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OS SENTIDOS QUE GRAVITAM NA MÚSICA CAGEANA

O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.14. OS SENTIDOS QUE GRAVITAM NA MÚSICA CAGEANA

Numa tentativa em responder à questão da natureza da música imaginemos, por momentos, uma relação possível que podemos estabelecer entre Cage e Wittgenstein, exatamente na medida em que para compreendermos um enunciado linguístico significa usar o mesmo esforço intelectual para entendermos um tema musical. Trata-se, para sermos exatos, de perceber o enunciado, ele propriamente dito, e não alguma realidade externa que ele queira representar.

O mesmo se poderá passar, também, com a música. Parece ser esta a aceção de Cage: a música propriamente dita não representa nada. Em Silence, a propósito do trabalho do pintor Robert Rauschenberg, Cage (1961) questiona-se sobre a natureza da arte: “What is the nature of art when it reaches the sea?” (p. 98)

um objeto, o que aí se sente é uma subjugação: a natureza da arte não parece ser mais do que um lembrete daquilo que é a natureza humana. Isto incomoda profun- damente Cage por ver a arte a perder a sua própria natureza.

Cage diz-nos mesmo que se a arte não tem uma natureza própria não será sequer legítimo assinalar-lhe um propósito, dar-lhe um lugar a partir do qual ela poderá partir rumo a horizontes não conhecidos sempre envolta em porosidades, simulta- neidades, multiplicidades, sempre em trânsito.

Cage reage mal à ideia de separar a arte da vida pois isso poderá querer significar uma visão cristalizada sobre a multiplicidade de pensamentos e de criação possíveis em torno da arte. Aí a palavra – ou a razão - pode ser apenas uma maneira de que- rermos controlar a experiência artística enfraquecendo a possibilidade de que um

acontecimento, no sentido foucaultiano, possa emergir e manifestar-se em nós.

Com Cage, a música acontece na vida, não está fora dela, e não está disposta a balan- çar-se apenas dialeticamente entre o absoluto e o empírico, tal como advoga Theodor W. Adorno. Será este um dos possíveis dissensos entre estes dois pensadores. Uma outra visão é aquela que é apontada sobre o(s) sentido(s) da música. O seu principal argumento é o de que a linguagem constrói realidades, mais do que sendo o seu reflexo.

Ora, ao juramentar alguma coisa a alguém, as palavras são a promessa e não se referem a algo que não tenha acontecido para além dessas mesmas palavras. Este é o exemplo tomado como sendo princípio de significação da linguagem. Mais do que representar

o mundo, a linguagem constrói o mundo.

(tacere)

Ao lado de Cage vamos norteando o nosso pensamento numa atenção profunda – silêncio - que nos permita abrir os ouvidos ao mundo, permitindo que o artístico fecunde os nossos sentidos em qualquer lugar – escola, casa, rua, cidade, … - e em qualquer circunstância: sala de concertos, seminário, aula, etc., o que fará com que mais do que representar ou reproduzir um objeto pré-existente, a arte aí transfor- ma-se num poderoso meio de construção de sentidos da realidade.

Com Cage, assistimos ao dealbar de um panteísmo sonoro. O que é que isso signifi- ca? Significa abrir os ouvidos, trata-se de ampliar, de transbordar o que é o âmbito dito musical e fazer com que o ouvido se incline – escuta oblíqua – para a vida.

Significa, sobretudo, afirmar a singularidade da nossa própria vida.

Mais do que fazer surgir a ordem do caos, mais do que ir em busca do determinado face ao indeterminado, Cage apela, via 4’33’’, para que despertemos e nos libertemos. Com ele desvela-se a questão: de que linguagens falamos quando falamos de música? Todos os objetos possuem som, o seu som. Todas as coisas dispõem da sua virtua- lidade sonora. O som está em todo o lado. Não há sons nem lugares privilegiados. A força, o sentido da obra de arte não repousa no objeto, mas na força com que manifesta a sua originalidade, na capacidade de proporcionar outra(s) leitura(s) ou construção do mundo.

Cage, como faria Duchamp, foca um olhar sobre os objetos com a curiosidade de quem explora algo desconhecido, embora, pré-existente. Cage, pressentimos isso, sugere-nos que escutemos como se estivéssemos a escutar pela primeira vez de modo a permitir que o musical nos mostre a maneira de trabalhar dos sons, sem sermos dirigidos ou orientados.

O som, tal como um qualquer outro objeto ready–made, é continuamente desloca- do do seu meio e ganha uma nova dimensão ao ser descoberto pelo músico ou ouvinte atento, abrindo caminho a uma nova sensibilidade estética e uma nova relação com o mundo.

Este panteísmo sonoro rizomático é, possivelmente, o contributo mais singular de Cage para a filosofia da música. Com Cage repõe-se a questão do(s) sentido(s) da música.

Se a arte tem por objeto mudar o pensamento, tem a energia necessária para gerar autoconhecimento, é possível afirmar que o valor artístico reside na experiência que proporciona ao espectador/auditor – assistimos assim à perda da noção de absoluto e imutável - que se torna, ele próprio, participante ativo no processo artístico. O estatuto do que é artístico sofre um impulso: a chegada do happening e da perfor- mance.

Vista deste lado, a música já não reflete, mas procura alterar a forma como as coisas são. Desenvolvem-se, a reboque de Cage, novas componentes performativas que trazem implicações enormes, quer na forma como se estuda e faz música, quer como esta se imiscui em nós, especialmente quando a música ativa e exige de nós responsabilidades. O happening, em particular, ao contemplar uma enorme multiplicidade de efeitos, ao propor a simultaneidade e a não-obstrução declara que nada impõe e deseja que, para tudo poder funcionar, a não-intencionalidade proclame o abandono de qualquer tipo de controle.

que ela própria possui, inaugurando-se em cada nova performance novas possibi-

lidades de sentido. Verifica-se, assim, uma inversão semântica na música, pois o

sentido da música é autodeterminado, ou determinado por si mesma.

Cage provoca em nós um constrangimento e exige de nós uma redefinição do que se deve entender por música. Interrogando-se sobre os critérios culturalmente usados como definidores de música, i.e.: compositor, intérprete, ouvinte, e as porosidades entre som musical e ruído, Cage abriu definitivamente as portas a todos os possíveis.

(tacere)

Ouçamos Cage (1961) novamente em Silence, via 45’ for a speaker:

If one feels protective about the word “music”, protect it and find another word for all the rest that enters through the ears. It’s a waste of time to trouble oneself with words, noises. What if is it theatre and we are in it and like it, making it. (p. 190)

A tarefa do músico é a de estabelecer as condições que permitem congeminar uma determinada composição. Em todo o lado é possível fazer-se uma orquestra de percussão, arrancando sons e timbres a todos os objetos disponíveis, tocando, arranhando, percutindo de forma a libertar toda a música que todo o objeto contém. Compor é estabelecer um plano de jogo e um manual de instruções que se oferecem ao intérprete/executante, apresentados em forma de partitura gráfica. Autor e obra confundem-se. Compositor e intérprete passam a residir no mesmo mundo e assim dilui-se, liquefaz-se a dualidade sujeito – objeto.

A experiência e a fruição estética passam a estar imanente à ação e, assim, derruba-se o cenário da superioridade: deixa de haver espaço para a transcendência. Isso per- mite-nos estar concentrados num processo em que a ação real não pára de se meta- morfosear e anuncia não ter sentidos pré-definidos ou delineados.

A indeterminação cageana anula, por isso, qualquer sentido prévio o que permite a circulação livre de toda e qualquer manifestação sonoro-musical. Essa indetermina- ção, esse deserto cageano, só existe para nos fazer um convite irrecusável: o de partir

em busca de uma nova escuta. E, isso talvez só possa ser realizado ao fazermos do pensamento uma manifestação silenciosa. Isso, estamos em crer, trará repercussões enormes em nós e no trabalho que realizamos.

Para robustecer, uma vez mais, Cage (2010) diz-nos em Para los pájaros, 1981: Creio que a música - pelo menos tal como a entendo – não impõe nada. Pode ter como efeito modificar a nossa maneira de ver, fazer-nos olhar para o que nos rodeia como se fosse arte. Mas isso não é um objetivo. Os sons não têm propósito! Simplesmente são. Vivem. A música consiste nessa vida dos sons, nessa participação dos sons na vida, que pode converter-se – mas não voluntariamente – numa participação na vida dos sons. Por isso mesmo, a música não obriga a nada. (p. 98)

(tacere)

Sem correr o risco de cair no esteticismo podemos afirmar, via Cage, de que a arte musical vive numa condição de permanente contingência. Por isso, não é a forma que confere ao objeto artístico a intemporalidade, mas outrossim, de como é feita a passagem ou abertura ao abismo dos possíveis, à experiência.

A arte é gentil ao ponto de nos apoiar, de nos deixar ver, o mundo a desmultiplicar-se permanentemente, em vez de ficarmos atolados num só mundo. E neste sentido, a música diz o que nenhum filósofo pode dizer sobre essa paleta singular dos territórios do humano.

À Filosofia, à Educação, à Cultura interessam-lhes as circunstâncias de um aconte- cimento – Cage ele próprio é um acontecimento - para poder falar e discernir sobre essa mesma ocorrência. Interessam-lhes analisar os modos de individualização, de construção de pensamento próprio e, ao mesmo tempo, observar os cruzamentos possíveis, os nós a dar ou a abrir, as ressonâncias e causas comuns a escritores, músicos, artistas, pedagogos, cientistas ou filósofos.

O acontecimento cageano, apesar de situado no tempo e numa linha histórica, é a-histórico e trans-histórico, na perspetiva deleuziana. Isto serve para dizer que, mais importante que a sua história, é o devir que o acontecimento gera, que Cage

(tacere)

De regresso a John Cage, numa espécie de retorno permanente, avistamo-nos com o silêncio. Ei-lo à nossa frente: encontro e desencontro. Coincidência e (des)coinci- dência. A tensão, o assombro e a perplexidade. O regresso infinito à arte, à filosofia, à educação.

Existir, presumimos, é estar exposto, é habitar uma qualquer tensão. Ao mesmo tempo, o desencontro, o espaço de exceção, sem palavras, o aparecimento de um duplo silêncio – 4’33’’ versus 4’34’’- o dele e o nosso. O deserto, a fissura, o abismo. A rutura, o desmoronamento de todas as formas conceptuais que nos devolvem o mundo. A ausência de forma, a estranheza. A afirmação dum devir em aberto. A ressonância possível numa comunidade que vem.

“Há que deixar que os sons sejam” (Cage, 2010, p. 110), diz-nos Cage quando avança com a provocação sobre o desmoronamento dos sistemas musicais convencionais, para levar à asserção sobre a impossibilidade de propor um sistema.

A sua obra apresenta-nos de forma estilhaçada a multiplicidade e a plurivocidade de caminhos. As experiências e estranhezas colocam em jogo múltiplas conceptuali- zações que fraturam conceitos e significações dos domínios teórico-práticos de sem- blante subversivo e antissistema.

Esta subversão traz consigo uma visão do mundo, que pressente que é possível abandonar o real fixado para, em trânsito e em porosidades simultâneas, o poder abrir a todos os possíveis.

A estranheza, a desorientação, sussurra-nos Cage, é a fratura fértil da atividade fi- losófica, da ação educativa. Ao lado de Cage, ao lado de Nietzsche e ao lado do fim e do princípio.

Cage dá-nos força para pensar que é possível reiniciar o sentido do mundo em con- tínuo devir. Cage convida-nos a carregar no botão da máquina antropológica que nos constitui para podermos fazer restart, para nos podermos reiniciar e em per- manência. É aí que Hannah Arendt (1998) nos fala de natalidade e de mundo, e é aí que nós encontramos a alteridade.

A arte e a educação artística abrem-nos, pois, a outras formas de conhecimento que ficam legitimadas por gestos de criação onde a singularidade e a imaginação se sobrepõem à racionalidade discursiva, tendencialmente totalizante e normativa, dando lugar à experimentação, de uma forma intensa, da fruição estética e da liberdade.

Atentemos a Cage (2010), em 1981:

Cada som tem o seu próprio espírito, a sua própria vida. E a essa vida, nada pode ter a pretensão de a repetir. Jamais pode converter-se num exemplo de vida, um exemplo para outra vida. O que vale para os sons, vale também para os homens. E, justamente por isso, os homens não são sons, nem os sons homens. Isto é algo que os músicos não se cansam de olvidar. A minha pedagogia diz que não o podemos esquecer mais. (pp. 102-103)

(silere)

A música, a filosofia e a educação artística assim interpeladas, poderão assumir-se enquanto sistemas abertos, fundados sobre interações, relacionando circunstân- cias e protegendo-se de essencialismos cuja vontade, primeira e última, é sempre a de nos amestrar, para deixarmos claramente de lado a causalidade linear dos fe- nómenos – o problema de Cage e o nosso foi sempre o da linha reta - e valorizar enfaticamente, num outro patamar de preocupações, as interações e linhas de fuga que levam à transformação dos conceitos já naturalizados e tatuados em nós, tais como espaço, tempo ou conhecimento.

Adorno e Benjamin, no interior dos seus encontros/desencontros confidenciaram-nos que a arte é uma forma de conhecimento e que a filosofia seria um instrumento privilegiado para fazer a arte falar. Acrescentamos que a educação artística tem a tarefa de ampliar o que atrás foi registado.

Se a tarefa da filosofia é a de criar conceitos, à educação artística cabe gerar encon-

tros livres com o conhecimento e a experiência. Os conceitos não são generaliza-

ções, mas singularidades que devem reagir ao devir do pensamento. Os conceitos estão plenos de força crítica e liberdade e as experiências devem ser, sobretudo, signi- ficativas e desobedientes.

(silere)

Cage, neste particular, é um acontecimento revolucionário que, artisticamente, gera um espaço liso que rompe, distende, fratura, contagia e cria um mundo dilatado de sentidos e empapado de silêncio.

Cage é signo muito para além do que possamos dizer dele.

[…] tento passar de uma atividade a outra sem me recordar muito da anterior. Faço-o para não me sentir inibido, ou seja, bloqueado por um valor, nem escravo de um juízo. Desde logo, raras vezes o consigo. No entanto, isso é a vida poética! A salvação. E também o salto que o precipita a um, e de novo, ponto zero.

(Cage, 2010, p.143)

Se isto não bastasse, e porque sabemos que a preocupação de Cage tinha a ver com as condições de vida do homem contemporâneo deixamo-lo ao lado de Foucault (2002) que, em As Palavras e as Coisas nos diz:

A todos os que pretendem ainda falar do homem, do seu reino ou da sua libertação, a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem na sua essência, a todos os que querem partir dele para ter acesso à verdade […] não se pode senão opor um riso filosófico – quer dizer, em certa medida, silencioso. (p.380)

Cage, sabemos disso, sorria e era tendencialmente silencioso.