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O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.6. O COSMOS CAGEANO

Minha alma é uma orchestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como symphonia.

(Pessoa, 2017, p. p.41)

Se a 4’33’’ podemos dirigir um foco preciso para a partir dele nos aproximarmos da produção de sentido na obra de John Cage, parece-nos importante fazer destacar outros focos que evidenciem a magnitude e a evolução da criação cageana no tempo. Obras como – Organ 2/ASLSP conhecida por As SLow aS Possible – anunciam já por onde anda Cage na fase final do seu constructo composicional. Foi composta em 1985 e tocada pela 1ª vez em 1987, durante cerca de 30 minutos, em Metz, França, num Festival de Música Contemporânea.

Órgão, realizado na Alemanha em 1997, foi debatido o tempo de duração da sua execução, sobretudo pela interrogativa estratégia cageana de a realizar num andamento

tão lento quanto possível. Especularam-se várias propostas de tempo para a sua

interpretação, desde o tempo de vida do intérprete, ao tempo de duração do mecanismo do instrumento musical utilizado, e até mesmo, foi posta a hipótese de poder ser interpretada eternamente.

Desde então, assistimos à congregação de entusiasmos e esforços de que resultou uma fundação - John Cage Organ Foundation - e um projeto sobre a interpretação da peça, com escala cósmica, a partir de 2000.

A escolha do local permitiu resolver o primeiro problema. O tempo de interpretação foi definido em 639 anos. A cidade de Halberstad, a sudeste de Berlim, foi escolhida por ter acolhido o primeiro órgão, com escala temperada ou afinação justa, na Igreja de St. Buchardi, em 1361, ou seja, 639 anos antes de 2000. A interpretação de Organ 2 deveria assim durar o mesmo tempo, não se lendo aqui uma qualquer tentação mística, tratando-se antes de ir mais ao encontro das técnicas experimentais e das operações aleatórias de Cage.

A partitura inicia-se com uma pausa, que à escala de tempo adotada levaria 17 meses a ser interpretada. Passado esse intervalo de tempo, a 5 de março de 2003, soaram as primeiras notas: - Sol sustenido, Si, Sol Sustenido agudo. O acorde prolonga-se permanecendo constante, puxado por sacos de areia. Em 5 de Julho de 2004, juntou- -se-lhe um mi grave e um agudo. Seguiram-se novas mudanças de acorde que passaram a constituir grandes momentos de empatia, quer para músicos quer para espectadores. Prevê-se que dentro de duzentos anos haja, ou possa vir a acontecer, um momento cacofónico muito sério. Aparentemente, estar ali, em cada mudança do acorde sig- nifica estar presente numa experiência singular e única. Aí a verticalidade temporal do momento faz com que cada célula valha como um todo.

Há a intenção de os músicos que hoje dão corpo ao projeto passem o testemunho a novas gerações, e essas a outras, de modo a que a música soe, lenta e gradualmente, até ao ano 2639. Não deixa de ser curioso o facto desta decisão estar tão próxima do ideário duchampiano.

Cage, porosamente influenciado por Duchamp, considerava necessário deixar espa- ço nas partituras para os intérpretes poderem ter margem para a sua singularidade, fazendo de cada atuação um momento único e irrepetível. Cage assume por inteiro a ideia de que música é, sobretudo, e mais uma vez, acontecimento.

Teria Cage pensado na impossibilidade de a peça poder ser ouvida na sua totalidade, uma vez que nesta aceção se torna humanamente irrealizável?

námo-lo a fintar os domínios próprios da estética ao dar-lhe a tarefa autónoma de erigir uma ideia de arte musical que não corresponda a uma estrutura significante. Presumimos que seja aqui que Cage se aproxima de Wittgenstein, ao substituir a noção de significado de obra de arte pela noção de uso dessa mesma obra.

Cage tinha consciência que estava a viver um tempo histórico de grandes, e até radicais, transformações. A essa perceção de Cage devemos adicionar, via movimento Dada, via Fluxus e revista Internacional Situacionista, um sentimento de apoio a outros campos de possibilidades ancorados na singularidade, na alteridade, na autonomia e na emancipação.

Não terá passado despercebido a Cage o entusiasmo dos situacionistas quando afirmaram que:

Nós somos os partidários do olvido. Esqueceremos o passado e o presente, que são nossos. Não reconhecemos como contemporâneos aqueles que se contentam com demasiado pouco.

(Perniola, 2010, p. 17).

É com muita atenção que Cage assiste a este movimento que abandona os conceitos de vida real e vida imaginária para afirmar que a realidade, ela mesma, pode ser ma- ravilhosa. À visão reacionária surrealista os situacionistas contrapõem a reivindicação de um projeto de superação da própria arte, procurando experiências a viver que se perpetuem combatendo a coisificação, a reificação dos objetos artísticos.

Às novas técnicas situacionistas - i.e.: a construção de situações vulgo happenings, urbanismo unitário, jogo, … - Cage vem fazer-se acompanhar de collages e de

ready-made sonoro-musicais que correspondem, no nosso entender, a uma forma

de desvio, de superação da própria arte sonora.

Esta relação tangencial entre Cage e os movimentos Dada, Fluxus e Internacional Situacionista, contaminaram o seu habitat, o seu cosmos de pensamento e de ação. Isso naturalmente colocou-o próximo dos esforços em realizar trabalhos cujos sentidos implicados na sua construção são vizinhos das noções de nova subjetividade, de

cocriação artística, de escândalo e de crítica. A música e o silêncio de Cage, se os

escutarmos obliquamente, são a deriva certa para o encontro contemporâneo com esses conceitos.

No entanto, sendo conhecido o carácter sectário exarado pelos situacionistas e adivinhando a potência da liberdade de pensamento que sempre acompanhou Cage, não os vemos a comprometerem-se mutuamente, mas vemo-los a tocarem-se em muitas das suas derivas.