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OS SILÊNCIOS DE CAGE EM PLENO SÉCULO

O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.15. OS SILÊNCIOS DE CAGE EM PLENO SÉCULO

A música é semelhante à linguagem. Expressões como idioma musical ou entoação musical não são nenhuma metáfora. Mas a música não é linguagem. A sua semelhança com a linguagem indica o caminho para a interioridade, mas também para a imprecisão. Quem toma a música literalmente como linguagem engana-se.

De que somos feitos? Há quem afirme que já fomos feitos do que comemos. Houve até quem dissesse que fomos e somos o que vestimos.

Há quem diga que somos o que vemos. E, se fossemos o que ouvimos?

Não tarda nada, e ficamos convencidos que somos seres bio-psico-sociais. Nem mais! Se imaginarmos este trabalho como ponto de partida para uma reflexão a propósito do silêncio, do som, do caso particular da música e do seu sentido que dividendos daí podemos retirar?

Ao abordarmos a importância da audição e do impacto que tem na interpretação que fazemos do mundo, na apreciação crítica que temos de nós mesmos e dos outros, e na criação de cenários para a nossa civilização optamos por nos fixarmos um ponto – Cage – a partir do qual sentimos poder acontecer um outro olhar e um outro ouvir a vestirem o nosso pensamento.

Na verdade, via Cage, queremos afirmar que um modo de vida implica compromisso sério em dar sentido particular às coisas e às atitudes que temos.

Afirmemos que - sem sermos excessivos - ouvir melhor poderá significar estarmos mais atentos ao que nos rodeia.

A História da música contemporânea é bem curiosa, nesta circunstância. Um século depois do seu nascimento ainda suscita animosidade.

Olhemos o caso de outras manifestações artísticas. A pintura e a escultura sofreram e debateram a sua causa. São bem conhecidos os seus mártires.

O cinema expôs, e ainda expõe, os seus escândalos. A literatura e o teatro, os seus párias e os seus enfants terribles!

(tacere)

A música contemporânea suscita, muitas vezes, os opositores mais veementes, dentro e fora de portas.

É como se o ouvido fosse o sentido mais reacionário do corpo humano. Até parece que os ouvintes/ auditores se sentem fora da revolução que os atravessa. Então… o que é que se passa?

Parece que tudo tem a ver com as características do ato de ouvir. Por isso, pôr em causa os cânones da escuta é pôr em causa o sujeito, a nossa interioridade. A abstra- ção musical é um domínio apto para simbolizar temas, aquecer alegorias, apaixonar

mais agudos. A função tradicional da música, ligada à harmonia e aos cânones habi- tuais da beleza e proporção, está de tal modo ancorada nas nossas consciências que a sua suspensão só pode gerar reações negativas. Por isso, a música contemporânea, desde o seu nascimento, é vista como um atentado à tradição e, naturalmente, é diabolizada.

Se é natural vermos a música tradicional conotada com a regularidade moral e física, ao coro angelical e à harmonia das esferas, às pulsações naturais e aos ritmos da vida social, a música do séc. XXI, dispersa e (des)harmónica, aparentemente parece encarnar um projeto negro, maldito e diabólico disposto a enunciar consequências extremas. O que propomos aqui?

Observar as causas positivas que estão na origem do prazer maior que resultará do simples facto de ouvirmos música contemporânea. O que é necessário fazer? Logo de imediato ouvi-la, em vez de a denegrir ou de a violentar.

O que é que ela nos oferece?

Um novo espaço sonoro que, no contexto das revoluções científica e técnica moder- nas, dá lugar a novas explorações e a novas reflexões. Os músicos e os compositores dão corpo a um trajeto construindo novos universos, novas paisagens, novos reais sonoros permitindo a criação de sons originais e singulares. A música não é feita para nos embalar as ilusões, ou adocicar o ouvido. É feita para nos fazer compreender o mundo tal como ele é e para nos ajudar a antecipar o que há de vir, através do sentido da audição.

A música não tonal, tal como a geometria não-euclidiana, incita-nos a pensar novas formas, novas ideias e novos pensamentos.

Por agora, fixemo-nos, por instantes, na música. O conjunto dos sons possíveis formam um continuum que os instrumentos mais arcaicos não podiam reproduzir. A passagem a instrumentos capazes de engendrar vários sons obriga os músicos a conceber uma organização de altura de sons e a conceber âmbitos específicos para a sua justa manipulação. Avistamos duas ordens de razões: 1) Domínio dos instrumentos tornando-os mais aptos a executar a música imposta. 2) Facilidade em pesquisar e codificar melodias, caracterizando-as em sucessões de intervalos.

Isto levou a que as culturas organizassem o continuum sonoro segundo critérios específicos.

A escala diatónica maior é uma solução, entre outras possíveis, adotada pela cultura ocidental. Até ao séc. XV a música tendeu a estruturar-se sobre a perceção intervalar. Depois, até ao séc. XX, a música baseou-se em acordes (polifonia e sistema tonal a emergir). Então, dá-se a rutura, visível e audível na tolerância pelos românticos à dissonância.

A partir da 2ª metade do séc. XIX o cromatismo invade o tecido melódico e har- mónico e, sem dúvida, a perceção da tonalidade é fortemente perturbada. O fluxo harmónico constitui-se a partir da utilização de acordes particularmente difíceis de

colar às tonalidades.

Os compositores apaixonam-se por acordes de 5ª aumentada e 7ª diminuta, i.e.: em 1857 o acorde de Tristão (Fa – Si – Re# - Do#) permite-se mudar de significado em função do contexto, e há a vontade de valorizar os acordes de per si evidenciando o instante e isolando o devir com o regresso a uma conceção menos harmónica e mais linear da música, apoiada em criações puramente melódicas.

Como explicar este movimento? Não se trata de anular citações ou reconstituições de uma música do passado. Trata-se da criação de processos originais que se supor- tam a partir da decomposição do sistema tonal e da construção progressiva de sons, ação solidária com os acontecimentos sociais, científicos e técnicos da sua época. A mudança do séc. XIX para o séc. XX corresponde a um período de enorme mu- tação. O Romantismo musical abre a porta a um novo imaginário. Há uma imensa revolução intelectual que tem como apogeu a teoria da relatividade de Einstein. Há uma nova representação do espaço e do tempo que, por si, forma uma corrente par- ticular que se faz representar no complexo matéria-espaço-tempo-energia. Passamos a interessar-nos por um sistema de forças que rompe com a represen- tação tradicional da música. Entre outras razões que precipitam o fim do sistema tonal e a encenação de novas formas musicais encontramos a ligação à música não- -ocidental, a manipulação de processos eletrónicos e o recurso a escalas infra tonais. Ficam assim reunidas as condições para expandir consideravelmente o espaço so- noro. E, com essa extensão, destacamos, em síntese, três de outras revoluções mu- sicais postas em cena pelo contemporâneo:

- O Dodecafonismo Schoenbergiano;

- O serialismo integral de Olivier Messian e de Pierre Boulez e - O caso Cage e o da liberdade sonora (silêncio, acaso, indetermina- ção, happening, eletrónica, …).

Daí ao panteísmo sonoro a viagem torna-se imparável e quase sem limites. A noção de limite designa um confim, uma finis terrae.

Limite significa, ao mesmo tempo, lugar de discernimento. A haver uma obra que- bra-limites ela será 4’33’’ de John Cage inspirada em Rauschenberg e em Malevich.

TACET 33’’ TACET 2’40’’ TACET 1’ 20’’

(tacere)

Do que não se pode falar, devemo-nos calar. A obra tem significado artístico e até pedagógico. Mais do que a negação de toda a obra, o gesto criador de Cage permite a inclusão do ruído no universo musical. 4’33’’ redefine o que deve entender-se por música. Embora querendo evitar rotular 4’33’’ deixamo-nos enredar por aquilo que a consome: um exercício neodadaísta, digamos assim, bem-humorado ao questionar a diferença entre autor/ intérprete, ao ir em busca de uma outra noção de obra de arte, ao anular ou mesmo estabelecer uma outra relação sujeito-objeto dentro do processo estético-musical e ao produzir modos de interpretação que acolhem a indistinção entre som musical e ruído.

Até aqui toda a música ocidental estava subordinada ao tempo e ao espaço, movi- mentando-se a partir de um sincronismo harmónico e sintático. Cage apela à ideia de que música é uma manifestação de eventos sonoros. A música é, para ele, algo bem mais radical que uma disposição de acordes, ou de um exercício polifónico. Há algo de mais essencial e elementar na música.

Algo que não pode ser substituído nem eliminado se se quer descobrir os elementos básicos do facto musical, à maneira do ponto e da linha sobre um plano, na reflexão de Kandinsky, ou da relação ator-espectador do manifesto de um possível teatro pobre, reduzido às suas formas mínimas, como o que formulou Grotowsky.

Em música, o mínimo é, também, o máximo: eis o acontecimento sonoro, eis o happening, um evento que não admite distinção entre som e ruído, ou a discriminação de certos e determinados sons.

Frente a princípios harmónicos, rítmicos e melódicos aparece o universo, o infinito – caótico e desorganizado – território do som selvagem.

A música regressa à sua essência mínima e livra-se da aparência fulgurante que compõe a cena musical ocidental.

Em Cage, a música procura o tempo, a duração, exibindo-se através de um encadeamento de eventos e peripécias sonoras.

E, por debaixo da palavra silêncio, escondem-se infinidades de pequenas perceções que importa emancipar. Reforça-se aqui o anúncio da invenção do happening, anuncia-se a indeterminação e aposta-se na relação de colaboração com as outras artes em que deve estar sempre presente a singularidade diferenciada, através do acaso gerador de necessidades rigorosas e imprescindíveis nas suas manifestações. Panteísmo sonoro? Claro. Todos os objetos possuem som.

É, pois, preciso emancipar essa música interior que todos estes objetos possuem.

(silere)

E não deve haver lugar para privilégios e nem para hierarquias especiais. O imperativo do silêncio é, em Cage, expressão de uma dedicação a uma absoluta atenção a dar à sonosfera envolvente numa espécie de sacrifício voluntário reativo à positividade do contemporâneo.

Cage declara o fim da sala convencional de concertos e abandona a música prescrita como extensão da subjetividade humana e como gestora da nossa esfera sentimental. Cage promove um panteísmo sonoro em que som, ruído e silêncio recuperam a sua irmandade perdida.

Isto é causador de uma entropia que se constitui como uma poética do silêncio que esconde dentro de si origens e motivações várias. Exemplo disso é a resistência à racionalidade pura e a busca do irrepresentável que estão por trás de uma possível genealogia do silêncio moderno. Outro exemplo está na busca de outras linguagens e no abandono, pelo seu esgotamento, da linguagem culturalmente vinculada à burguesia. Uma outra origem está no silêncio niilista, ou melhor, no silêncio causado pela im- possibilidade de encontrar e validar uma qualquer essência ou verdade sempiterna. É nesse silêncio que se vai apoiar a abertura oferecida pelo dadaísmo quando ques- tiona os limites, as fronteiras, da arte através de uma forte tomada de consciência face à arbitrariedade das normatividades vigentes.

É nosso entender que Cage patenteia também, via silêncio, uma crítica à vida moderna e à consequente perda da experiência. Este é um dos contatos entre o pensamento de Cage e de Adorno a que vale a pena estarmos atentos.

(tacere)

Se é verdade que Walter Benjamin já tinha aludido a tal perda, em Experiência e Pobreza (1933), essa saturação da vida moderna, quer pelo horror, quer pela pro- gressiva substituição da experiência por algo vazio e veloz, levou ao nascimento do famoso paradigma Bartleby de Enrique Vila-Matas (1948 - ) em que a cartografia do silêncio – o deixar de dizer, o calar-se - poderia ter tido um encontro feliz com Cage. Ensaiamos com Cage um vínculo reflexivo com a própria música. Julia Robinson (citada em Plasencia, 2009) faz-nos uma observação dupla sobre 4’33’’: - ao mesmo tempo que é um meta-discurso catalisador sobre o que é a música e a arte, também se expõe enquanto experiência estética no sentido em que reconfigura a experiência da escuta e da perceção.

Ao pensamento prévio sobre o silêncio engendrado pelo compositor soma-se agora a experiência auditiva do recetor onde o acaso agita a sua presença e o torna próxi- mo do conceito benjaminiano de Jeztzeit, da noção de agora, que transforma tempo em conhecimento, o que faz com que o cronos dê lugar ao kairós.

O tempo vazio do relógio torna-se agora um tempo prenhe de oportunidades para os ganhos próprios da consciência humana.

Isto por si só bastaria para poder desenhar uma hipótese política a ser ensaiada em Cage: um compromisso com a resistência ao anquilosamento da sociedade contem- porânea e com a reconfiguração em permanência da arte sonora.

Ao lado de Cage, outros desterritorializadores da arte sonora foram povoando o universo musical e foram antecipando – como se de sismógrafos se tratassem – o advento de outros numa cadência sem precedentes.

Registam-se aqui, acidentalmente, alguns desses companheiros de estrada:

Edgar Varése(1883 - 1965) no dealbar da música eletrónica; Morton Feldman (1926 - 1987) na procura de agenciamentos composicionais desprovidos de sintaxe; Pier- re Schaeffer (1910 - 1995) e Pierre Henry (1927 - 2017) na turbulência da música concreta; Karlheinz Stockhausen(1928 - 2007) na dilatação dos fluxos sonoros; La Monte Young(1935 - ), Terry Riley (1935 - ), Tony Conrad (1940 - 2016), Philip Glass (1937 - ), Steve Reich(1936 - ) e Pauline Oliveros (1932 - 2016) na elevação da criação musical a um plano de imanência com a música minimal; Bernhard Gunter

(1957-) e Richard Chartier(1971-) na criação de eventos sonoros microscópicos que ganham vida num tecido musical silencioso; Merzbow na isenção da forma musical a favor de fluxos sonoros caracterizados pelo noise, ou de todos aqueles que apostam na criação de enxames de partículas sonoras.

(silere)

Estas singularidades da criação musical contemporânea só desvelam uma parte de um corpo musical, deleuzianamente sem órgãos, que se move quase impercetivel- mente, garantindo a existência de uma miríade de experiências sonoro-musicais envoltas num silêncio recheado de explorações e de indeterminações.

John Cage, tal como Orfeu, saiu em busca de lugares silenciosos e não encontrou nenhum. As sibilas disseram a Orfeu que o silêncio não existe, e Cage trouxe da sala anecoica que visitou, a certeza de que o silêncio a existir só poderia ser aquela aten- ção profunda que o homem dá quando quer dar azo a que o mundo fale.

Ambos sorveram os sons e os ruídos do planeta e só depois tiveram a oportunidade de os soltar, de os devolver, envolvendo-nos com eles. Ainda hoje se ouvem quando temos o privilégio de viver a impossibilidade de ouvir 4’33’’.