine), com o objetivo de contrabalançar, caso a caso, os mais diversos interesses nacionais e estrangeiros envolvidos, para, só então, decidir pelo exercício, ou não, da jurisdição extraterritorial em matéria antitruste178.

A doutrina da cortesia surgiu com o caso Timberlane179, em 1976, no qual a Timberlane acusou o Bank of America, sua subsidiária hondurenha e outros agentes, incluindo oficiais do governo de Honduras, de terem conspirado para lhe impedir a exploração de madeira no referido país centro-americano, através de suas subsidiárias, e a exportação dos produtos para os Estados Unidos. O tribunal considerou que o teste dos efeitos, estabelecido no caso Alcoa, era incompleto, por ignorar os interesses dos outros países. Nesse sentido, para superar os inconvenientes e as limitações da teoria dos efeitos, a corte estabeleceu um critério jurisdicional, fundado em um exame que buscou conciliar o teste dos efeitos com os interesses concorrentes dos Estados estrangeiros: a regra jurisdicional da razão (jurisdictional rule of reason). A análise para determinar a legitimidade do exercício da jurisdição extraterritorial deveria ser fundada num teste tripartite (tripartite jurisdictional rule of reason test). Desse modo, os dois primeiros critérios eram aqueles já previstos no teste dos efeitos, isto é, a restrição alegada deveria ter efeitos reais ou intencionados no território norte-americano e tal afetação deveria ser de magnitude tal que poderia ser conhecida como uma violação do Sherman Act. O terceiro critério introduzido foi a cortesia, sendo necessário verificar se os interesses dos Estados Unidos e os vínculos a tal país eram suficientemente fortes, quando contrapostos aos interesses e vínculos referentes aos outros Estados, para justificar o exercício da jurisdição extraterritorial. Assim, muito embora os efeitos constatados no caso Timberlane se enquadrassem positivamente no teste dos efeitos, a corte decidiu que a avaliação do terceiro elemento afastava a competência dos tribunais norte-americanos180.

Para clarificar o teste tripartite, especificamente em relação a seu terceiro elemento, foram elencados alguns fatores a serem considerados pelo tribunal quando da ponderação entre

178 SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 140/141; JAEGER JÚNIOR, Augusto. op. cit. p. 77. 179 Caso Timberlane Lumber Co. v. Bank of America, 549 F.2d 597, 9th Cir. (1976).

180 SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 146/147; CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. op. cit. p. 106/107; WEBBER, Marianne Mendes. op. cit. p. 54/55; ALFORD, Roger. op. cit. p. 11; SWAINE, Edward. Cooperation, Comity, and Competition Policy: United States. In GUZMAN, Andrew (ed.). Cooperation, Comity, and Competition Policy. New York: Oxford University Press, 2011. p. 10; POPOFSKY, Mark. op. cit. p. 2424.

os interesses dos Estados Unidos e dos outros países, compondo o chamado teste da balança de interesses (balancing of interests test). No caso Timberlane, sete foram os fatores apresentados: (i) o grau de conflito com o direito ou a política estrangeira; (ii) a nacionalidade ou submissão das partes a um poder soberano e as localizações ou principais locais de negócios das empresas; (iii) a extensão dentro da qual pode ser esperado o cumprimento da hipotética decisão em cada Estado; (iv) a importância relativa dos efeitos nos Estados Unidos em comparação com aqueles havidos em outros países; (v) a extensão dentro da qual há uma intenção explícita em prejudicar ou afetar o comércio norte-americano; (vi) a previsibilidade de tal afetação; e (vii) a importância das violações alegadas em relação a uma conduta dentro dos Estados Unidos, quando comparada com a violação no exterior181.

Posteriormente ao caso Timberlane, a regra jurisdicional da razão recebeu, num primeiro momento, uma calorosa recepção, e as cortes passaram a adotá-la para determinar sua competência182. Passou-se, inclusive, a ser obrigatória a declaração, pelos procuradores do governo norte-americano, de que o teste da balança de interesses havia sido considerado antes da interposição de ações antitruste perante os tribunais183.

Entretanto, começou-se a destacar algumas dificuldades inerentes à doutrina da cortesia, como o fato de o Judiciário ter de realizar análises políticas, diplomáticas e econômicas, o que é bastante questionável. Ademais, a ausência de delimitação do próprio conceito de cortesia e do modo pelo qual ela deve ser aplicada tornam-na extremamente inconsistente, sujeitando seu entendimento à discricionariedade das cortes. Nesse sentido, nas décadas de setenta e oitenta, tanto a jurisprudência como a doutrina se dividiram entre a aplicação, ou não, da doutrina da cortesia e sobre a sua importância para a definição da jurisdição extraterritorial dos Estados Unidos, o que resultou em soluções muito divergentes. Assim, por exemplo, no caso Laker Airways184, o tribunal considerou que a análise com base na cortesia era apenas optativa, decidindo não aplicá-la. Já no caso Hartford185, a Suprema Corte norte-americana se manifestou pela primeira vez sobre a questão, afirmando que a doutrina da cortesia não era aplicável à

181 SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 147/148; CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. op. cit. p. 107/108; DABBAH, Maher. The Internationalisation of Antitrust Policy. p. 168.

182 Por exemplo, o caso Mannington Mills, Inc.v. Congoleum Corp., 595 F.2d 1287, 3rd Cir. (1979). Tal julgado, entretanto, não utilizou, no teste da balança de interesses, exatamente os mesmos fatores definidos no caso Timberlane, muito embora haja semelhanças entre eles. Por sua vez, o Restatement Third of Foreign Relations Law, ainda que diretamente influenciado pelo caso Timberlane, também estabeleceu critérios parcialmente distintos. Isso demonstra a discordância, existente na jurisprudência norte-americana, quanto aos elementos que deveriam ser utilizados no aludido teste (SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 148/149).

183 SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 147/148; CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. op. cit. p. 107/108; ALFORD, Roger. op. cit. p. 12.

184 Caso Laker Airways v. Sabena, Belgian World Airlines, 731 F.2d 909, D.C. Circuit (1984). 185 Caso Hartford Fire Insurance v. California, 509 U.S. 764, U.S.Cal. (1993).

hipótese sob exame por inexistir um verdadeiro conflito entre as leis nacionais e as estrangeiras. Entretanto, a decisão não foi clara em determinar se a cortesia havia sido descartada em termos absolutos ou se ela deveria ser considerada apenas quando houvesse um verdadeiro conflito. A jurisprudência que seguiu a Hartford reproduziu tal confusão e incerteza, proferindo decisões que interpretaram a questão de formas variadas186.

Sob esse prisma, na sequência do caso Hartford, a doutrina da cortesia perdeu bastante de sua força, ainda que mais recentemente ela esteja voltando a ter um papel de destaque. Todavia, seja usada, ou não, pelos tribunais, é inegável que ela tem grande relevância na evolução da aplicação extraterritorial do Direito da Concorrência. Embora não tenha alterado propriamente o conceito de efeitos, tendo estes continuado a ser caracterizados de acordo com o teste dos efeitos, a regra jurisdicional da razão instituiu um critério adicional para a avaliação dos efeitos que permitem justificar o exercício da jurisdição em caráter extraterritorial, com o fito de preservar os interesses dos outros Estados envolvidos com a questão.

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