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O CAMINHO HETEROTÓPICO DA MÚSICA

O SILÊNCIO INICIA…

12 Conceito a ser referenciado no capítulo 2 e desenvolvido no capítulo quarto (secção 4.2).

1.3. DO SILÊNCIO ENQUANTO HETEROTOPIA

1.3.3. O CAMINHO HETEROTÓPICO DA MÚSICA

A história da música – numa perspetiva de causa e efeito – não sei o que é. Será um aspeto apenas por que ser encarada a música e que põe de lado milhões de aspetos.

(Nunes, 2011, p. 360)

Uma outra maneira de teorizar e meditar sobre o facto musical é a de tentar fazer o percurso estético que a música realizou e se propõe realizar.

Dentro da tradição ocidental, sobretudo da polifonia em diante, toda a música se baseou quase sempre mais nos intervalos/melodias do que no ritmo, apoiando e sustentando assim a função privilegiada da harmonia.

O problema ritmo, como temporalidade que estrutura a música, emergiu como assunto muito recentemente no seio da música contemporânea e foi trazido pela mão da alteridade cultural, pela mão da tradição musical extraeuropeia.

É até possível que o problema da temporalidade e da espacialidade tenha vindo a ser tra- balhada e exposta mais pela mão da especulação filosófica, e menos pela bitola musical. À conceção racional e estrutural da música ocidental corresponde uma conceção espacial da sucessão temporal característica da música universal:

- a música tradicional imobiliza-se; o seu fluxo, dentro de uma determinada arquitetura formal ligada a nexos linguísticos, cria um todo orgânico;

- a perceção desta música acontecer no tempo, mas lado-a-lado com o espaço, em que o todo é, em boa parte, previsível e em que as esperas, as suspensões, as incertezas, o antes e o depois, são recompensados e resolvidos.

Pela sua maneira de funcionar, a harmonia tonal encarna esta conceção de música, melhor até que um modo gregoriano ou uma qualquer composição polifónica. A música tonal tende a não se deixar sujeitar pelo tempo. Captura-o, fá-lo seu, e submete-o às suas próprias regras e leis. Esta tradição, tipicamente racionalista, que havia sido acusada de antropocentrismo e de etnocentrismo entrou em crise no instante em que tomou consciência que existiam outras tradições, outras maneiras de fazer música, num mundo variado, distinto e plural.

A crise da nossa tradição musical ocidental coincidiu, exatamente, com a crise da noção de obra musical, tal como a tínhamos imaginado e concebido no passado.

E agora? Que alternativa?

O ponto de referência talvez se possa construir a partir da possibilidade de construirmos uma contraposição entre tempo vivo, tempo interior e tempo espaço. A acusação que ainda se imputa à música de tradição europeia, seja ela tonal ou serial, é a de ter cristalizado o tempo, alterando-lhe a sua natureza e tornando-o mecânico através do ritmo, na sua aceção métrica tradicional.

A intuição de uma natureza diferente de ritmo aparece-nos, justamente, no séc. XIX, a partir de Claude Debussy (1862 - 1918), apesar dos vínculos que este ainda manteve com o naturalismo e com o impressionismo.

Em Debussy encontramos a primeira tentativa de deixar de conceber a música como um discurso linear e retilíneo, graças à coexistência de várias sucessões temporais, mediante a recusa a forças pré-estabelecidas, à pesquisa sobre assimetrias rítmicas e à atomização da substância temática.

Neste exercício, neste percurso alternativo, tal como o concebe a vanguarda, o tempo pode identificar-se com o instante.

Cada instante encerra um valor, não em função do que se seguirá, mas, outros sim, em função do seu valor intrínseco.

Assim, poderemos afirmar que um tema musical não é verdadeiramente uma sucessão. Autossuficiente do instante, o tempo assume uma outra dimensão. Até mesmo uma dimensão sagrada.

O tempo é o ato, a vida em si mesma, em plenitude.

Fica em evidência uma conceção de temporalidade musical como puro devir, que não permite que ele se encapsule dentro de uma qualquer forma pré-existente. A vanguarda decidiu, então, cumprir uma dupla tarefa:

- Impor a si própria a rutura sistemática com todo o nexo linguístico tradicional, graças ao emprego do ruído, da descontinuidade, de sons eletrónicos, de instrumentos tradicionais fora de contexto, e recorrendo ao gesto profanador e provocador. - Levar adiante o programa assinalado por Webern (1883 - 1945) ao serializar integralmente todos os parâmetros auditivos possíveis.

E, com o impacto de um verdadeiro acontecimento, quem se destaca nesta jornada? John Cage, ele próprio, como uma heterotopia. Em John Cage encontramos provocação,

cheano e experimentação em quantidade suficiente para não nos podermos atrever se- quer a etiquetá-lo.

Um exemplo, entre outros possíveis, para podermos justificar o que foi dito atrás tem que ver com o uso que Cage faz do acaso propondo-lhe lugar de destaque na constru- ção das suas esculturas sonoro-musicais.

O acaso, em Cage, não é uma abertura interpretativa, é a estrutura em si mesmo. Me- lhor dizendo: a não-estrutura do real. Cage parece querer interrogar os seus auditores ao pôr em cena uma das suas perturbações: - Que fim tem o de escrever, compor, imaginar, música? Possivelmente, o fim de não ter fins.

Como se um apelo se tratasse, Cage reivindica a manifestação artística tal como uma afirmação da vida. Promove, por isso, o engajamento entre arte e vida e vice-versa. A vida como um jogo que vale a pena ser vivido. E por isso, não se trata de dar ordem ao caos por este já possuir a sua própria ordenação caótica que lhe é peculiar, ou de alcançar progressos no ato de criação.

É algo de mais simples: o jogo é uma maneira de despertar a vida enquanto vivemos. Pode até ser a própria exaltação da vida. De uma vida indeterminada.

Um jogo – caminho desprovido de metas – é como uma aventura. É um verdadeiro exercício experimental como descrição de um ato, cuja forma de se manifestar des- conhecemos de todo. Isto coloca-o na vanguarda das ideias em fazer-pensar a música de uma outra forma – talvez até o conceito de música seja aqui desinstalado – de uma

música enquanto possibilidade de ouvir o mundo através dos sons, perfurando-os,

em vez de os perspetivar, ou admirar.

Admitimos ver Cage a trabalhar os sons de uma forma inclusiva abolindo todo o género de hierarquização.

Cage, aparentemente, parece querer não fazer mais do que procurar a inocência original dos sons, assim como alguém que deseja expor as diferentes camadas que estão so- brepostas por cima de uma palavra, para sentir o que lá estava antes.

Sem querer responder de uma forma instantânea, podemos dizer que tentar fazer um glossário da música é cair em todas as tentações, é somar construções, desconstruções e reconstruções sonoras. Sem cair numa reflexão que tenha uma carga demasia- damente historicista podemos afirmar que, ao observarmos as funções da música, tomamos consciência das mutações do pensamento musical que lhe é inerente e damos conta das suas manifestações e procedimentos artísticos.

Olhando e ouvindo o séc. XX reparamos que a música parece regressar ao princípio: o som manifesta-se enquanto matéria. Este regresso ocupa o imenso desejo de vanguarda a que se associará uma outra dimensão – a da produção musical – já para lá da criação e da interpretação.

Face a uma herança histórica de peso assistimos hoje, com frequência, ao refundir de muitas ideias musicais que se precipitam sobre si – caso do impressionismo e dodecafonismo musical – e que têm por ambição derrubar esse mesmo legado. Podemos dizer que ao propor-se o desmoronamento da matéria sonora, recriam-se as suas categorias – i.e. negação de escalas, negação de forças atrativas – e, ao mesmo tempo, buscam-se singularidades – i.e. timbres – questionando-se os vínculos à si- metria do tempo musical (novas estruturas rítmicas, formas renovadas).

Doutra maneira, para o binómio interpretação-tradução procura-se, contemporaneamente, usar de novo a função reciclar para dar corpo a outros exercícios – i.e. a voz falada, o pia- no como percussão – e confrontam-se funções com mutações (i.e., piano preparado). Na relação complementar com a criação cabe agora ao intérprete emancipar-se – i.e. na música indeterminada e na música improvisada – ou até eclipsar-se (i.e.: na música concreta ou música eletrónica).

Na saga do silêncio, enquanto ato de cultivar o imaginário íntimo dos homens, damos conta da sua ação particular quando surge o registo sonoro e a transmissão sonora à distância, o que promove um novo tipo de audição, um novo tipo de atenção auditiva, que possibilita o armazenamento sonoro.

Surge, então, algo que é ao mesmo tempo o berço e a tumba da experiência sonora, e que até se poderia apelidar de distopia sonora.

Surge assim a possibilidade, hoje manifestamente real, de eternizar a matéria sonora e, com isso, de criar um dispositivo de governação sobre o ato de ouvir, sob a capa sedutora do ampliar a plasticidade musical para fora dos limites dos instrumentos tradicionais.

A permissão de novos atos de amplificação, a possibilidade de gerar eletronicamente sons e de novos processamentos dos diferentes sinais-áudio, transforma aquilo a podemos chamar, via Michel Chion (2008) (1947 -), a produção, a natureza e a

O homem contemporâneo está refém desta artimanha, Foucault (2001) apelidou-a de dispositivo, e necessita do silêncio, dizemos agora nós, precisa desse silêncio disruptivo de que falamos, para se desfazer desse dispositivo.

Enquanto empirista e filósofo do entendimento teve sempre dificuldade, daí o seu ceticismo permanente, em admitir quaisquer transcendências fundadoras. Fala-nos de dispositivo enquanto expressão a ser usada pelos sucessivos discursos que podemos encontrar nas leis penais, no poder, nas instituições, nos costumes, na indústria e comércio.

É aqui que nos propomos afirmar, caminhando com Foucault, que a ausência de silêncio que constatamos na contemporaneidade é uma particularidade do hoje, enquanto fenómeno. Esta particularidade, esta singularidade está assoreada num discurso que urge pôr a nu.

Há um trabalho a ser feito, há uma análise a ser realizada em torno dessa ausência

de silêncio para a podermos pensar, como Foucault o teria feito, como um disposi-

tivo moderno para impedir os homens de ganharem consciência sobre o tempo e o modo em que vivem.

Fazer uma pesquisa sobre esse dispositivo – o ruído da contemporaneidade – auxi- liar-nos-á a compreendermo-nos melhor.

Se nos focarmos, por exemplo, na particular presença da música em contexto es- colar, daremos conta, no imediato, da importância do silêncio - enquanto atenção profunda – para desmontar, para desvelar e pôr de fora o ruído dos currículos que eternizam estereótipos e acalentam práticas discursivas prenhes de verdades absolutas e universais.

Embora sabendo que Foucault nunca instituiu uma relação de, digamos assim, causa e efeito entre discurso e realidade, e nunca pensou considerar o conceito de discurso enquanto infraestrutura marxista, a vontade que nos dá em usar esse seu conceito é o de o imaginar como um convite, risco assumidamente nosso, a uma

atenção profunda a dar à ausência de silêncio na contemporaneidade.

Há, pois, uma origem empírica e contextual no nosso 4’34’’. Sabendo nós que o conhecimento é uma interação entre duas realidades espácio-temporais claras - o homem e o seu habitat – interessa-nos deslocar este saber empírico das coisas sin- gulares - entre elas a presença/ausência do silêncio – para uma espécie de mudança

de saber perspetivando um fora reflexivo e emancipado.

Eis a possibilidade de criar uma densificação para a presença do silêncio entre nós. Se uma civilização é, também, uma prática discursiva aplicada à forma a dar às coisas que constrói e ao modo de viver, gostaríamos de imaginar o seu silêncio – um silêncio civilizacional – como a sua metafísica, ou a sua potência de poder pensar.

Para isso, talvez baste desfazer o ruído da modernidade, embora este nosso volunta- rismo, digamos assim, não queira decidir que é preciso fazê-lo.

Melhor será dizer que, tal como os livros de Foucault não apontam às pessoas aquilo que devem fazer, também nós apenas desejamos trazer ao pensamento a constatação de como nos vamos comportando na contemporaneidade, não nos atrevendo a profetizar. Ao mesmo tempo, o ceticismo foucaultiano cedo nos alertou, pela sua negatividade, que não se pode proibir alguém a revoltar-se, que não se pode recusar o futuro que nasce em nome de uma qualquer racionalidade do presente.

Este dizer deixa-nos confortáveis com a hipótese de observarmos o silêncio de que falamos como uma capacidade de nos auxiliar a desdobrarmo-nos, a ficarmos fora do nosso tempo e do nosso corpo.

Mas também nos convida a termos cuidado para o não trabalharmos como uma doutrina, apenas como um auxiliar de memória da mónada que cada um de nós pode ser, apurando o nosso sentido crítico face aos universais que se vão apode- rando de nós e não nos deixam lúcidos, deixam-nos manietados, e muitas vezes precipitadamente teleológicos.