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Formado em Economia Política e em Dança, Tino Seghal é um artista contemporâneo cuja

O SILÊNCIO INICIA…

CAPÍTULO 2 – A FISSURA DO SILÊNCIO

17 Formado em Economia Política e em Dança, Tino Seghal é um artista contemporâneo cuja

singularidade passa por conceber a arte enquanto política do impossível. Os seus trabalhos resultam de uma síntese laboriosa entre a prática artística e a ação política numa confron- tação entre estes dois mundos aparentemente não-conciliáveis. Daí resulta a sua chamada de atenção para as noções de des-produção e de decrescimento, assuntos agora instalados no panorama da arte contemporânea, mas que se manifestam nos seus live encounters sem

No que nos diz respeito, poderemos dizer que não estamos sós. Estas ideias, esta escrita já foi precedida por outras que, por sua vez, já foram precedidas por outras tantas. Na verdade, não estamos sós. De que falamos quando falamos do efeito Cage? De que falamos quando falamos do efeito Duchamp?

De um indício, de uma fratura, de um tempo para fazer a música que há de vir. Imaginemos, por instantes, um qualquer homem desiludido com o mundo. Imaginemos por instantes um homem a ver o mundo a desmembrar-se, a desabar. O que lhe restará fazer? O que nos resta fazer?

Auscultar o mundo e dar conta que está tudo ainda por fazer. O que é necessário fazer?

Esforçarmo-nos por afastar o cliché e deixarmo-nos apoderar pelo deslocamento produzido por um pensamento desobediente.

Estamos com medo? Sim, claro, mas acreditamos que o medo tende a favorecer o conhecimento.

É isso que desejamos afirmar aqui. Afirmar que, quando falamos de arte e de educa- ção estamos a tratar de fazermos mundos novos.

Em silêncio, e mais do que nunca, devemos permitir aos artistas, aos educadores, aos filósofos que digam o que têm para dizer. O que fará com que, possivelmente, haja muitas lógicas a (des)instalar.

(silere)

Por instantes, vai sendo assim, regressemos a Cage. O seu silêncio mostra-nos uma arte sonora nas margens do sistema. Nas bordas do que foi instaurado e instituído em nós.

4’33 não é uma criação comum. É - muito mais do que isso– uma qualquer outra

coisa. É algo sobre o qual nos pomos a viver e isso irá interferir imenso, e sempre,

em nós.

Olhando para o nosso trabalho - 4’34’’- vemo-lo agora ironicamente com um espaço- -tempo, um caminho errático, um locus solus inquietante e como um deslocamento nosso face ao mundo.

4’34’’ talvez se atreva a expressar que cada um de nós é uma ideia, uma verdade indemonstrável.

E isso, como poderemos imaginar, traz-nos muitos problemas. Mas também muito alento!

Sobretudo pela possibilidade de pensarmos que a música – algo que nos toca em particular – se possa transformar num gigantesco espaço silencioso, algo de muito reservado, em que tudo está ainda por fazer.

Sobretudo, pela possibilidade de imaginarmos a música como uma viagem em- preendida, sem chegada e meta definida. Sem fim…

Talvez assim a complexidade do mundo fique muito mais em evidência, particular- mente se o podermos auscultar, em silêncio.

O mais curioso será, por causa disso mesmo, imaginar a arte como sendo aquilo que nos coloca perante um mundo inédito, povoado de impulsos invisíveis, silenciosos e a ocorrerem a toda a hora. Irresistível.

A ideia de um 4’34’’ como um silêncio portador de uma desobediência, de um silêncio objetor de consciência face a critérios deterministas, um silêncio crítico à ideologia da prescrição.

Um silêncio vigilante, usando como soundbite a ideia de que a singularidade não pode ser categorizada.

Um silêncio ao lado de ideias, projetos e objetos desobedientes.

Um silêncio exposto em texto que se transforma num pedaço do mundo, numa miniaturização do pensamento em que o seu autor habita e que tem como ambição deixá-lo ressoar.

B. G. Bardi (1990) usa o termo musilíngua para tentar aperceber-se em que consiste o jogo comunicacional existente entre som e linguagem. Este conceito – que re- laciona configuração sonora com representação espacial – diz-nos que uma qualquer forma de pensar baseada no som, e não considerada como língua do ponto de vista convencional, possibilita estados de consciência expandidos, e até desconhecidos. Esta faculdade, por si só, inaugura no homem o ensejo de atribuir valor semântico ao som e à sua sombra: o silêncio.

Som e silêncio poderão fazer, nesta sua nova investidura, uma interpretação do homem no mundo?

Nós somos, sabemo-lo bem, uma caixa-de-ressonância com leitura contínua do e sobre o mundo. Isso, nós sabemos.

Ora, perante esse exercício de decifração do mundo que parte caberá, hoje, ao som e ao silêncio? E, já agora, à sua sala de ensaios designada por musilíngua?

Apesar de tudo, há uma coisa que podemos experimentar:

- Sendo nós uma caixa-de-ressonância perfurada por muitos orifícios semióticos, com todo o seu potencial de traduzibilidade, imaginamo-nos ao lado do som, do silêncio, da musilíngua, a polir esses mesmos orifícios para lhes permitir que coloquem em nós o dizível, mas também o indizível. O cognoscível e também, se assim for possível, o incognoscível.

(tacere)

Imaginemos a música tal qual o dezembro da humanidade. Assim sendo, não nos será fácil suspeitar que som e silêncio poderão constituir-se enquanto o seu janeiro e, concomitantemente, a musilíngua o seu junho.

Este aforismo, com os seus tiques adornianos, propõe-nos ensaiar, e sem recurso a biologismos de qualquer espécie, um aplauso ao homem enquanto máquina antro- pológica.

É isso que nos propomos experimentar dizer, e cuja força-motriz advém de um princípio ativo em que uma manifestação artística é sempre um jogo entre todos, em qualquer lugar e tempo.

Presumimos que, no nosso caso, possamos pôr em evidência essas experimentações em diálogo com muitos autores, cujas exaltações têm vindo a procurar estar imunes a definições, ou a categorizações, num amplo exercício plural de cocriação, expondo o enigmático com que o sonoro, e o seu silêncio respetivo, nos contemplam.

O que pode um corpo? O que pode um som? O que pode o silêncio? O que pode a musilíngua, questionamos nós?

A matéria sonora não é uma realidade simples. Exemplo disso é a manifestação do som enquanto jogo escultórico trabalhado e depurado entre o antes e o depois. Daí à musilíngua e à música vai um pequeno movimento interno do nosso próprio pensamento, e um pequeno passo para a evidência efémera com que sons e silêncios nos brindam.

Quando há pouco esboçamos, sobre nós próprios, uma linha a delimitar a nossa caixa-de-ressonância, seccionámo-la por pequenos orifícios.

Isto deve-se, metaforicamente, a quê?

A ideia simples de imaginarmos o nosso corpo impregnado de porosidades permi- te-nos imaginá-lo, em contacto livre, prenhe de relações abertas, não lógicas e indeterminações não lineares.

O efeito poroso do nosso corpo insiste em alertar-nos para que estas quatro experi- mentações constituam um aberto ao mundo. E, um aberto a quê?

De imediato a:

- Sons, silêncios a vestirem personagens espectrais e fantasmagóricas próximas do logo-de-seguida, sombras sonoras enquanto entidades complexas;

- Sons e silêncios a refinarem ontologicamente a natureza dos homens;

- Sons e os silêncios que não estão no lugar das coisas. Eles são a coisa propriamente dita.

Então, onde está o problema, se é que é de um problema que estamos a falar?

O moderno, o antropólogo e sociólogo francês David Le Breton (1997) disso nos avisou, trouxe muita surdez e cegueira incluída no modus vivendi das suas manifestações. E nós, paralelamente, autosseduzimo-nos com a tecnologia e mudamos de compor- tamento, de pensamento e até de paradigma. Temos vindo todos a ficar, sabemos disso, cada vez mais narcísicos, até mais infantis.

Anselm Jappe (2012) disso nos alerta no seu Sobre a balsa da medusa a que iremos aludir no cap. IV (A agonia do silêncio).

Abandonamos a distância respeitosa, esse delay esclarecedor, e estendemos o nosso ouvir, comprometemos o nosso escutar ao alinhá-lo junto à teia finíssima do espetáculo do ruído.

Dessa embriaguez pouco sabemos, mas suspeitamos o pior. O homem é indeterminado e isso é o que torna difícil pensá-lo.

Mas, é nessa indeterminação que o mundo toma forma e se torna produtor de significado. John Cage apercebeu-se disso mesmo e assim se expôs na sua confrontação com o mundo.

Aceitemos, pois, tal como ele o fez em passear por entre mundos incognoscíveis, por não sermos capazes de partilhar nem o mesmo tempo, nem o mesmo espaço.

Necessitamos, por isso, de ativar os nossos desinibidores particulares para podermos projetar a singularidade do nosso pensamento. Aqui a escola pode ter um papel determinante.

Lineu, que definiu homo como o animal que o é apenas se ele próprio reconhecer não o ser, deixa-nos pensar que o sapiens é uma máquina antropológica – expressão devida a Furio Jesi (1941 - 1980) e exposta por Giorgio Agamben (2015) no seu

Aberto – que, para ser humana, manifesta-se enquanto capaz de reconhecer, iden-

tificar e falar sobre o não-humano.

Diremos que, por causa desse falar, o homem se vai afastando do animal pela linguagem. O problema é que esta não é um dado natural já inscrito na estrutura psicofisiológi- ca do homem. É, doutra forma, uma produção histórica que, como tal, não pode ser precisamente atribuída nem ao animal, nem ao homem.

Aqui está, na realidade, a constatação sobre uma zona de indeterminação aonde é possível animalizar o humano e, vice-versa, humanizar o animal.

Esta zona de indiferença faz acontecer a articulação entre o humano e o animal, o homem e o não-homem, o falante e o vivente.

É sobre o humano e o inumano que podemos, ou queremos, tentar observar o seu funcionamento nestas nossas deambulações pelo silêncio. Cage sempre esteve aten- to a este jogo entre o humano e o inumano.

Se olharmos para o mundo-ambiente a partir de uma lupa clássica, iremos conjetu- rá-lo tal como um mundo único em que as espécies vivas existem numa ordem hie- rárquica movimentando-se do mais elementar ao mais complexo e, digamos assim, superior.

Mas, doutra forma, se olharmos para uma variedade infinita de mundos percetivos, todos imperfeitos, mas ligados entre si- como se de uma partitura musical se tratasse - talvez nos possamos imaginar a fazer os tão desejados “passeios-em-mundos- -incognoscíveis” (Agamben, 2015) (i.e.: carraça).

A ilusão de que as relações de um determinado animal com o meio ambiente têm todas o mesmo tempo e espaço que o humano constrói e estabelece, é desfeita pela evidência de que não existe um tempo e um espaço igual para todos os viventes. As marcas, ou portadores de significado, de um determinado meio ambiente, não são as mesmas para diferentes viventes, bastando para isso observar como o marinheiro olha o mar ou, doutra maneira, de como o guarda salva-vidas o analisa.

Há, pois, que reconhecer diferentes portadores de significado para cada vivente e talvez assim possamos pôr em evidência essa dança abismal que se coreografa entre a animalitas – aquilo que é difícil de pensar – e a humanitas que não deseja, ao que sabemos, abandonar o seu lugar.

Vimos dando conta da pobreza de mundo enquanto característica substancial do mundo animal. Porquê?

Há, pois, uma abertura sem desvelamento que inevitavelmente conduz os animais a ficarem desprovidos de mundo.

É aí que o aberto entra. O aberto aí está para nos afetar. Cage é um exemplo claro desta assunção que nos chega, via Martin Heidegger (1984) recentrando a filosofia enquanto aletheia18, enquanto desvelamento.

O aberto desvela o ser e, na fratura da definição entre homem e animal, procura fixar o espanto ontológico paradoxal cravado no ambiente animal.

Dito isto: o animal é, ao mesmo tempo aberto e não-aberto, e por isso vive num aturdimento. E o homem, o humano?

A humanidade é uma suspensão da animalidade. Deve, por isso mesmo, esforçar-se por se manter aberta. A escola deveria estar a piscar permanentemente os olhos a esta oportunidade até porque os verdadeiros conflitos na nossa cultura são aqueles que existem entre a animalidade e a humanidade do homem.

O problema é que a máquina antropológica roda, hoje, em falso. O que é que está a acontecer:

- O homem pós-histórico procura preservar a animalidade através da técnica;

- O homem apropria-se da sua própria animalidade, como puro abandono, em busca de um fora-de-si, um fora-de-ser.

Se nos considerarmos como homens de ação e pensamento talvez possamos admitir que aquilo que a arte nos propõe é simultaneamente uma experimentação e um pensamento constantes. Daí podermos dizer que a arte é, ela própria, pensamento. Uma forma especial de pensamento e John Cage sabia muito bem disso. A arte é enigmática e resiste à linguagem.

Há, por assim dizer, uma pulsão ontológica na afirmação artística, no espírito da arte, no ato de ser sensível, mas indizível. Uma obra não comunica. Excede todo o dizer. Uma manifestação artística precipita-nos para um outro tempo, coloca-nos em rutura com o tempo presente. Entendemo-la como uma possibilidade de dar espaço e tempo ao aberto.

É aqui que entendemos o mundo, e a escola em particular, como os lugares onde o

aberto pode ganhar vida e sair robustecido.