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O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.11. SILÊNCIO INDETERMINAÇÃO.

(…) no caso da obra indeterminada, não fui eu que dei lógica à partitura. (Cage, 2010, p. 90)

Se é verdade que já se tinha afastado do Dodecafonismo de Schoenberg, a rutura aberta com Boulez, que se evidencia até na correspondência entre ambos, acontece ao elaborar um processo de desestruturação da obra musical.

Cage (2010) confessa a Daniel Charles que: - “na civilização atual, onde tudo está estandardizado, onde tudo se repete, a questão decisiva é olvidarmo-nos durante a passagem de um objeto para o seu duplicado. Se não tivéssemos essa capacidade de esquecer, se a arte atual não nos ajudasse a esquecer, estaríamos submersos, afoga- dos nessa avalancha de objetos rigorosamente idênticos.” (p. 90)

Cage postula então a ideia de que arte, a música em particular, deve desacostumar-nos, deve providenciar em cada repetição uma experiência sempre nova. 4’33’’ está sem- pre a lembrar-nos disso e talvez seja por isso que, iconicamente, se transformou num apelo à música enquanto disciplina de adaptação, em permanência, a um mundo que é mundo enquanto processo, ora estável, ora instável, que é um mundo que ad- mite que a lógica “constitui uma simplificação (…) sobre a qual devemos ter cuidado. Essa é a função da arte atual: proteger-nos de todas essas reduções lógicas que esta- mos tentados a aplicar a cada instante do fluir dos acontecimentos. Abeirarmo-nos do processo que é o mundo.“ (Cage, 2010, p. 91)

Acompanhando David Tudor, Morton Feldman, Christian Wolff e Earle Brown, Cage elabora as primeiras partituras sem expressão ou não expressivas, esteticamente provocatórias e introduz nas suas obras os primeiros procedimentos aleatórios, para descartar definitivamente a subjetividade e renunciar a qualquer intencionalidade. Daqui resulta uma música e uma escrita altamente criativa.

As chance operations são adotadas por Cage por nelas ser possível fazer uma distribuição desigual de elementos. O oráculo chinês do I Ching é utilizado por Cage exatamente para obter espaço e tempo para que aconteça a indeterminação e seja possível quebrar o círculo da repetição-variação a que a música se vinha acomodando, fragilizando com esta estratégia composicional, hábitos e memórias naturalizados em nós. Ao mesmo tempo Cage começa a desenhar, com a música experimental, uma batalha contra aquilo a que poderíamos chamar de taxionomia musical, cuja exigência em ler e em decifrar poderia levar-nos novamente à herança histórico-musical dos sé- culos XVIII e XIX.

Com humor, Cage diz-nos, com alguma inocência, que: “Penso que é porque nunca estudei solfejo (…) o resultado é que a música nunca soa convencional.” (Cage, cita- do em Bigazzi, 1993, p.15)

Momentos marcantes desta plêiade de experiências são Sixteen Dances, Music of

Changes, para piano de 1951 e Imaginary Landscape nº 4, para doze aparelhos de

rádio ligados, aleatória e simultaneamente, e doze executantes. Imaginary Lands-

cape nº 5, para banda magnética com 42 registos de jazz fortalece o seu cardápio.

Segue-se a sua primeira composição silenciosa 4´33’’, em 1952, que mais tarde virá a ser revisitada em 0’00’’ e anunciada ainda uma outra revisitação nas conversas com Daniel Charles em Para los pájaros. À pergunta feita sobre como distinguir estas obras, Cage avança com a ideia de que 4’33’’ é para um, ou vários músicos não produzirem sons.

0’00’’ indica que uma obrigação a respeito de outro deve ser acatada, parcial ou completamente, por uma só pessoa. A terceira consiste na reunião de várias pessoas que praticam um jogo numa situação que é amplificada. Uma partida de xadrez, por exemplo, que se transforma em obra musical.

Cage amplifica, com recurso à tecnologia, o jogo de xadrez para poder operar sobre um silêncio grávido de ruídos.

Em Silence (Cage, 1961) anuncia o que pode acontecer no seu 4’33’’:

written music as silences, opening the doors of the music to the sounds that happen to be in the environment. This openness exists in the fields of modern sculpture and architecture. (pp.7-8)

Em 1953 deixa Nova York e irá viver com David Tudor e outros artistas numa velha quinta, comprada por Williams, em Stony Point, onde começará o seu interesse particular por cogumelos e pela ecologia.

E é de volta a Black Mountain College, onde havia proferido a conferência sobre o som e o silêncio, que se reunirá com Merce Cunningham, o artista plástico Robert Rauschenberg, o pianista David Tudor, e os poetas Charles Olson e M.C Richards onde, pela primeira vez, e sem plano pré-concebido, justapondo as diferentes áreas artísticas que representam em conjunto, realizam o primeiro happening.

É através do happening que Cage vem reforçar o seu ideário artístico: tónica na ação e no processo, plasticidade enorme a dar aos objetos sonoros e aos intérpretes, o uso informal do espaço e do tempo, a indeterminação, a improvisação e a experiência a pautar o tipo de trabalho a realizar, o recurso à osmose entre géneros artísticos, a interação e o rigor posto no trabalho a desenvolver. Do processo resulta a hibridez dos resultados e a óbvia dificuldade em catalogar ou categorizar o sucedido.

Observador atento aos questionamentos do movimento FLUXUS vai desenvolver processos experimentais inéditos. Este movimento artístico, data de 1961 e man- teve-se em paralelo com uma certa estética do Dadaísmo e da Pop Art que sempre recusou dar aos objetos estéticos o estatuto de mercadoria.

Cage, ao lado de Merce Cunningham e de Robert Rauschenberg, faz o tributo à dis- sociação entre arte e representação e questiona a hierarquização do espaço cénico- -musical adotando a aleatoriedade e a indeterminação como processo de trabalho. Promove o abandono da narratividade e define música como o som que nos rodeia. Esta liberdade de pensamento de Cage rapidamente deu frutos. A Judson Dance Theater, em Nova Iorque, é um exemplo disso mesmo, com Robert Dunn – músico que trabalhou com Cage e Cunningham – a reunir um grupo significativo de músicos, bailarinos e artistas plásticos.

Manter-se-á em Nova York durante mais de 10 anos, numa pequena comunidade de artistas, entre 1954 e 1966, onde se torna um verdadeiro especialista em cogumelos, tal como já mencionado, contribuindo para a formação da Sociedade de Micologia de Nova York.

Fará dietas macrobióticas com Yoko Ono e desenvolverá a sua faceta naturalista e ecologista sobre a qual mais tarde é criticado, apelidado até de reacionário, por desviar as atenções dos seus ouvintes sobre o verdadeiro debate a ter e que seria o de questionar o establishment.

Apesar de tudo Cage continuará a abrir portas que, já sem possibilidade de se pode- rem fechar, irão proporcionar um vasto conjunto de iniciativas, não exclusivamente sonoras, mas simultaneamente poéticas, plásticas, visuais, com dança e movimento e que constituirão um forte incremento sobre o happening e sobre a performance. Cage vai voltar a viajar pela Europa, desta feita com o pianista David Tudor em 1954 e compõe partituras em que se serve de papel rasgado que passa a integrar a partitura musical, como colagem, fazendo Music for Piano, 1955.

Será depois de assistir a um dos seus concertos que Stockhausen comporá a sua peça para piano intitulada KlavierStuck XI. A personalidade alquímica, digamos assim, de Cage atrairá os maiores entusiastas e, ao mesmo tempo, as maiores críti- cas, tendo-se tornado num dos casos mais radicais de experimentalismo de todo o século XX.

Exemplo notório disso mesmo é o do concerto retrospetivo dos 25 anos de atividade de Cage, em 1958. O seu Concerto for Piano and Orchestra, apresentou uma parte de sobreposição de diferentes solos, outra parte com um maestro sem ligação com os solos, e outra ainda para piano, escrita premeditadamente segundo 24 proce- dimentos de notações distintas – e ainda a possibilidade de um jogo simultâneo de outras partituras suas: Aria, Solo for Voice I, Winter Music, Fontana Mix, esta última escrita em papel transparente.

Segue-se um período fértil de teatralização e jogo instrumental com a criação de peças como Variations I (1958), Cartridge Music and Theater Piece (1960), Atlas

Eclipticalis (1961). Em 1963, durante uma performance simultânea de Variations nº 2 e nº 3, colocou um microfone junto à garganta para amplificar o som da deglutição

dum copo de água.

Uma das suas últimas obras, Organ2/ASLSP conhecida por As SLow aS Possible, e já mencionada por nós, foi tocada pela 1ª vez em 1987. Dado que a sua duração é indeterminada, a sua interpretação definitiva iniciou-se já depois da morte do com- positor e terminará, calcula-se, dentro de seis séculos.

Esta obra coloca a tónica numa das suas questões sobre a vida e a arte: a luta contra o antropocentrismo e contra os constrangimentos impostos à música pelo homem. Em 1992, ano da sua morte, de visita a Itália, dará aquelas que serão as suas últimas entrevistas publicadas na Revista aqui citada, onde declara:

Vivo no cruzamento da 6º Avenida com a Rua 18, em Nova York. É mais ou menos o coração de Manhattan. O tráfico é constante e o som maravilhoso. Nunca tenho momentos sem interesse (Cage, citado em Bigazzi, 1993, p.15).

Destaca-se aqui a revelação de um dos seus desejos:

Aguardo ansiosamente o dia em que tudo será livre, mais do que proibido (ibid, p. 64).