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2 DA INTERNACIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS ANTICOMPETITIVAS: OS

3.1 A APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL DO DIREITO DA CONCORRÊNCIA:

3.1.1 Os fundamentos da extraterritorialidade do antitruste

Diante da internacionalização das práticas anticompetitivas, os Estados passaram a desenvolver estratégias capazes de reprimir tais condutas, vez que o aparato antitruste até então existente não permitia o controle de empresas com atuação transnacional. A primeira de tais técnicas, ainda hoje a mais utilizada, é a aplicação extraterritorial do Direito da Concorrência.

O Direito Internacional adota, como regra geral, a territorialidade da jurisdição do Estado, de sorte que ele só pode exercer sua jurisdição (esta entendida em seu sentido amplo, como o poder soberano de legislar, aplicar e executar as normas jurídicas) dentro de seu território. Todavia, de forma excepcional, é possível que a jurisdição seja exercida extraterritorialmente138, sobre pessoas, direitos ou relações jurídicas existentes além das fronteiras estatais139. Foi através do caso Lotus, julgado pela então Corte Permanente de Justiça Internacional, em 1927, que surgiu o fundamento para um Estado estender sua jurisdição para além de seus limites territoriais, com o fito de tutelar qualquer fato ou ato que entenda pertinente. Inicialmente aplicada no âmbito do Direito Penal, a aplicação extraterritorial da lei doméstica foi alargada para outros ramos do direito, dentre os quais o antitruste140.

Sob esse prisma, a aplicação extraterritorial da legislação antitruste decorre da evolução e consolidação do Direito da Concorrência em se adaptar ao avanço da internacionalização da

138 O termo extraterritorialidade é criticado por alguns, os quais afirmam que a jurisdição não pode ser exercida pelas autoridades de um Estado em outro país, salvo se existir o consentimento expresso deste último. Dessa forma, aduz-se que a terminologia é arcaica e traduz ficções insustentáveis modernamente. Nesse sentido, vide a análise histórica da extraterritorialidade e os argumentos que justificam as críticas ao termo em CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. Direito Antitruste e Relações Internacionais: Extraterritorialidade e Cooperação. Curitiba: Juruá, 2001. p. 65/89. Apesar de tais críticas, considera-se que tal denominação, além de já consagrada, não é incorreta, vez que o fenômeno se refere aos casos em que a jurisdição, apesar de exercida dentro das fronteiras do Estado, afeta pessoas, atos e propriedades situados fora dos limites geográficos do Estado (SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. Direito Antitruste: Aspectos Internacionais. Curitiba: Juruá, 2006. p. 40/41).

139 MARTINEZ, Ana Paula. Jurisdição Extraterritorial em Direito da Concorrência: Balanço e Perspectivas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 101, jan./dez. 2006. p. 1047; OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. op. cit. p. 337/338.

140 O tratamento do assunto neste trabalho visa apenas à contextualização das questões que serão a seguir discutidas. Para uma análise dos critérios utilizados pelas legislações na determinação da lei aplicável, bem como da evolução da extraterritorialidade e de seus fundamentos, vide JAEGER JÚNIOR, Augusto. op. cit. p. 52/68; SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 38/76; FARIA, José Ângelo Estrella. Aplicação Extraterritorial do Direito da Concorrência. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 27, n. 105, jan./mar. 1990. p. 19/46; BASEDOW, Jürgen. op. cit. p. 1039/1042.

economia mundial. Ora, como visto, essa mudança é um imperativo categórico diante do aumento das relações comerciais internacionais e da atuação de empresas transnacionais, sob pena de o Direito Antitruste se tornar inócuo em sua tentativa de proteção dos livres mercados. Contribui igualmente nesse sentido a típica natureza protecionista das legislações antitruste, cada país tendendo em se preocupar apenas com a preservação da concorrência em seu mercado interno141.

Desse modo, fez-se necessário atenuar o princípio da territorialidade para proteger a ordem econômica nacional, encontrando-se justificativa no direito fundamental dos Estados à autodeterminação. Em realidade, a manutenção irrestrita do princípio da territorialidade na área do Direito Econômico colocaria as empresas já poderosas em uma posição que as permitiria fugir de toda regulação nacional, de sorte que não seria difícil de imaginar a transformação de certos países em paraísos antitruste, nos quais seria possível a realização de condutas lesivas à concorrência de vários mercados nacionais, sem que fossem submetidas a qualquer forma de repressão142.

Portanto, diante da inexistência de um direito internacional da concorrência aplicável às práticas que restrinjam a concorrência em mais de um país143, estabeleceram-se exceções à territorialidade, de modo a se permitir a aplicação do direito nacional de determinado Estado a tais fatos exteriores a seu território144.

Os Estados Unidos foram os pioneiros na aplicação extraterritorial do Direito Antitruste. O princípio da territorialidade foi sendo flexibilizado ao longo da primeira metade do século XX145, a extraterritorialidade sendo finalmente consagrada em 1945, com o caso Alcoa146, que instituiu a teoria dos efeitos (effects doctrine). Nesse julgado, foi aplicada a Section 1 do Sherman Act para condenar um cartel formado fora do território norte-americano, por agentes estrangeiros e sem a participação de empresas daquele país, mas dentro de cujo território foram

141 CASELLA, Paulo Borba. Extraterritorialidade e Proteção da Livre-Concorrência. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 96, 2001. p. 502/503; MARTINEZ, Ana Paula. Jurisdição Extraterritorial em Direito da Concorrência: Balanço e Perspectivas. p. 1047/1048.

142 DABBAH, Maher. The Internationalisation of Antitrust Policy. p. 163.

143 Em extenso estudo sobre a internacionalização do Direito da Concorrência, Jaeger Júnior apresenta quatro potenciais perspectivas para a consubstanciação de um direito internacional da concorrência. Além do unilateralismo (realizado através da aplicação extraterritorial do direito nacional e que, no fundo, não se trata propriamente de direito internacional, mas doméstico), ele aponta o multilateralismo, o bilateralismo e o regionalismo, os quais, apesar de avanços, ainda não foram capazes de criar um verdadeiro direito internacional da concorrência, com eficácia para regular condutas anticompetitivas transfronteiriças (JAEGER JÚNIOR, Augusto. op. cit).

144 JAEGER JÚNIOR, Augusto. op. cit. p. 33/34; SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 40/41. 145 Para uma análise da evolução jurisprudencial, nos Estados Unidos, até se chegar à decisão no caso Alcoa, vide CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. op. cit. p. 97/106; WEBBER, Marianne Mendes. Direito da Concorrência e Cooperação Jurídica Internacional. Belo Horizonte: Arraes, 2015. p. 46/53.

produzidos efeitos nocivos. Assim, de acordo com a referida teoria, o Estado possui jurisdição sobre todos os atos praticados no exterior que causem efeitos no território nacional, isto é, independentemente de uma dada empresa estar localizada em um país estrangeiro, as condutas limitadoras da concorrência praticadas por ela serão reguladas pelo Direito Antitruste nacional do país em cujo território os efeitos de tais condutas forem sentidos. Dessa forma, é irrelevante a nacionalidade da empresa, o local da prática ou o fato de o país no qual a conduta ocorreu considerá-la lícita. Trata-se, portanto, de uma ficção pela qual o Estado passa a submeter a sua jurisdição fatos que, embora ocorridos fora de seu território, nele produzam efeitos anticompetitivos. A partir desse célebre julgado, a teoria dos efeitos passou a servir de base às decisões subsequentes, tendo sido, inclusive, ratificada pela Suprema Corte norte-americana147. Ademais, ela também foi adotada por inúmeros outros sistemas jurídicos, como, por exemplo, na Alemanha, na Suíça, na Austrália, no Canadá e no Brasil148.

Já a União Europeia, apesar de não reconhecer formalmente a teoria dos efeitos, também estende sua jurisdição através da aplicação extraterritorial de seu Direito da Concorrência. Por ter sido sempre reticente, e inclusive crítica, à teoria dos efeitos, sobretudo no que toca a sua conformação ao Direito Internacional, a União Europeia buscou soluções alternativas para justificar a submissão de atividades econômicas estrangeiras a sua jurisdição, fundadas na localização do comportamento anticoncorrencial e que se traduzem nas teorias da unidade econômica da empresa (economic entity doctrine) e do local da implementação do comportamento (implementation doctrine)149. Dessa forma, embora com um fundamento

147 Na seção seguinte, serão analisadas mais detidamente a extraterritorialidade do antitruste e a teoria dos efeitos nos Estados Unidos, sobretudo no que tange à definição de efeitos. Para outras questões, vide SILVA, Valéria Guimarães de Lima e. op. cit. p. 77/182; JAEGER JÚNIOR, Augusto. op. cit. p. 68/86; ALFORD, Roger. The Extraterritorial Application of Antitrust Laws: The United States and European Community Approaches. Virginia Journal of International Law, Vol. 33, No. 1, Fall 1992. p. 6/28.

148 MARTINEZ, Ana Paula. Jurisdição Extraterritorial em Direito da Concorrência: Balanço e Perspectivas. p. 1050/1053; WEBBER, Marianne Mendes. op. cit. p. 52/53; CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. op. cit. p. 104; JAEGER JÚNIOR, Augusto. op. cit. p. 74/76; DABBAH, Maher. The Internationalisation of Antitrust Policy. p. 161/162; KESKIN, Ali Cenk. Pour un Nouveau Droit International de la Concurrence. Paris: l’Harmattan, 2009. p. 208/211; ARRUDA, Vivian Anne Fraga do Nascimento. op. cit. p. 109/111.

149 Inicialmente, desenvolveu-se a teoria da unidade econômica da empresa, consagrada no caso Dyestuffs, julgado em 1972 pelo então Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, através da qual é possível responsabilizar a empresa matriz localizada no estrangeiro pelo comportamento anticoncorrencial praticado por sua subsidiária situada no território da UE, desde que demonstrada a submissão desta àquela. Posteriormente, para superar as limitações inerentes à teoria da unidade econômica (sobretudo, a impossibilidade de submissão das empresas situadas no exterior que não possuam quaisquer subordinadas no território da UE), foi estabelecida a teoria do local da implementação do comportamento ou da localização do comportamento anticoncorrencial, através do caso Wood Pulp, julgado em 1988. Tal teoria justifica a jurisdição da União para abranger os comportamentos anticompetitivos de empresas que não possuem qualquer intermediário dentro do território da UE, desde que neste ocorra a implementação de tais atos. Dessa forma, basta que o adquirente do bem ou do serviço esteja estabelecido na UE para que a conduta seja considerada aí executada e, portanto, submetida ao Direito da UE (GERADIN, Damien; REYSEN, Marc; HENRY, David. Extraterritoriality, Comity, and Cooperation in EU Competition Law. In GUZMAN, Andrew (ed.). Cooperation, Comity, and Competition Policy. New York: Oxford University Press,

distinto, a aplicação extraterritorial do Direito Antitruste na UE é uma realidade, tendo produzido quase os mesmos resultados práticos daqueles decorrentes da teoria dos efeitos150. Por sua vez, o Brasil prevê expressamente a teoria dos efeitos em sua legislação antitruste. Apesar de só ter sido, de fato, positivada no art. 2º da Lei n.º 8.884/1994, a doutrina nacional e a jurisprudência do CADE já contemplavam anteriormente a extraterritorialidade do Direito da Concorrência brasileiro, com base na teoria dos efeitos151. A Lei n.º 12.529/2011 reproduziu em seu art. 2º o mesmo teor da disposição da legislação anterior, estabelecendo que aquela deverá ser aplicada, “sem prejuízo de convenções e tratados de que seja signatário o Brasil, às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos”. Logo, prevê-se tanto o princípio da territorialidade estrita (aplicação da lei brasileira aos comportamentos anticoncorrenciais que sejam praticados em território nacional), como a teoria dos efeitos (aplicação extraterritorial do direito nacional quando os efeitos das condutas antitruste tiverem ocorrido ou tenham a potencialidade de ocorrer no território brasileiro)152-153.

3.1.2 Limitações ao exercício da jurisdição extraterritorial em matéria de defesa da concorrência

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