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O SILÊNCIO INICIA…

CAPÍTULO 2 – A FISSURA DO SILÊNCIO

2. A RASTREAR O SILÊNCIO

Toda a pesquisa sonora precisa concluir com o silêncio – esse

pensamento requer que se espere por seu desenvolvimento nos capítulos finais.

(Schafer, 1997, p. 29)

Do latim “eventos, evenire” que significa “vir de”, “chegar”, o acontecimento silen- cioso é aqui perspetivado a partir da singularidade dos silêncios que, em nós, mar- caram e marcam fundo o que somos e o que fazemos.

A enunciação de um facto-problema a partir da vivência subjetiva do silêncio em acontecimentos particulares e, em especial, do confronto com o silêncio-aconte- cimento- 4’33’’de John Cage, promoveu em nós, de há três décadas para cá, um questionamento em torno da força hermenêutica do silêncio enquanto potência de escuta para a criação e a vida.

A vivência atrás mencionada, povoada por muitos outros silêncios, levou-nos a questionar o porquê da frágil presença do silêncio, hoje, entre nós.

Daí desejarmos segui-lhe o rasto, apalpar o seu modo de estar no mundo, numa es- pécie de silenciosíssimo estado-da-arte já anunciado em sotto voce, e dar caminho e um limite – uma finisterra – ao que ambicionamos fazer.

Assim mesmo! O pressentimento de que o silêncio se está a extinguir em nós. Essa dúvida, persistente em nós desde há muito tempo, exige-nos uma atenção profunda sobre o que temos à nossa frente. Esta intuição faz-nos estremecer e é parecida com o jeito que temos quando viramos o corpo para algo que nos acontece e por isso mesmo, ao fazermos zoom, isso mesmo nos perturba e até nos pode manietar. Suspeitamos deste silêncio por imaginá-lo como o nosso pied-à-terre – refúgio íntimo e pessoal – capaz de atitudes desafiadoras face ao que ouvimos e ao que temos vindo a ser. Assim, ao escrevermos sobre o silêncio expomos o nosso “manifesto” estético, cultural e político.

Esse silêncio de que agora falamos, tem a tarefa e o dever de recuperar o som, a pa- lavra, e o que deles constitui o seu sentido primeiro e original. Um silêncio capaz de expor o que vai por dentro dos sons e das palavras.

Torna-se assim, este silêncio de que agora falamos, um espaço-tempo que dá acesso a outros mundos e nos permite ficar à espera de ir ao encontro do enigmático que as artes contemplam, iniciando-nos a uma espécie de poesia/música, uma espécie de

musilíngua16, essa sim, que nos ajuda a ir ao encontro de conhecimentos desconhecidos. Temos a ideia de que este silêncio que perseguimos, há mais de três décadas, nos apoiará nas experiências que desejamos ter sobre aquilo que provavelmente ainda não conseguimos entender.

Se o mundo – talvez seja melhor falarmos de mundos - está plenamente justificado enquanto fenómeno estético, o que devemos fazer nós, o que deveremos nós andar a fazer, para o conhecermos?

Admitimos que viajar em silêncio se torna um imperativo. E o que sabemos nós das viagens? Que todas elas têm em comum um perigo. Ora, esse perigo faz incorporar em nós um deslocamento, um estremecer.

Mesmo numa leitura rápida podemos imaginar-nos a encontrar o singular, o estra- nho, o não-familiar, mesmo o novo.

Porque será que partimos em silêncio? Para deixar para trás a monotonia. Por ter- mos medo que as manifestações artísticas e expressivas se tenham deixado enredar, se tenham deixado condicionar e se tenham transformado em meros ornamentos, em fechamentos.

Quando viajamos em torno do 4’33’’de John Cage o que sentimos, após a perple- xidade dos primeiros momentos, é que uma obra de arte como esta se manifesta enquanto algo profundamente sensorial.

4’33’’ disse-nos, na viagem que com ela empreendemos, que a contemporaneidade artística tem a ver, sobretudo, com a vida em si mesmo. Ela não nos interpela se ino- va ou não. Vem muito simplesmente dizer-nos que Arte é para ser, de facto, vivida. Tal como a vida.

4’33’’, para lá do silêncio revelador de muitas outras audições possíveis, faculta a possibilidade de experimentar fruições estéticas que iluminam, com uma luz muito própria, outros espaços-tempos desafiadores e propulsores de outros imaginários. 4’33’’ foi e é algo que nos empurra, nos incita a andar. A sermos andarilhos. Prova- velmente para nos dizer que devemos avançar, ir ainda mais longe.

Algo nos diz, algo nos aponta para ouvirmos 4’33’’ como quem aspira a pensar. É, possivelmente, a atividade nuclear, digamos assim, dos artistas contemporâneos. Precisamos, por isso mesmo, de artistas-pensadores como do pão para a boca.

(silere)

Esta ideia propõe-nos enfatizar o desejo de vermos o mundo como um espaço humanizado e profundamente ligado, inseparavelmente colado, às ações e investi- gações mais contemporâneas.

Este silêncio de que falamos é uma espécie de exílio, uma espécie de estímulo para um pensar dentro e para um recolhimento interior suscetível de partir em busca da lucidez, da maturidade.

Um silêncio que, por isso mesmo, afirmará que o mundo e a nossa existência se justificam intimamente enquanto pares criadores de manifestações estéticas.

Que procura este silêncio?

De um instante estético, de um vislumbre desse instante capaz de nos ajudar a um recolhimento pelo interior de nós mesmos. Para pensar.

Este momento crucial, no nosso entendimento, tornou claro o pensamento artístico contemporâneo: o de colocar o conceito num sítio preferencial. Tal como se imaginássemos uma obra de arte como uma teoria e vice-versa.

Ora, estamos a falar de um silêncio que assinala a marcha de um tempo frágil e que entende as dificuldades que temos nos dias que correm.

Um silêncio quase igual à necessidade que as máquinas, ou quaisquer outros artefactos, têm de ter períodos de repouso.

Exatamente, um silêncio como pousio.

E para quê? Para podermos pensar por fora, para podermos refletir sobre a nossa condição, para podermos empenhar-nos em agir culturalmente e protagonizar uma dissonância e um alerta contra o momento que a cultura atual atravessa.

Um silêncio como uma espécie de silêncio profundo, capaz de esculpir e desenhar espaços e tempos promissores de outras possíveis transformações.

Uma espécie de silêncio capaz de nos empurrar em direção ao nada. Um silêncio obreiro de pensamentos e de escritas, até porque todo o silêncio é pouco para nos ajudar a registar o que nos vai ficando no pensamento.

Esse silêncio, essa espessura do pensamento, assim posto em cena poderá até expor as dificuldades que hoje temos em aceitar o triunfo exclusivo da razão, da vitória do

Este questionamento corresponde à vontade de querer deslocar e de instabilizar as condições que constroem e domesticam o presente. Um silêncio questionador da exatidão retilínea do número, da transparência e da utilidade do calculismo.

Um silêncio pensador que, nas palavras de Derrida (2003), se exprime assim: Chamamos aqui pensamento àquilo que por vezes comanda, de acordo com uma lei acima das leis, a justiça desta resistência ou desta dissidência. É também o que põe em movimento ou inspira a desconstrução como justiça. (p. 85)

Um silêncio posto a caminhar como quem deseja ter o pensamento solto para que se exponha por inteiro, autêntico, singular e a ser esvaziador de totalitarismos.

Um silêncio parceiro da vontade que todas as vanguardas têm de se inquietarem, de se projetarem e de se colocarem perante o que pode ter lugar e o que poderá acontecer amanhã. De fazerem reset, de se tornarem opacas, negativas, impenetráveis e indizíveis. Um silêncio, enquanto outra oportunidade de voltar a nascer e, por causa disso, atrevermo-nos a redescobrir a arte, a música.

Um silêncio repossibilitador e capaz de curvar a linha recta, capaz de se constituir como um incentivo a uma certa messianicidade (Derrida, Vattimo, 1996), que não um messianismo, por se evidenciar tal qual um desejo cauteloso onde podemos depositar as nossas esperanças.

Uma espécie de ceticismo moderado que, ao mesmo tempo que se demora e atenta a esperanças, não deixa de se constituir, de se habilitar a ser um silêncio sem fim, a um silêncio sem redenção e sem teleologias.

Um silêncio capaz de nos envolver numa declaração sobre o mundo das artes a partir da ideia da intempérie, da turbulência, lugar múltiplo a partir do qual esse mesmo silêncio nos expõe face a manifestações artísticas incomuns e desorganiza- damente surpreendentes.

Como se o silêncio pudesse ser o antídoto e o elixir ideal para o rejuvenescimento de um qualquer manifesto artístico.

Assim posto, este silêncio só poderia existir a partir de uma narrativa errante, uma deambulação pelo mundo, sabendo que este vive transtornado.

E assim vemos esse silêncio como a história de registar, de escrever o que a vida nos mostra. Um silêncio afirmado na ideia de que nunca chegamos por acaso à música, à poesia, à literatura.

Talvez seja aqui que este silêncio de que falamos se abre à responsabilidade desmedida da desmesura.

É aí que Derrida (2003) nos diz que “nada se faz quando não se faz o impossível! Nada acontece também…” (p. 87) transcrito no posfácio de Fernanda Bernardo incluído no texto do autor em causa.

Fixemo-nos perante um silêncio questionador sobre o que sabemos fazer.

Sem mais demoras: um silêncio acompanhador de John Cage (1912 - 1992) e de Marcel Duchamp (1887 - 1968) quando, quer um quer outro, teorizam artística e implicitamente, e nos dizem que a alteridade é uma saída possível perante a vida, face à angústia existencial.

Um silêncio cepticamente otimista, apesar de tudo.

Quando falamos da alteridade, estamos a falar de algo que sempre esteve aqui, entre ou afastado de nós, mas por vê-lo, ao virar da esquina, bem nos pode dar um impulso face ao mundo que temos pela frente.

É isso: um silêncio promotor de impulsos.

Se é verdade que as artes podem intensificar a nossa vida, diríamos que o silêncio torna claro o trabalho a que nos devemos devotar para podermos continuar vivos. Então a questão que este silêncio nos traz é, num golpe de simplicidade, a de como

é que nos pomos a viver?

De que é feita a vida senão do que imaginamos que ela pode ser?

Agora, pensemos que o que imaginamos para a vida é, seguramente, parte integran- te do que já nos aconteceu. O que separará realmente o que imaginamos do que já nos aconteceu?

E, se por causa desse silêncio que perseguimos, nos imaginássemos como uma instalação cuja curadoria é repartida entre o acontecido e o imaginado? Um procedimento entre aquilo que somos, o que podemos vir a ser e sobre os que connosco trabalham. Um silêncio produtor da ideia já atrás manifestada de que a arte é uma saída para pensar o mundo, uma saída para a música, para a escrita, para a cultura. Uma saída que, tal como Deleuze o diria, poderia ter por definição mínima a resistência e o dissenso, a divergência a respeito do que já está instituído.

A essa resistência devemos fazer corresponder o seu correlato indeterminado em algum processo de criação, posto que será este a perpetuar o movimento de formação do nosso pensamento, predispondo-o a agir.

Assim podemos assistir a um silêncio que alimenta a hipótese de cada um de nós poder ser pensado enquanto instalação.

Talvez estejamos a fomentar a ideia de que ao nascermos colocamos, desde logo, um problema ao mundo: - Estou aqui, e agora? Dirijo-me a quem? Penso em direção a

Duchamp e de Cage? Porque preciso eu deles?

Diríamos que o silêncio de ambos é um silêncio clandestino e irreverente. Exala uma vanguarda exposta a uma intensa clandestinidade que nos mostra que o que promete fazer é realizar coisas para um remetente que ainda não existe.

É esta a promessa indeterminada desta vanguarda que entusiasma o silêncio que nos acompanha.

Sabemos nós porque nos seduz tanto John Cage? Atrevemo-nos a imaginar a sua música, a sua arte como um caminhar atrevido e indeterminado.

Atrevemo-nos a dizer que assim as artes – Duchamp, Cage - nos vão avisando já há algum tempo que não há conclusões na vida. Quando muito, indeterminações.

(silere)

Imaginamos, por isso, este silêncio de que falamos, como algo que insufla na música algo que, antepondo-se e antecipando-se à palavra nos liberta e nos deixa desafiar a razão, a própria lógica das coisas.

Talvez seja este o propósito da música, o propósito das artes. Isso mesmo: o propósito de gritar, pura e simplesmente.

Exatamente um silêncio parecido com o grito de Artaud, expresso anteriormente, quando questionou os intelectuais sobre a funcionalidade das artes.

E assim este silêncio agora exposto aparece disposto a assinalar, a invocar a com- plexidade para o interior das manifestações artísticas por serem estas capazes de estontear as certezas de um mundo excessivamente habitado pela razão.

Estamos convencidos que algumas destas manifestações, acompanhadas por este silêncio astuto e intrometido, poderão ter o efeito de nos modificar. Talvez seja a única coisa que este silêncio põe em cena nesta escrita: a possibilidade de ver os homens a mudarem a posição do corpo e a porem-se em pé. Prontos para caminharem erraticamente. Aí está o silêncio a conjeturar e a permitir-nos viajar para conhecermos a nossa própria geografia. É disso que se trata.

Este grito artaudiano é parecido com as reticências de uma qualquer ortografia, nada dado a pontos finais e nada confortável com linhas retas.

Um silêncio amante de uma representação da condição humana enquanto gigantes- ca reticência, enorme errância e desproporcionada indeterminação.

Um silêncio propiciador da ideia de que as obras de arte, afinal de contas, são como a vida, tal como Tino Sehgal (1976 - )17 as imagina, e vice-versa.

Possivelmente é só isto que este silêncio tem para dizer.

Um silêncio capaz de nos ajudar a detetar o impulso que as obras de arte possuem quando nos arrastam para o imprevisível.

O que daí ficará?

Não sabemos. Talvez uma outra velocidade de vida em nós. Talvez um grito singu- lar. Em nós.

A arte, a música e o seu silêncio em particular, produzem em nós um impulso - vis

motrix – que nos deixa bem posicionados para nos deixarmos levar pelos ventos

erráticos que compõem a vida.

Olhando para nós damos conta de que a edição da nossa vida – pensamos cada vez mais nisso – carece de conceito. Podemos por isso dizer que a indeterminação não descola de nós. Por isso mesmo achamos que o silêncio que aqui trazemos nos ajuda a fazer um melhor escrutínio de todas as interrogações insolúveis que em nós habi- tam: arte, educação, vida, pensamento.

Com esta reflexão sobre o silêncio o que daí advirá?

A possibilidade de escolher. A possibilidade de afirmar que arte/música não significa expor, significa afetar, exaltar, significa dispormo-nos a qualquer impulso.

A possibilidade de afirmar que a educação, na errância da vida, é inevitável e há que fazer escolhas e tomar decisões.

A possibilidade de afirmar que, com o silêncio, poderemos exilarmo-nos, desapare- cermos suavemente e sem ruído para um qualquer outro lugar mais livre.

Como poderemos nós fazer tudo isto?