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O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.8. AS NOVAS POÉTICAS MUSICAIS

E a nova música tomou sobre si todas as trevas e as culpas do mundo. (…) Repercute sem que ninguém a escute, sem eco.

(Adorno, 1989, p. 107)

No século XX há um cruzamento inevitável a ser feito entre a música-pensamento de Cage e aquilo que foi o manifesto Futurista da Música, no dealbar do século, publicado um ano depois do seu nascimento.

Na sua definição futurista em 1913, Luigi Russolo (2006) (1985-1947) declara a Música como uma nova arte, L´Arte dei Rumori e afiança que “antigamente a vida não foi mais que silêncio” (p. 9). Convém salientar, como já tivemos a oportunidade de reparar, que não foi esta a aceção com que John Cage se aproximou da ideia de silêncio. O nosso caso, 4’34’’, assume ele próprio uma outra direção que se afasta de ambos – Russolo e Cage – e por vontade própria.

Reconhecendo a importância que estes criadores têm ao porem na mesa o alarga- mento do território musical, 4’34’’ assume o seu silêncio enquanto exercício crítico e delator sobre as condições de escuta em que os homens se puseram a viver. Dito de uma outra forma, enquanto Russolo e Cage ficam fascinados pela intransitividade

do silêncio, nós buscamos e pugnamos, também, pela sua transitividade.

A adoção desta assunção é importante por nos permitir ativar uma dialética desas- sossegada entre tacere e silere e promover uma ampla discussão interna, em nós, sobre o discurso delicadamente transitivo (taceo) que podemos produzir sobre a pureza sonora de um signo com caraterísticas intransitivas (sileo).

Se Cage já pressentia um mal-estar advindo das condições de regressão da escuta humana – observação pertinente de Adorno (1938) - a que não eram alheias as manobras da indústria cultural, nós ampliamos essa constatação ao darmos conta das dificuldades que o silêncio, enquanto atenção profunda, tem em poder manifestar-se.

(tacere)

De volta a Russolo e ao seu modo particular de perspetivar o silêncio: este defende que durante séculos a vida terá decorrido em silêncio. Antes da industrialização os ruídos eram limitados na sua intensidade, timbre e duração. Surgiu, então, um pen- samento que admitiu que os sons tinham uma origem divina e daí ter surgido a ideia de que o som seria de uma outra natureza, diferente e independente da vida humana. Resultado disso, a música aparece-nos ontologicamente plasmada numa outra dimensão, encavalitada no real e oriunda de um mundo inviolável e sagrado. Esta atmosfera hierárquica, este olhar vertical, obstruiu, durante muito tempo, o movimento de avanço da música para outras dimensões estéticas, que foram sendo manifestamente pesquisadas e experimentadas por outras artes.

No mundo ocidental, os gregos, e a sua teoria musical matemática de origem pi- tagórica, só admitiam determinados intervalos consonantes, pelo que ignoravam, em absoluto, outras possibilidades sonoras, tornando impossível harmonias que desconheciam.

Com o desenvolvimento do modelo tetracórdico grego a música prosseguiu o seu caminho na Idade Média, mas continuamos a vê-la e a perpetuá-la enquanto desen- volvimento do som, num particular intervalo de tempo. Esta visão continua a sua senda e desloca-se para a polifonia renascentista aonde o acorde ainda não existe,

A conjugação das vozes é horizontal e ainda não vertical. O desejo da união simul- tânea de sons diferentes, isto é, o acorde ou som complexo, vai-se manifestando gradualmente – é aqui que acontece o momento charneira da música ocidental (os períodos barroco e clássico) - passando do acorde perfeito aos acordes enriquecidos com dissonâncias pontuais até chegar, no dealbar do século XX, às dissonâncias persistentes e complexas da música contemporânea.

É, pois, possível afirmar que no mundo ocidental, que não noutras zonas do planeta, a arte musical quase sempre procurou a pureza e a clareza do som. De uma outra maneira, o universo sonoro africano revela-nos, e apenas como nota de exemplo, uma maior aceitação pela relação som-ruído e até nos parece ser, nessa circunstância e pela sua natureza tímbrica, um dos espaços sonoro-musicais mais fecundos do globo. De regresso ao universo sonoro ocidental e após a delapidação do som, vem a amálgama de sons diferentemente organizados em harmonias.

No início do século XX, encetar-se-á a interpenetração de sons diferentes, exibindo-se a dissonância, a estranheza e a aproximação ao som-ruído. Será no pulsar das so- ciedades industrializadas, ao ritmo de motores e máquinas, que um grande número de novos ruídos, novos timbres, novas cores instrumentais excitarão a sensibilidade humana numa aventura interminável de possibilidades de exploração que levará o ruído e o silêncio musical de John Cage a que fique atraído fica pela abertura do território sonoro-musical.

Esta abertura ao som-ruído, salientará Russolo, só se torna possível no decorrer do século XX. Antes, seria insuportável a intensidade discordante de certos acordes nas orquestras ou a introdução de objetos do quotidiano na produção de novos sons. Não fosse a eficiente máquina da indústria cultura ocidental a fossilizar o ouvido humano – as atenções de Russolo estavam viradas para outras preocupações e as de Cage já faziam sentir essa ameaça – poderíamos dizer que o ouvido do homem do século XX enriqueceu com toda a espécie de ruídos resultantes da vida industrializada e urbana. Cage queria, de uma forma precisa, dar tempo, espaço e protagonismo a esse novo universo sonoro que calcorreava a sonosfera contemporânea.

Longe de se conter na sua recusa, o homem contemporâneo reivindica, cada vez mais, diversas sensações acústicas que fiquem muito para além da variedade e qua- lidade tímbrica dos instrumentos clássicos de orquestra29. E assim, descobre um prazer infinitamente maior em combinar musicalmente o ruído dos carros, dos automóveis ou das máquinas de café, um prazer maior do que em escutar a Heróica 29 « Il faut rompre à tout prix ce cercle restreint de sons purs et conquérir la variété infinie

ou a Pastoral de Beethoven, isto no dizer de Cage.

Aparentemente as salas de concerto já não chegam para demonstrar o que nos vai acontecendo na vida. Sem querer, as salas de espetáculos rapidamente se tornam obsoletas, tornam-se espaços reservados e demasiado formais sendo objeto de crítica pelo seu ambiente acusticamente limitado e monótono.

(silere)

Em oposição, o contraste evidenciado pela explosão de vida e ruído que está nas ruas das grandes cidades vai exigir uma abertura a experiências novas dentro e fora das salas de concerto.

A este respeito vale a pena ouvirmos Mário Vieira de Carvalho (2007) que, na sua

Tragédia da Escuta, nos avisa sobre o conservadorismo ainda hoje persistente –

reportava-se à construção da Casa da Música no Porto - na « conceção da comuni- cação musical (…) baseada na divisão rígida tradicional, bipolar, entre quem toca e quem ouve. » (pp. 20-21).

Se para os mais conservadores o ruído é necessariamente desagradável ao ouvido, não se pode negar que há uma variedade surpreendente de sons agradáveis que po- dem ir do vento ao mar, às folhas que caiem, ao trote de um cavalo, ao deslize duma carroça sobre o pavimento, ao ruído da respiração duma cidade à noite, ao soar dos sinos igreja, até aos ruídos que humanamente podemos fazer, sem falar ou cantar. Podemos afirmar que o contemporâneo contribuiu muito para a abertura concetual da chamada obra-musical-clássica, como por exemplo Edgar Varése (1883-1965) que, de uma forma quasi-profética antecipou o advento da música electrónica e das composições ruidosas. Cage e Morton Feldman (1926-1987), seus sucessores ame- ricanos, tiveram o ensejo de poderem ainda ampliar mais o universo concetual da música. Cage, agora é possível dizê-lo, lega-nos a possibilidade de nos libertar-nos da nossa própria subjetividade. E o que é que promoveu em Cage este pensamento? Depois da sua passagem pela sala anecóica, Cage deu conta – mais uma vez pela possibilidade do seu silêncio ser, descrito por nós, tal qual um modo de estar atento

ao mundo – de que a música é permanente (o silêncio não existe) e que a escuta, essa sim, é intermitente.

silêncio – um plano musical da imanência – nos pode abrir os ouvidos, dada a pos- sibilidade agora encontrada, – silêncio enquanto ausência de som intencional – a todos os universos sonoros. Abrir os ouvidos a todos os universos sonoros, eis um bom princípio cageano.

A sua expressão “An ear alone is not a being” (Cage, 1961, p. 149) não poderia deixar de ser aqui citada.

Se nos movermos para ambientes sonoros mais urbanos, se apuramos o ouvido, lá poderemos encontrar uma parafernália de sons que farão as delícias destes novos amantes do mundo sonoro que nasce e se afirma de forma provocadora, desde o ruído das águas nas torneiras, os riscos nos metais, o ruído dos motores dos automóveis, o corre-corre dos peões, as sirenes estridentes dos carros da polícia ou dos bombeiros, os comboios, ou mesmo das máquinas de guerra (alusão deleuziana) e o prazer da criação rende-se à orquestração dum mundo sonoro de possibilidades múltiplas. Esta enorme turbulência chega no momento certo aos compositores, aos pensado- res que irão fazer da fita magnética - estamos a imaginar Pierre Schaeffer ao coman- do de todos os estúdios europeus e americanos (de Colónia a Princeton) a experi- mentar a sensação única de ser ao mesmo tempo, compositor, intérprete e auditor. As gravações das fitas magnéticas – um outro modo de registar música – trans- formam a música concreta num conceito apto a dissolver todo o pensamento que afastava música de ruído e de som. O sinal expelido pelas fitas vem encapsular o todo musical num fluxo de impulsos elétricos manipulado a partir de osciladores, cujas contrações e distensões eletrónicas, permitem modular as propriedades do som. Inicia-se um novo caminho que, pela sua indeterminação nos processos de captação, mistura e edição sonora, não tem fim à vista.

(silere)

Trata-se da afirmação de um cosmo sonoro no qual toda a manifestação da vida é acompanhada pela indeterminação de que o ruído lhe é capaz de insuflar. O ruído distingue-se do som pelas suas vibrações confusas e irregulares, quanto ao tempo e à sua intensidade. De uma outra maneira, o ruído torna-se capaz de nos apelar à vida. Eis um apelo substantivo a um outro princípio cageano : a arte é vida e a vida é arte, numa clara fuga ao ideário surrealista que ainda ia prevalecendo na atmosfera cultural ocidental.

O som é entendido como estranho à vida porque, sendo quase sempre musical, é algo à parte, é um elemento ocasional ou ficcional que nos chega ao ouvido já dema- siadamente percebido, já esperado e concebido racionalmente.

Ao contrário, o ruído bruto, irregular e confuso que brota da vida, nunca se revelará na sua totalidade e oferece–nos, permanentemente, possibilidades infinitas que, por si só, são surpreendentes.

A sua imprevisibilidade é uma das suas características mais interessantes obrigando a arte dos ruídos a não sujeitar-se a uma simples e mera reprodução imitativa dos mesmos. Som e ruído juntos podem constituir-se como uma mónada hábil para a criação e produção contemporânea de música.

Interessará, pois, ao compositor fixar o grau ou o tom de vibração dominante do ruído e proceder à sua combinação aleatória ou indeterminada.

E porquê ? Porque os movimentos rítmicos dum ruído são infinitos e porque o objectivo último será o de atingir o prazer acústico resultante da singularidade do pensamento do seu criador e da sua destreza ao habilmente propor combinações entre sons e ruídos.

O que aqui se destacou foi o facto de, desde há algum tempo a esta parte, estar disponível para todos nós um manancial enorme de possibilidades em acedermos ao som-em-si-mesmo e de, libertos de referências, podermos estar mais interes- sados em música imanente e muito menos numa qualquer música com desígnios transcendentais, ou até mesmo teleológicos.

Assistimos à passagem dum mundo hierarquizado, fechado e finito dos sons musi- cais para um mundo aberto e infinito do som-ruído, onde não há lugar à distinção entre o que é musical e o que não é musical. Trata-se de dar lugar a uma música que existe por si mesma e que não se evidencia apenas para afirmar, ou confirmar, a subjectividade de um qualquer ouvinte.

Não sabemos se agora, por causa do turbilhão Cage, não será melhor podermos afir- mar que a subjectividade deixou de poder determinar a existência da música. Talvez seja melhor dizê-lo.

Se assim for, eis-nos chegados ao cosmocentrismo e ao abandono do antropocen- trismo, eis-nos chegados ao abandono duma lógica da exclusão e do limite do espa- ço totalitário da razão única para a afirmação progressiva de uma (ir)racionalidade aberta e plural.

Este abandono, a acontecer, trará ao mundo e à escola em particular, enquanto es- paço de liberdade e de reflexão, a possibilidade de permitir que os sons, enquanto matéria de trabalho, não se deixem aprisionar por um qualquer fim, por um qual-

Música como meios sem fim, tal como Agamben e Cage advogariam.

Dizemos isto, fazemos esta crítica, ao lado de Cage, sobre o modo de estar da mú- sica no mundo, e na escola em particular por lá estarmos, por nesta encontrarmos amiúdes vezes, até plasmada nos seus currículos e nos seus afazeres, uma visão de música idêntica à de um artifício mental que aprisiona os sons e não lhes permite que existam, ou vivam só por si, sem uma qualquer intermediação judiciosa. Segundo Cage, é isso que empobrece a escuta livre e nos deixa manietados perante um ouvido que, a maioria das vezes, é treinado para estabelecer relações entre sons e é guiado por um conhecimento, por uma tautologia, que previamente nos deter- mina, nos propõe, nos guia, e fala por nós.

Ao lado de Cage, queremos pugnar por um outro cenário : o da indeterminação, o da capacidade de permitir que os sons falem por si.

Foi esse o motivo que levou Cage (2010) a afirmar : Happy new ears ! (p. 87)