• Nenhum resultado encontrado

MÚSICA E SILÊNCIO NO DESERTO CAGEANO

O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.2 MÚSICA E SILÊNCIO NO DESERTO CAGEANO

Os sons que escutamos são música. (Cage, 1968, p. 163)

A música parece ser constituída não apenas por som e silêncio, mas destacam-se-lhe, sobretudo na cultura ocidental, uma multiplicidade de outros fenómenos, variáveis e pensamentos, tais como as aproximações científicas da acústica e da organologia. A representação do que é audível na sala de concertos, nos instrumentos, nas partituras, nos criadores, nos auditores, a que se acrescenta uma determinada conceção de som, de ruído, de silêncio, de espaço e de tempo é musicalmente compreendida numa extensa área de produção de conhecimento e da exaltação da criação humana.

O estatuto atribuído ao silêncio parece ser o de figura de fundo sem ruído sobre o qual a música se destaca. Na sala de concertos, o silêncio é concebido como moldura, como um cenário, que define o limite dentro do qual decorrerá a música.

Sem querer parece estarmos perante uma visão aporética da arte musical quando se determina que o público acede aos seus lugares, se senta relaxa e se prepara confor- tavelmente, os músicos partilham do esforço comum de afinação dos instrumentos, e quando entra o maestro – o mestre de cerimónias - ouve-se o estertor das palmas e, finalmente, se faz silêncio. Começa a música, tal qual uma corrida de atletismo ou um espetáculo.

O silêncio é exposto assim como a ausência de ruído, sinal de educação e respeito, é referenciado enquanto código de atuação e que, em espaço próprio, acentua a expectativa dos primeiros acordes. Na partitura, no mundo ocidental, o silêncio tende a ser o intervalo de tempo que decorre entre dois hipotéticos sons. Esse tempo é medido com a precisão duma sintaxe musical sofisticada o que faz do silêncio, um gesto particular no interior da própria música.

Será esse o silêncio que cria a expectativa do som que se segue? Estamos nós deter- minados a aceitá-lo dessa forma? O silêncio entre andamentos é sinal de repouso e respiração, não é silêncio que se escute por ele próprio, é a preparação, é a expectativa para o que se segue. Esta visão utilitária do silêncio deixou Cage meditativo e com vontade de o obsequiar com outras formas de o potenciar, tal como uma força de dissidência que se manifesta a partir do irredentismo e da convocação de outros pensamentos para esse mesmo silêncio.

Inquieto perante este cenário vem afirmar que o silêncio não existe, que só há som e, por isso mesmo, começa a dar-se conta de que até já nem necessita de ter em linha de conta uma qualquer estrutura para se manifestar musicalmente.

Ouçamo-lo: “o som já não é um obstáculo para o silêncio, o silêncio já não serve de ecrã para a manifestação sonora.” (Cage, 2010, p. 37)

Ora, já em pleno século XX, Debussy (1862/1918) admitirá o silêncio como agente de expressão, como obreiro musical, no interior da obra tornando-se fundo necessário, num exercício dialético entre figura-fundo, sobre o qual a música se destaca. Anton Webern (1883/1945), um outro criador essencial para a compreensão da música oci- dental da primeira metade do séc. XX leva o silêncio muito a sério tornando-se, por isso mesmo, um dos precursores desta aventura cageana pelo interior do silêncio e da música. Dando mais um passo, e para enquadrarmos melhor o zeitgeist cageano, encon- tramos Pierre Boulez (1925/2016) a observar a música tal como um contraponto congeminado a partir do som e do silêncio. Ligeti (1923/2006), num outro movi-

interpelativa maneira de chamar a atenção dos ouvintes para a noção de limite, de finisterra sonoro, procurando fazer com que a batuta do maestro permaneça levantada – uma pronunciada suspensão - e, deste modo, estancando o repentismo do aplauso dos auditores.

(tacere)

Aqui já se fazem sentir os rumores que começam a abalar a finitude da obra de arte e avança a passos largos a visão de obra aberta de 1962, já anunciada por Umberto Eco (2009), filósofo importante para a conquista de um pensamento contemporâneo sobre o que queremos dizer quando falamos sobre o conceito de obra de arte. A este propósito, e porque 4’33’’ se manifesta enquanto obra aberta, propomos uma leitura de proximidade às palavras de António Augusto Aguiar (2012) que, em Forma e Memória na Improvisação, nos refere que:

O conceito de obra em Eco é ligeiramente diferente da ideia tradicional de arte, onde a obra é fundada no acto da sua criação e não no acto da sua recepção. Na verdade, Umberto Eco começa por reflectir que, na perspectiva do ouvinte, todas as obras são abertas pois todas permitem várias leituras, que variam não só entre sujeitos,

como podem fornecer interpretações ao mesmo indivíduo dependen- do do momento da sua experiência. Mesmo a audição de uma mesma versão gravada de uma mesma obra pode produzir múltiplas leituras. Portanto, todas as obras são abertas. Contudo, o autor reconhece que há organizações que permitem a transformação interna da obra e, con- sequentemente, que podem proporcionar uma versão diferente da mes- ma obra a cada nova performance, sem que esta perca as suas propriedades características. Estas obras são chamadas por Eco de “obras em Mo- vimento”. A obra em movimento encerra na sua estrutura uma forma não-fixa que permite a recombinação dos seus elementos e dos seus constituintes. (…). Da leitura progressiva da Obra Aberta vamos rapi- damente percebendo que a sua problemática é centrada no espectador, no fruidor (e coincidente com uma das possibilidades abordadas por Dahlhaus: a perspectiva do ouvinte). (p. 58)

O que atrás constatamos de António Augusto Aguiar, numa alusão clara ao conceito de obra aberta, desloca-nos para uma interpretação sobre a essência da semiótica e daí podermos partir para encontramos no dizer de Eco – obra em movimento – uma marca de pensamento que toca no universo concetual de Cage na medida em que ambas projetam para a escuta um campo enorme de possibilidades para a criação e a receção musicais.

Há neste cruzamento de ideias um impacto sério no fervilhar de planos que irão conduzir Cage a pensar em 4’33’’ como um passaporte para um território hetero- tópico em que a arte se manifesta como uma maneira de nós podermos pensar o mundo. De algum modo 4’33’’ desmembra, desaloja o formalismo associado às manifestações artísticas que, no seu modo de ser, aparentemente se dedicam apenas a evidenciarem-se enquanto produtos acabados e etiquetados. Agudamente Cage faz desfalecer a ideia de que arte, a música em particular, é uma sinalética que veicula uma encenação artística prevista e pronta para ser consumida.

(tacere)

Cage (2010) inquieto, não só se serve do silêncio para nos propôr um outro olhar e ouvir sobre a obra musical, como nos vem chamar à atenção, através da subtileza si- lenciosa, para a hipótese de se poder, agora, aclarar e acolher uma qualquer estrutura da música ao ampliar-lhe os seus desígnios, as suas fronteiras.

Cage coloca-nos na situação desconfortável e paradoxal ao sermos confrontados com a peça 4’33’’ com o subtítulo Silêncio, em que todos os conceitos musicais entram em falência, provocando uma cesura inapreensível, à primeira vista e ao primeiro ouvir. Cage parece querer confrontar-se e confrontar-nos com a questão do silêncio absoluto. Onde será que podemos, então, procurar e encontrar esse silêncio absoluto? No início dos anos 50 John Cage visitou uma câmara anecoica na Universidade de Harvard. Essa câmara era uma sala projetada e preparada para cancelar todos

As câmaras anecoicas são usadas para medir as propriedades acústicas de instrumentos, microfones, desempenho acústico de materiais e para executar experiências psico- -acústicas. Cage entrou nessa câmara com o intuito de experimentar o silêncio absoluto, mas como ele escreveu mais tarde, ouviu dois sons, categorizando-os como sendo um alto e um baixo.

Atentemos a Cage (1961):

One enters an anechoic chamber, as silent as technologically possible in 1951, to discover that one hears two sounds of one’s own unintentional making (nerve’s systematic operation, blood’s circulation), the situation one clearly in is not objective (sound-silence), but rather subjective (sounds only), those intended and those others (so-called silence) not intended. If, at this point, one says” Yes! I do not discriminate between intention and non-intention,” the splits, subject-object, art-life, etc., disappear, an identification has been made with the material, and actions are then those relevant to its nature, i.e.: (…) A sound accomplishes nothing; without it life would not last out the instant. (…)” (pp. 13-14) Quando Cage descreveu os sons que sentiu ao engenheiro de som, este informou-o que o som alto era proveniente do seu sistema nervoso e o baixo provinha do sangue em circulação. Assim, aquilo que pensamos ser o silêncio é, na realidade, ruído. Ao aperceber-se disso, graças ao silêncio, os ruídos entraram definitivamente na sua música. Cage, referenciado por Bigazzi (1993), tornou-se assim um compositor inclusivo.

Ouço todos os sons do silêncio. Gosto de ouvir com atenção. Por regra, gosto tanto de ouvir que nunca paro…Penso que quem adora sons adora o silêncio que está cheio de sons. (p. 64)

Será com 4’33’’ que colocará o público confrontado com o silêncio, dentro da clássica sala de concertos, encenado e preparado o ritual que irá dar início ao evento. Este silêncio, mais do que a negação de toda a obra, ou de todo o objeto musical é, de sobremaneira, um convite aliciante para a atenção profunda a dar a um silêncio revelador de todos os sons circundantes, a um silêncio capaz de desvelar todos os sons possíveis. Consta que, na sua primeira performance, o primeiro andamento foi acompanhado por um vento que antecipava chuva. Esta foi o marcador sonoro do se- gundo andamento e deixando ao terceiro a indeterminação sonora por companheira. Vergílio Ferreira (2009) sem nomear Cage, faz-lhe um elogio muito curioso quando nos descreve:

Um dia fez-se uma experiência interessante. Meteu-se um homem num estanque absolutamente impermeável a qualquer ruído exterior. E que é que o homem ouviu? Pois ouviu o coração, é claro, mas mesmo o ranger das vértebras. Colossal. A riqueza imprevista de um mundo novo. A mú- sica das esferas. Nós não a ouvimos, como o moleiro não ouve o moinho. Ouvi-la um dia. É o limite inatingível, é claro. E, por enquanto, evidente- mente. (p. 263)

Presumimos que o que Vergílio Ferreira nos diz é que é possível podermos imaginar um silêncio fundador. Não um silêncio como ausência de algo, mas como condição da produção de sentido e como princípio para toda a significação. De que é que começamos a falar quando nos aproximamos de Cage? Evidentemente, não é de um silêncio na sua qualidade física de que estamos habituados a falar, mas outrossim, de um silêncio

como sentido, como história do homem, de um silêncio como matéria significante.

Cage apoia-nos, incita-nos a falar e a descobrir um silêncio enquanto limiar de sentidos. Possivelmente, até poderemos agora estar em condições para nos descartarmos des- se silêncio físico, tal como o linguista o pode fazer na sua relação com o ruído, quando o abandona e não o usa como objeto de reflexão.

No que nos diz respeito, até para podermos falar aqui do que nos inquieta, interes- sa-nos poder afirmar que se para Cage o silêncio representa um salto ontológico, para nós e partindo dele e sem dele fazermos tábua rasa, interessa-nos falar de um

silêncio disruptivo que se manifeste contra a armadilha das gramáticas instituido-

ras da convenção e do discurso insuflador da norma.

Regressando a Cage, da rutura inicial com todas as expectativas, assistimos agora à irrupção de uma nova conceção de silêncio, a um silêncio primordial, com valor sig- nificante em si mesmo, ele próprio como obra musical total, ou organismo musical

vivo, que nos solicita para a escuta de todos os sons que ele, em si mesmo, contém.

Assim, o silêncio permite que o som fale por si, indeterminadamente. E é também aqui que vemos esta matéria indeterminadamente sonora a comunicar com o aberto agambeniano e a relacionar-se com conceito de obra aberta de Eco. Reúnem-se agora as condições para ficcionarmos esse encontro há muito desejado por nós entre Cage e Agamben. Um e outro, certos da possibilidade infinita dos sons se poderem repos- sibilitar e de se manifestarem aberta e indeterminadamente, ajudam-nos a pensar que, afinal de contas, a máquina antropológica que constitui o homem não precisa de rodar em falso.

enquanto que no silêncio é o som que se desvela, se desnuda, fazendo parte quer do silêncio propriamente dito, quer do sonoro musical. Cada som torna-se único, singular, e vale a pena ser ouvido por si mesmo. Cage confirma assim a hipótese de som e silêncio poderem interpenetrar-se.

O silêncio não é acústico e na verdade não existe. O que existe é um mundo de sons disponíveis e preparados para serem ouvidos e fruídos musicalmente. O sonoro resulta então de um silêncio que se faz culturalmente musical, e que dele floresce o universo elementar e essencial de toda a música possível.

Se é verdade que no momento da sua primeira apresentação, a peça chocou um público que, perplexo, reagiu à sua estranheza, com o tempo, 4’33’’ foi ganhando a sua verdadeira dimensão ao levantar a questão da natureza da música e da expe- riência musical. Será música tudo o que ouvimos quando estamos em silêncio? Se até então Cage se tinha revelado contestatário e inovador, revela-se agora profundamente provocador colocando 4’33’’ no patamar do acontecimento e com ele inaugura uma revolução, claramente, fundacional. Ponto de regresso e ponto de fuga permanente. Com 4’33’’ anuncia-se o grau zero da música segundo a lógica da tradição, faz-se dela tábua rasa, e, ao seu estilo, abala toda a rotina e costumes musicais, toda a música enquanto representação ou expressão da subjetividade e faz anunciar a sua proposta: a vontade e o prazer de ouvir o mundo infinito de todos os sons possíveis.

Ao libertar a música do seu alfabeto limitador – qual borboleta no interior de um esca- fandro – John Cage decide pôr em causa a linearidade do discurso musical ocidental suscitando arquiteturas de espacialização sonora inabituais e dando ao sonoro um lugar primordial. Sobre essa questão valerá a pena acompanharmos Dominique e Jean-Yves Bosseur (1990) quando nos dizem que:

Sonoro é o que eu capto, musical já é um juízo de valor. O objeto é sonoro antes de ser musical. (p. 35)