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Alusão específica a Jacques Ranciére (2010) e ao seu dizer – a partilha do sensível – en-

O SILÊNCIO INICIA…

8 Alusão específica a Jacques Ranciére (2010) e ao seu dizer – a partilha do sensível – en-

Imaginemo-nos, por momentos, em busca de um silêncio etimológico, hermenêutico, epistemológico e até semântico.

Ao fazer-lhe assim o elogio compromete-nos ao destacá-lo como agente de questio- namento permanente sobre o sentido que queremos dar à nossa vida.

E, ao interrogarmo-nos, empreendemos uma tarefa a partir da qual entendemos o silêncio como a potência máxima do que desejamos expressar, e a possibilidade máxima de nos acercarmos do ser que somos.

O que promove a nossa existência? O que dá força à nossa existência?

Talvez seja o que escolhemos para preencher o nosso pensamento, o que decidimos fazer com o nosso trabalho e o que, em aberto-e-em-escuta9 permanente, optamos ter por horizonte.

No caminho encetado, encontramos o homem silencioso com vontade de se ver pro- vido de mundo, de se ver homem presente e fazedor. E, com essa escolha no pen- samento, vemo-lo a aceitar a possibilidade do deslimite das artes, vemo-lo a abrir o seu corpo e pensamento a um inédito campo de experiências.

Assim, tratará da música enquanto testemunho singular a salvaguardar, a preservar. Se imaginarmos a música como uma pré-cursão à construção de mundo, eis-nos en- voltos numa música, numa manifestação artística, capaz de esculpir sonoramente o corpo e o cérebro humano. Isso dá-nos uma força enorme e deixa-nos mergulhar no silêncio de que fazemos aqui apologia, enquanto potência ontologicamente consti-

tuinte de um qualquer homem.

Presumimos que seja inerente a qualquer procedimento artístico, a qualquer obra, uma possível discursividade virtual, uma vontade de querer dizer, de afirmar, de justificar. Esse querer dizer é uma manifesta expressão da afeção do ser, o que pode implicar uma outra coisa, algo que a linguagem não alcança: dizer e expressar o que as pala- vras não podem dizer, não podem transmitir. Aqui, exatamente aqui, tem o silêncio um dos seus espaços possíveis de exposição.

Porque é que dizemos isso? Por encontrarmos no binómio música-silêncio uma ma- nifestação possível de uma indeterminada, mas profundamente humana, dimensão ontológica do sensível.

9 aberto-e-em-escuta designa a nossa disponibilidade para um movimento nosso de dentro

Essa dimensão ontológica do silêncio apazigua-nos na medida em que a dinâmica deste não se presta a ser simples numa sociedade dominada pela permanente obri- gação da fala. Seguindo este pensamento, ficamos a conjeturar a ideia de que o si- lêncio acaba por se tornar algo encantatório, algo capaz de não se deixar dominar pela palavra e pela significação.

Isso pode fazer com que possamos aventurarmo-nos por campos de trabalho musi- calmente híbridos, por fronteiras não definidas, entre o sonoro e o silencioso e que promovam, via silêncio, experiências muito ricas e diversificadas para a escuta, para o audível campo humano das afeções.

Interrogamo-nos agora se, entre palavra e silêncio, não haverá um jogo de forças destinado a subsumir o sensível ao inteligível? Será a música e o seu parceiro de binómio – o silêncio – o alvo de uma diatribe de que o pensamento humano se pode socorrer para evitar a irredutibilidade do sensível?

Melhor será socorrermo-nos de um pensamento sobre música e significá-la – o si- lêncio ajudará nesta tarefa impossível – enquanto expressão do inexprimível, do inefável, tal como a paradoxal arte do silêncio.

Assim sendo, atrevemo-nos a imaginar a música enquanto descomunicação10. Tudo isso porque é o seu silêncio que expõe o seu lado indizível, o seu rosto incognoscível, propondo-nos a audaz manobra de imaginar a música enquanto significante em

busca de significado.

Dito doutra forma, música é mesmo pensamento e enquanto tal ela manifesta-se enquanto ideia puramente musical.

O silêncio, parceiro intemporal da música, reveste-se de uma importância capital por lhe ser outorgada a faculdade de fender todas as latitudes e longitudes, de rasgar todas as coordenadas da música, abrindo com essa tarefa a possibilidade nobre de enunciar novas sensibilidades, novas formas musicais para sentirmos o(s) mundo(s). Talvez seja aqui que podemos encontrar na música o pretexto certo para anunciar, através do silêncio, que esta se presta a fazer jus à criação humana.

A força significante da palavra desacredita-se ou enfraquece perante o imperativo de dizer, de dizer tudo, de que nada fique por dizer, de que reine uma transparência impecável, que não possa deixar em suspenso nenhuma zona de segredos, nenhuma zona de silêncio.

(Breton, 1997, pp. 14-15)

Se, por um outro prisma, quisermos interpretar o silêncio como um facto linguístico, talvez aí seja só possível considerá-lo apenas do ponto de vista da fala e não propria- mente da língua. E porquê?

Imaginemos perguntar o que significa silêncio e imaginemos perguntar o que sig- nifica algo bem delimitado e determinado? O que quererá dizer que alguém, num determinado momento, nada diz? Presumimos que seja difícil encontrar um signifi- cado sobre aquele não dizer nada, melhor dizendo, sobre aquele dizer tudo. Tudo isto é muito curioso, porque num mundo tão intensamente visual, este perde o seu poder perante a ligação tão forte existente entre o falar, ou o não falar, e o ouvir. Podemos dizer talvez que o silêncio é essencialmente auditivo e não visual.

Por causa dessa circunstância anima-nos considerar o silêncio como um signo, e ao tratá-lo dessa maneira colocámo-lo num exercício de discernimento entre significa- do e significante.

Ao fazê-lo assim, ao expô-lo desta forma fica mais clara a hipótese de o observar semioticamente e de o imaginar a vestir as suas roupagens de cariz estético.

O silêncio, na sua aceção metafórica, é apreciado como uma entidade, é um cons- tructo abstrato com uma história ligada, conectada, com o pensamento mítico. Ao mesmo tempo, e agora transfigurado pela sua aceção metonímica, é visto aqui como ação, como constatação, ou até como um facto.

O silêncio é o nome que encontramos para designar algo que não está, que desapa- rece, e isso, pela força que tem, outorga-lhe imediatamente uma energia com cono- tações metafísicas, estéticas, culturais e artísticas muito relevantes.

O silêncio dos homens, no seu estado taciturno, permite-lhes conquistar algo de muito profundo, de algo a que os poetas, os músicos, os artistas acorrem para dar solidez à sua voz, à sua singularidade: um espaço interior no seu pensamento para que a poesia, os sons se agigantem e ganhem vida.

Presumimos estar perante um silêncio que, mesmo pelo interior das suas polisse- mias, se constitui enquanto ação. Esse é o nosso silêncio. Um silêncio para agir e não para colecionar, apreciar ou até etiquetar. Isto é muito significativo para nós neste trabalho, porque pode vir a dar-se o caso de o vermos a protagonizar uma intensa dialética negativa de aproximação e de afastamento face ao mundo que temos pela frente.

É de um silêncio enquanto poder de discernimento que nos interessa expor aqui, e é de um silêncio enquanto manifestação de poder que nos leva a imaginá-lo parceiro de pensamento e de criação artística.

Caprichosamente, as flutuações de sentido que o revestem – i.e. despotismo, tortura, meditação - não cabem neste nosso trânsito de pensamento sobre ele.

Estamos em crer que a sociedade tecnológica em que vivemos apostou em criar uma política de colonização sobre os espaços de silêncio pessoais e públicos, através do ruído, para sobre ele arquiteturar uma conspiração ruidosa.

É devido a esse exorcismo silencioso posto em marcha pela civilização tecnológica que estamos aqui. Esse ruidismo, esse exorcismo tem-nos manietado e distraído. Demos conta disso no nosso trabalho, demos conta de que o ócio e o silêncio de um pensamento singular eram, e são considerados uma ameaça.

Quando o antropólogo e sociólogo francês David Le Breton (1997) nos avisa de que a modernidade é ruidosa, sem querer, está a dizer-nos que as gerações vindouras podem estar a ser preparadas, a ser educadas, no horror ao silêncio.

O melhor será explicar a alguém que a opção pelo silêncio - de resto é isso que aqui nos traz e nos basta – é um dos direitos humanos que, curiosamente, não está ex- posto nas declarações oficiais.

Porque será?

Talvez por ele ser próximo e estar bem relacionado com as formas simbólicas que podem acercar-se da realidade das coisas.

Talvez por ele poder ser pensado enquanto uma reflexão sobre o seu lugar no seio de um sistema – i.e. a sociedade, a escola - que é, em simultâneo, produtor de cultura. Sobretudo porque a sua ausência nessas declarações talvez possa querer dizermos que estamos muito pouco dispostos para o imaginar capaz de inverter a nossa maneira de pensar e de sentir.

Sobretudo porque o silêncio, visto como uma luta contra a doxa, irá criar um pensamento facilitador em aumentar a superfície de contacto com a realidade e de desenvolver uma sensibilidade humana alargada.

1.1. A FORÇA HERMENÊUTICA DO SILÊNCIO

A arte do nosso tempo é ruidosa, com apelos ao silêncio. (Sontag, 1987, p. 19)

Há, no silêncio, mais do que uma natureza.

Ao analisarmos quem se cala, ou até, ao examinarmos quem se abstém de falar, damos nota de que isso mostra atitudes que nos permitem, como exemplo, observar modos de estar e de ser que decorrem de potenciais materializações sobre o ato de potenciar o silêncio.

Em John Cage a ausência de matéria sonora, ou da aparente falta dela, é indicadora de uma experiência sonora concreta: a não intencionalidade cageana conduz-nos a uma abstinência da fala que é habitual aos instrumentos e, por isso, dá-nos azo a uma nova, uma outra, experiência sonora.

Se em Mahler o silêncio nos é anunciado pela tibieza, pelo enfraquecimento e pelo esgotamento sonoro, em John Cage o silêncio ganha a força e a presença de que

tudo pode acontecer.

Estamos perante um enunciado: o silêncio é o devir. Heidegger teria gostado muito desta assunção.

Este silêncio-devir, pela sua natureza, está muito próximo do preferiria não bartle- byano11 (Melville, 2011), escapando a quaisquer dualidades ou maniqueísmos, e não enjeita manter-se numa espécie de ceticismo face ao mundo.

E, de que é feita esta negatividade?

É feita da matéria intersticial que apoia a manifestação da potência da impotência em estado puro.

Da capacidade de dar origem a mundos até agora ignorados e, até, insondados. Da vontade de não doutrinar. Esta é a potência do silêncio cageano.

Um silêncio capaz de des-significar e de não estar disponível para a obrigatoriedade de referenciar.

Assim, os sons e as palavras ganham nova força, resistem e ficam plenas de energia. E nós?