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JOHN CAGE EM PLENO DESERTO A ABRIR UMA FISSURA

O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.1. JOHN CAGE EM PLENO DESERTO A ABRIR UMA FISSURA

De facto, que pena não sabermos o que o primeiro homo sapiens cantava. (Tavares, 2015, p. 38)

Se objetivamente desejarmos compreender a relação existente entre o silêncio e a singularidade do pensamento de John Cage, partindo da sua obra-enredo 4’33’’, presumimos que possa suceder, que nos possa ocorrer obtermos uma ressignificação da noção de silêncio. O que presumimos, então, no imediato?

Estamos perante uma obra disposta a evidenciar uma multiplicidade de sons que no compositor e no seu trabalho coabitam, colocando no auditor o ónus e a responsabilidade de se tornar cúmplice do criador e, ao mesmo tempo, cocriador da obra.

Ficamos a saber que o labor de Cage é animado por questões que dizem respeito a uma tentativa sua, persistente, em procurar respostas para o suposto esgotamento do conceito moderno de sujeito e a da sua respetiva exoneração. O seu trabalho sobre indeterminação é prova evidente disso mesmo.

A estranheza que se pode sentir no momento em que cada um de nós se confronta com 4’33’’ de John Cage estará na origem dessa voz sem nome, que nos precede há muito. Assumimos aqui o conceito filosófico de acontecimento uma vez que é algo que tendo ocorrido, permanece, instiga, provoca inquietação e nos obriga a pensar. O retorno a John Cage é inevitável, não podemos permanecer-lhe indiferentes, ele estimula-nos e orienta-nos para um repto interminável de questionamento em torno da natureza da música.

Depois de J. Cage, sentimos isso hoje, nada ficou como dantes. A sua obra é acontecimento que provoca descontinuidade relativamente ao passado e introduz perplexidades que nos deixam sem palavras.

Cage é uma fratura na nossa experiência musical, naquilo que os nossos ouvidos estavam habituados a ouvir e reconhecer como criação, composição e arte musical. O seu silêncio torna-se rizomático, questionador, propõe-nos um momento paradoxal a partir do qual se torna possível darmos conta do nascimento e de uma catadupa de múltiplas interrogações e sentidos.

Haverá música no silêncio de Cage? O que significa a sua dedicação silenciosa à causa da música?

A natureza da música não é questão nova e a sua definição implicou sempre uma orientação de natureza estético-filosófica. Não se pretende pegar agora num não-di-

-se de, ao partirmos de John Cage, pensarmos na fratura por si criada ao pensamen- to estético-filosófico e à própria música.

John Cage, nas suas deambulações silenciosas, inspira-se no contacto que tem com a pintura de Rauschenberg (1925/2008), edifica um pensamento próprio observan- do meticulosamente as propostas filosóficas de Henry David Thoreau (1817/1862) e deixa-se deslumbrar pelas experiências significativas que tem numa câmara anecoica. Especificamente, e face à tela branca Rauschenbergiana, admitimos ver Cage en- volto numa espécie de tábua rasa, numa espécie de grau zero que lhe transtorna o pensamento e transforma o seu olhar. Daí ao ouvir silencioso, à escuta oblíqua, vai um pequeno passo para los pájaros.

(silere)

A 29 de Agosto de 1952 o pianista David Tudor (1926/1996) foi convidado a interpretar em Woodstock, no estado de Nova York, a peça 4’33’’. Ela aponta o princípio e o fim de cada movimento, que devia ser assinalado pelo pianista abrindo e fechando a tampa do piano. Consta que as janelas da sala de concerto deveriam permanecer abertas durante a interpretação dos andamentos.

TACET, é posto em evidência e é um imperativo de silêncio. A palavra é usada nas partituras convencionais solicitando aos músicos intérpretes que não toquem durante o período de tempo expresso e determinado. A estrutura da peça constava de três movimentos, numa clara alusão ao princípio clássico da sinfonia, sendo o primeiro interpretado em 33’’, o segundo em 2’40’’ e o terceiro em 1’20’’.

Sem uma única nota para ser tocada, a música tornava-se, desta maneira, num organismo vivo composto unicamente por silêncio. O silêncio permitiu que o sonoro ganhasse protagonismo e o musical fosse colocado em standby, por desejo expresso por Cage em querer experimentar a desgramatização em música.

David Tudor, ao lado e enquanto cúmplice de Cage, agiu de acordo e protagonizou uma interpretação perante um público atónito e com dificuldade em expressar por palavras o que lhe estava a acontecer (aquele momento era de facto um aconteci- mento): o impensável acontecia e o escândalo estava instalado.

tinha dentro de si os ruídos, as palavras e as reclamações daqueles que estavam presen- tes, incrédulos que estavam por não ouvirem nada, embora estivessem a ouvir tudo. Razões múltiplas, e algumas até anedóticas, avançaram para aclarar o sucedido: a escolha de 4 minutos e 33 segundos terá sido pensada a partir da soma aritmética temporal (273 segundos) que, em graus Kelvin -273, representa zero K, que corresponde ao zero absoluto, ou seja, teoricamente acomodado ao estado de repouso completo das moléculas. Eis uma possibilidade de silêncio molecular.

Segundo outra observação, 4’33’’ terá sido pensado como o tempo máximo que um qualquer público levaria a reagir ao silêncio. Esta ação, esta provocação, colocava o público confrontado, ele próprio, com a exigência de uma nova atitude de escuta, com uma nova e enérgica maneira de ele, o próprio público, ser agente participante da obra.

As pessoas velavam por ouvir música já escrita e acabada, mas era-lhes dada a possibilidade infinita de escutar o silêncio. Eis um acontecimento, eis uma rutura do

status quo, deixando adivinhar desgramatizações a acontecerem no seio da criação e

da receção musical. Presumimos que este é o momento a partir do qual múltiplas ques- tões podem ser levantadas. O que Cage quererá ter querido expressar com 4’33’’? Cage há muito que vinha afirmando que o silêncio, tomado a sério, significava não dar privilégio exclusivo ao som musical, significava por causa disso, ampliar a ideia de som em si mesmo. Apesar desse seu testemunho, afirmou que, embora há muito tempo a pensar sobre isso, nunca ninguém o levara a sério.

Douglas Khan (2001) (1951 -), relaciona Cage com Duchamp através da influência causada pelo ready-made duchampiano, A fonte.

Mas se atendermos ao Silent Prayer, trabalho produzido por Cage em 1948 para ser difundido pela Muzak CO26, parece a Khan que estas similaridades são mais de natureza ideológica e estratégica, colocando Cage a música na vanguarda dos acontecimentos artísticos da época.

Maria João Mayer Branco, citada por Isabel Cristina Rodrigues em A Palavra Sub- mersa, diz-nos a esse propósito:

A experiência de uma sala insonorizada, onde esperava ouvir o som do silêncio, revela-lhe que «o silêncio não é a ausência de som, mas a operação involuntária do sistema nervoso e de circulação sanguínea». Foi esta experiência que esteve na origem de 4’33’’, peça onde os sons apresentados são os que rodeiam o ouvinte e onde o desafio é a concentração da atenção no presente, nos sons do mundo, na música 26 Muzak é uma marca americana que produz música ambiente, também descrita por eleva-

cósmica que se oferece e da qual nos encontramos habitualmente distraídos. (…) 4’33’’ é a expressão (…) da relação entre a música e o silêncio, mas mais do que isso é uma reflexão sobre o que é ouvir. Na medida em que cria uma intimidade com o movimento presente, trata-se de uma obra constitutivamente avessa a gravações (ainda que tenha sido gravada e editada).

(pp.75-76)

Próximos desta leitura deixamos desvelada aqui a ideia de Cage em nos convocar para o conceito de silêncio enquanto música contínua e, por causa disso, a nossa pretensão em escutá-lo implicará, inevitavelmente, uma mudança no nosso modo de ouvir.

Digamos que se em Cage há a emergência em nos convocar para o espanto que constitui a música do cosmos, em nós fica mais efervescente a atenção profunda que podemos dar ao mundo.

(tacere)

Cage explicava a Daniel Charles, em Para los pájaros (p. 37) que silêncio pertencia, sempre pertenceu, ao domínio do musical e que 4’33’’ não seria mais do que uma obra musical composta apenas pelo silêncio, o que correspondia à inclusão, à mu- sicalização - se nos é permitido usar esta expressão antagonicamente cageana - de tudo aquilo que não era considerado musical e que agora, via 4’33’’, se convertia em música. Era uma espécie de convite à inclusão de todos os sons.

Mario Perniola, na sua visão contemporânea sobre o homem-em-trânsito, também nos convoca para a nossa abertura a esse exercício sobre a indeterminação, num jogo entre um qualquer homem e os recursos inesgotáveis do mundo “e a cada ins- tante porque o «mundo» está, ele também, sempre por inventar.” (Fernanda Ber- nardo, citada em Derrida, 2003, p. 87)

Em 4’33’’, na verdade, nenhum som é produzido intencionalmente. A música é não intencional, o músico promove e encena a sua não intervenção, e somente o público é convidado, interpelado, a intervir, tornando-se a música indeterminada e sempre nova, cada vez que é interpretada. Neste particular quase que podemos afirmar que 4’33’’ é a música das esferas em eterno movimento inacabado e indeterminado. Chegados aqui importa dar conta do cruzamento possível que pode ser feito a partir da indeterminação cageana em 4’33’ e da sua ligação ao conceito de aberto expresso por Giorgio Agamben, no seu texto seminal, O Aberto (2015).

Quando Agamben (2015) nos diz que “o aberto não é senão um apreender do não- -aberto animal. O homem suspende a sua animalidade e, deste modo, abre uma zona «livre e vazia» onde a vida é capturada e a-bandonada numa zona de exceção” (p.110) e quando Cage nos propõe, a propósito de 4’33’’, ensaiarmos sobre o que significa escutar, estamos convictos que este ponto de encontro agora sugerido mais não seja do que um convite para que os homens, quaisquer homens, possam viver na exaltação de uma abertura ao mundo.

(silere)

Desta forma imaginamos 4’33’’ como um procedimento artístico que se manifesta mais como um organismo vivo, mais como um mutante neutro, talvez mesmo mais como algo que acontece apenas quando é convidado a ser interpretado e interpelado. Cage vem defender que não há espaço nem tempo vazios, que há sempre alguma coisa para ser ouvida e isso, deve ser merecedor da nossa atenção. Na verdade, se tentarmos fazer silêncio daremos conta que não o conseguiremos realizar.

Cage, via Bigazzi (1993), na sua assertiva deambulação intelectual, acrescentava que “há sempre sons para ouvir e a música, na verdade é feita de sons e eles rodeiam-nos por toda a parte e se pararmos de fazer o nosso próprio ruído, temos a oportunidade de ouvir todos os outros” (p. 15).

Quererá Cage ter querido dizer que a experiência sonora por excelência é, na ver- dade, a experiência do silêncio? Ou, mais incisivamente, que no silêncio perdurará sempre a música que nunca foi escrita e desta forma não há limites, não há determi- nação – eis o seu piscar de olhos para o aberto agambeniano - na experiência sobre o que é o sonoro?

Ou, questionando de uma outra forma, o que é afinal a música? Eis um questiona- mento fraturante. Porque é que nos concentramos apenas, assim tem sido a tradição do pensamento musical ocidental, no ardiloso universo do som musical – apropria- ção cultural nossa - e não nos deixamos seduzir e apaixonar pela possibilidade de todos os sons?

John Cage abriu, no nosso entender, desta forma íngreme e oblíqua, uma fissura na porta da perceção sonora, acústica e estética e com isso alçou os ouvidos de todos e o pensamento de todos para questionamentos antigos, ao mesmo tempo que coloca

A visita de Cage a uma câmara anecoica levou-o a acreditar na impossibilidade da ausência sonora. Desse continuum sonoro Cage celebra a hipótese de, com 4’33’’, viver permanentemente em trânsito, de viver entre sons, ruídos e silêncios. Quando foi questionado sobre o propósito desta sua música experimental Cage (1961) disse: “No purposes. Sounds”. (p. 17)

(tacere)