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SERÁ O SILÊNCIO UMA HETEROTOPIA?

O SILÊNCIO INICIA…

12 Conceito a ser referenciado no capítulo 2 e desenvolvido no capítulo quarto (secção 4.2).

1.3. DO SILÊNCIO ENQUANTO HETEROTOPIA

1.3.1 SERÁ O SILÊNCIO UMA HETEROTOPIA?

O silêncio não é uma supressão da voz, é um intervalo, é uma expectativa, é uma fenda, é a condição de toda a música e de toda a palavra, o sossego, a espera sem mácula no jardim primitivo.

(Molder, 2005, p. 151)

Será o silêncio uma heterotopia? Algo que resulta de uma deambulação entre o mito e o real? Será o silêncio – este nosso silêncio – uma saga sobre o cultivar do imaginário íntimo de cada um de nós, isto é, uma topiária de dentro, como referíamos atrás? Será o silêncio um quadro, um plano referencial repleto de memórias e de visões particulares sobre o mundo?

E, será a escuta desse silêncio a viagem necessária – essa visão nómada sobre o homem no mundo – para que ocorra em nós um discernimento, uma possibilidade de ouvirmos de fora?

A escuta, ela própria, será um imago do compromisso ético e estético de um qualquer homem?

O silêncio, enquanto hortus conclusus latino, ou enquanto pairidaeza persa, coloca- -nos perante a inevitabilidade de nos confrontarmos com um lugar de reclusão, de pousio, de calma tão necessária aos dias que correm, para nos fazer balancear entre a vita activa e a vita contemplativa.

Sabemos hoje, pelo esforço que lhe temos dedicado, que o silêncio contém potência semântica suficiente para ir desde os claustros de um mosteiro beneditino português até às torres iranianas do silêncio.

Ora, será essa potência semântica capaz de se impor em nós como uma causa que nos predispõe ao espanto?

Aparentemente, o silêncio está mais próximo do homem do que podemos imaginar. Assim, talvez ele nos permita a todos, porque nos dá a ouvir, nos dá a escutar todas as possibilidades das manifestações sonoras.

Da sua enigmática presença entre nós, o silêncio coloca-nos o desafio de podermos destilar e exilar sons – homo habilis e homo musicalis – ruídos e as palavras que melhor nos denunciem na nossa singularidade e nos domínios da esfera pública. Damos conta até que o silêncio nos permitiu inventar técnicas de suspensão e práticas de intervenção na fala, no discurso e na comunicação.

Descobrimos que ele pode significar reflexão, atenção, mas também pode acontecer que, aquando da sua manifestação, ele queira desaprovar e condenar.

Será por causa disso, desse silêncio enquanto estado-de-alerta-em-permanência, que ele nos é sonegado?

Será, por causa disso, que o silêncio fica nas margens, ou nos bastidores, do tempo em que vivemos?

Regressando a ele, sabemos que o seu culto tem e teve lugar de destaque em muitas comunidades e que, em muitas culturas e em muitas circunstâncias, a sua presença favorece o destaque do sujeito que dele imanesce e o ultrapassa, o transcende. É aqui que o aberto e o indeterminado ganham força e, talvez seja por causa disso que ele - o silêncio – fique propositadamente amarrotado na engrenagem do neoliberalismo. Imaginamos até que ele possa ser considerado uma ameaça à narrativa utilitarista dos dias que correm.

Admitimos que o presente, muito marcado pelo bit e pelo pixel, esteja demasiadamente marcado pelo agora e pelo aqui. Temos então a vontade de abandonar este presente e remar contra a atomização do tempo e lutar contra o exagero com que o espaço e o tempo para a imanência inundam o hoje.

Interessa-nos, sobretudo, usá-lo a favor da reflexão e da construção de pensamento, a favor da vontade de partir, pensando. Nomadismo em curso, pois então… e silenciosamente. Presumimos então que a acontecer uma autobiografia do silêncio – algo que ainda não vimos acontecer – ela serviria para enunciar a paixão humana pela reconstrução de um espaço público plural, fecundado pelo inevitável exercício compulsivo do ato de refletir, do calar e do falar. Até mesmo do simples gesto do registar, do escrever.

Tudo de se passa ao nível do ouvido, escrevo como se estivesse cega, com dedos sonoros.

(Llansol, 2009, p. 219)

O melhor seria se, regressando aos bons hábitos das sociedades orais, nos pudéssemos tornar em escanções linguísticos perfeitos para melhor escolhermos, filtrarmos e apurarmos o pensamento, as palavras, os sons e os silêncios que daí resultassem. Seria mais fecundo para o labor e pensar humano se tornássemos este silêncio, que continuamos a perseguir, em algo não turístico, new age ou psicológico, mas, ou- trossim, num silêncio estruturante em nós.

Um silêncio como um locus amoenus privilegiado a partir do qual o homem renasce e co- meça a experimentar, através do discurso e da ação, algo novo e disponivelmente aberto. Este passo coloca-nos perante a possibilidade de observarmos o aberto como um aberto permanente, fazendo do homem um construtor de sentidos na sua relação com os outros e com o mundo.

Assim, poderemos observar várias possibilidades de ler e sentir o silêncio nas suas naturais entropias, numa contemplação/ação propositora de um descentramento de nós mesmos.

Entendemos por isso ser necessário acordar o silêncio, elogiá-lo, ressuscitá-lo dos textos ou dos ruídos da fala, permitindo-lhe que manifeste melhor a sua inscrição no pensamento e na emoção humana contemporâneas.

Até porque poderemos fazer dele a hesitação, a autocorreção e a clarificação de ideias tão necessárias à liberdade e à consciência crítica.

Presumimos, sem presunção, que uma mente silenciosa será uma finalidade e um posto avançado no percurso humano a ser empreendido por cada um de nós. O que daí advirá?

Não sabemos, mas imaginamos mais prudência, menos alienação e mais riqueza na singularidade do pensamento e nas ações dos homens.

No que nos diz respeito, artistas e professores, tal como os místicos sufis, quakers, cristãos e hindus, talvez nos possamos até tornar os artesãos do estranhamento, lançando ao mundo sinais da interioridade humana.

Na verdade, seria como fazer do silêncio uma estratégia de sobrevivência, uma in- terpretação do sensível tornando-nos, a todos, mais atentos à solidariedade entre sensação, perceção, experiência e ação/reflexão.

Haverá pensamento sem silêncio? Sem silêncio, haverá obra de arte?

Todos sabemos que as mais luminosas obras de arte tatuam em nós a ideia de acedermos a um lugar, a um tempo e um espaço, em que interrompemos a ilusória linearidade do tempo pelo estilhaço que o silêncio-acontecimento produz em nós. Às vezes está-lhe associado um estranhamento, uma impossibilidade de nomear o que aconteceu.

Ora, é nesse silêncio reivindicador de anomia sonora que desejamos habitar, pro- movendo-o contra a estetização do quotidiano, contra a abundância e contra a inte- gração consumista e sistemática poluição da paisagem humana no que diz respeito aos seus sentidos e à forma como ela se apropria do mundo.

Em todo o caso, é, possivelmente, um silêncio malcomportado capaz de rir na cara da racionalidade contabilística e da rentabilidade máxima com que vamos lidando com o mundo.

E é, por isso, um silêncio cheio de vontade de possibilitar o renascer ontológico dos homens.

Novamente o silêncio. Do latim silentiu, essa ideia de sigilo, de recato, remete-nos para um qualquer homem que coloca a si próprio o exercício da sua própria suspensão por forma a potenciar, num amplo movimento de consciência, o seu pensamento em palavras e ações.

Aqui chegados importa valorizar a preocupação em afirmar que, sem silêncio, o que

fica alienado é o sentir, deitando fora e, por inteiro, o horizonte da sensibilidade.

Este elogio do silêncio traz à superfície um gesto adâmico: o de poder nomear novos e renovados sentidos para a presença dos homens no mundo e, por razões de força maior, observá-la enquanto convite à criação permanente.

Este elogio, ou este silêncio sobre o silêncio – silêncio ao quadrado – em que queremos continuar a trabalhar, permite-nos acalentar a ideia de ver a aparecer uma apologia do silêncio em que o ouvir para sentir – eis o primeiro impacto do sensorial em ação – dá as mãos ao escutar para refletir e guardar – eis a perceção e a razão a ganhar corpo – e que nos auxilia a inaugurar uma forma livre de sentir e pensar o mundo.

Já há muito tempo que a minha sabedoria se acumula, à maneira de uma nuvem, tornando-se mais silenciosa e mais escura. Assim faz toda a sabedoria que, um dia, há-de parir pirilampos.

Para esses homens de hoje não quero ser luz, nem significar luz. A esses... quero eu cegá-los: relâmpago da minha sabedoria, arranca-lhes os olhos. (Nietzsche, 1998, p. 338)

(tacere)

Invocamos aqui a ideia de silêncio enquanto heterotopia usando essa noção a partir de Michel Foucault (2001). Na sua conceção sobre heterotopia o autor permite-nos entender o que a faz distinguir de utopia. Estas não têm lugar certo, real, ao passo que heterotopias são espaços reais – i.e. espelho, barco - que coabitam com formas de representação particulares e num vai-e-vem de normas particulares.

As heterotopias, a do silêncio em particular, não cuidam de idealizar ou de representar espaços irreais. São-no na medida em que se manifestam enquanto espaços possíveis no uso-fruto das suas múltiplas exteriorizações, com regras próprias. A heterotopia da música, ao ser representada de uma outra forma pela do silêncio, questionamos nós, será que poderá permitir-nos perceber melhor a sociedade em que vivemos?

Ouçamos Foucault:

Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos num momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza a sua trama.

(Foucault, 2001, p. 411).

Fixemo-nos nesta assunção foucaultiana para podermos afirmar, em conjunto, que numa sociedade democrática como aquela em que vivemos constatamos a sua vida composta por aposições, por viver próximo ou afastado, ou por tangentes.

O que queremos dizer é que pensar no silêncio como uma heterotopia significa podermos encontrar um caminho para questionarmos o que andamos a fazer, ou para questionarmos o que andam a fazer às nossas pluralidades, às nossas vozes. Presumimos, pois, que a pertinência de falarmos de silêncio enquanto heterotopia é a de nos podermos auxiliar a questionar como podemos nós hoje fazer vincar a ma- triz identitária do nosso pensamento e de como podemos manter viva a pluralidade das vozes humanas.

Pensar o plural, o indeterminado, pode querer significar enriquecer as perceções sobre o lugar que o outro pode ocupar em nós.

A heterotopia do silêncio é a consciência, é um pensamento sobre a possibilidade da existência de outros espaços, é uma leitura abrasiva que contesta a facilidade, o entretenimento alienante e a ideia naturalizada, instaurada em nós, de vermos as sociedades, e a forma de como nos pomos a viver nelas, lisas e uniformes.

A heterotopia do silêncio, tal como a ouvimos e vemos, dá-nos força para podermos pensar sons ainda não pensáveis, permite-nos ver a alteridade musical e dá-nos acesso ao que está fora-de-cena.

Estamos em crer que a heterotopia silenciosa rapidamente se poderá tornar numa metáfora acintosamente democrática.

A heterotopia do silêncio não deixa de ser, neste nosso trabalho, uma vontade em querer interpretar a complexidade do mundo em que vivemos e inscrever todo o constructo deste nosso labor num tópico, num espaço de convivência onde uma multiplicidade de indivíduos se põem a pensar como devem relacionar-se com as suas identidades e alteridades.

A música, e a sua sombra auricular que é o silêncio, é um bom cenário heterotópico para justapor, num mesmo espaço e num mesmo tempo, compreensões distintas sobre o enigmático sonoro que ela própria constitui.

Ouçamos novamente Foucault:

A heterotopia é capaz de justapor num único lugar real, diversos espaços, diversos lugares que são, eles mesmos, incompatíveis.

(Foucault, 2001, p. 419).

Na verdade, para compreendermos melhor o fenómeno polissémico do silêncio necessitávamos de encontrar um conceito que melhor nos pudesse fazer entender o um e o seu múltiplo.

O silêncio, posto desta maneira, só pode sobreviver em contextos que o desdobrem.