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DO SILÊNCIO LEGÍTIMO AO SILÊNCIO LEGITIMADO

O SILÊNCIO INICIA…

12 Conceito a ser referenciado no capítulo 2 e desenvolvido no capítulo quarto (secção 4.2).

1.2. DO SILÊNCIO LEGÍTIMO AO SILÊNCIO LEGITIMADO

O silêncio é o último gesto extraterreno do artista: através do silêncio ele liberta-se do cativeiro servil face ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, arbitrário e desvirtuador da sua obra. (Sontag, 1987, p. 14)

Não sabemos se alguma vez tivemos sorte com a escrita. Não sabemos se alguma vez tivemos sorte com textos. Pior, nunca ninguém nos disse quem somos como escre- ventes, mas ousamos partir – eis a metáfora da errância – do lugar onde estamos, como diria Foucault (1997), e das condições que temos expressando a ideia de nos podermos situar em algo sem começo, mas onde desejamos tomar a palavra. O nosso problema? O nosso ponto de partida?

Sofremos da doença compulsiva do ouvir e este problema, eterno em nós desde que nos conhecemos, transtorna-nos e põe-nos do lado daqueles que perguntam por onde anda o que ouvimos? Por onde anda aquilo que escrevemos? Neste novo milénio, o que é feito da música? O que é feito da música que fazemos nas escolas?

Vejamos: como será a música depois de a escrutinarmos, como será a música depois de a colocarmos perante o labirinto do silêncio?

Não sabemos, mas queremos saber.

Ora, este querer saber chegou-nos para ver surgirem à nossa frente caminhos que nos ofereceram alento ao pensamento e à escrita que agora surge e que nos tem absorvido. É, pois, sobre essa música-fantasma, essa música-sussurro, essa música-silêncio que agora nos faz suspender in silentium para a ver e a ouvir mais de perto.

Eis, pois, a legitimação de um silêncio em nós enquanto potência da impotência provinda de Bartleby, de Melville, de Heráclito, de Nietzsche e de Cage.

Eis um silêncio enquanto desobediência face aos maus tratos infligidos, nos dias que correm, ao nosso corpo e ao nosso pensamento.

Adivinha-se agora facilmente por onde começa a alinhar esta nossa escrita: na rutura entre o silêncio e o uso decorativo dos sons, da atomização musical e do re- gisto fetiche desses mesmos sons.

Olhando para o nosso percurso, vemos nitidamente a música como uma das coisas mais importantes para a nossa independência. Uma música, acolhida por nós in- conscientemente, para nos livrar do que nos rodeava.

Depois, veio a escola e com ela demos conta que era muito fácil tornarmo-nos copistas. Isso chamou-nos particularmente a atenção.

Com a segunda escola de Viena, entre outras aventuras contemporâneas, pensamos, também pela primeira vez, que todos deveríamos pensar a escola como um lugar onde se ensina a dizer não de mais de mil maneiras diferentes. Isso até nos confortou. O pior é que, passado algum tempo, demos conta que todos de lá íamos saindo a copiar. Como legitimar o nosso 4’34’’? Imaginemo-lo como um segundo a mais para dizer

não13. Um 4’34’’ do tamanho de um não.

4’34’’ é sobre o não querer ser copista, com todo o respeito que temos pelos copistas. Mas, numa sociedade tão imersa no sample, só nos resta afastarmo-nos. Eis, pois, um 4’34’’ em forma de êxodo.

É por isso que não o confundimos com o 4’33’’ de John Cage.

Sentimo-nos por ele atraídos, constituindo para nós um referencial fundamental para o pensamento musical contemporâneo, mas não nos encontramos nas mesmas condições para termos sobre ele exatamente o(s) mesmo(s) significado(s). Aí, a polisse- mia sobre o silêncio injeta em nós o seu fel e permite-nos, delicadamente, dele nos afastarmos sem deixarmos, no entanto, de lhe declarar o nosso eterno agradecimento. Se Cage é a favor e trata de enaltecer a intransitividade dos sons que emanam do mundo, o nosso silêncio é mais um silêncio disruptivo. Talvez seja esse o nosso querer ontológico que nos afasta de Cage, embora permanecendo a seu lado.

O silêncio cageano é, musicalmente, mais delicado querendo chamar-nos a atenção para o beco sem saída em que andámos metidos. Tornou-se por isso uma obra seminal para o século XX.

A rastrearmos Cage vemo-nos confrontados com uma escrita quase idêntica a um conjunto de notas de viagem, ou de notas de rodapé, sobre o silêncio, essa matéria invisível e ontologicamente indeterminada.

Partimos do lugar onde estamos seguindo uma ténue e delicada linha dedicada a um silêncio ontológico – aquele que se pôs em nós – rumo a um outro silêncio, enquanto maneira de negar o mundo que temos pela frente.

Esta escrita provém de alguém que recusa o som-décor, contemplando uma pulsão pelo ainda não conhecido, pelo nada (sileo) e apoiando-se na atitude emergente de querer mandar calar (taceo) sem querer, no entanto, tomar a vez e a voz dos outros e sem se atrever a desenhar futuros. Uma escrita idêntica a uma escrítica, sobretudo 13 No nosso caso este não é de resistência, até de crítica e de reflexão para observarmos os

processos que controlam as representações que temos e fazemos do mundo. Este não assume a hipótese da recodificação das linguagens e deseja quebrar com a reificação do pensamento. É um não reavaliativo.

num momento como o que vivemos, tão pouco afoito e tão pouco dador de crítica. Uma escrita com um destino: para depois do silêncio, e com ele, podermos todos voltar a inventar, a escrever, a declarar.

É, pois, uma viagem pelo labirinto do não e é como se disséssemos que decidimos conhecer o mundo, assim como se conhece alguém, mas só pelo ouvido.

Nessa viagem transportamos connosco uma interrogação, uma declaração, como se fosse o nosso ponto de partida: será possível, hoje, o silêncio?

(silere)

Como podemos agora mais facilmente adivinhar é, pois, sobre as dificuldades de o silêncio se manifestar contemporaneamente que antevemos o desejo de lhe dar vez e voz. Partimos dele, e regressamos a ele num movimento espiral do pensamento, dando conta até da sua polissemia matricial.

Da sua frágil presença hoje entre nós, pretendemos revisitar John Cage para pensar esse silêncio como condição necessária à vida e à criação.

E, porquê revisitar, hoje, John Cage? Volvidos que estão quase 70 anos da sua primeira manifestação, o que haverá para dizer?

Em John Cage há um silêncio sem aspas, há um silêncio sonoro, físico.

Há mesmo um silêncio reivindicador de anomia sonora, há um silêncio revolucionário, um silêncio em luta contra o excesso de regras, de hierarquias e de padronizações estilísticas. Em John Cage, a apropriação do silêncio, enquanto organismo musical vivo, permite observar o som enquanto escultura espácio-temporal, e isso oferece-nos a possibi- lidade de expandir o universo da música no espaço, perspetivando novas possibilidades para que a música se manifeste como sonosfera anárquica.

Eis, pois, o silêncio como elevador para que a música ascenda à condição de uma outra música, à condição de música nova.

De uma outra maneira, o nosso silêncio instalou-se em nós sub-repticiamente e, de momento, surge enquanto silêncio desobediente, crítico e disruptivo.

É um silêncio reivindicador de uma salutar e preciosa reivindicação: a de querer uma outra vivência para o mundo, em particular para o mundo da música em contexto educativo, ou da construção de um manual de sobrevivência para limpar o excesso de fancaria e de fealdade espalhada por este mundo fora.

É um silêncio contra a estetização do quotidiano, contra a abundância em demasia e contra a integração consumista e a sistemática poluição da paisagem sonora huma- na, no que diz respeito aos seus sentidos e à forma como esta se apropria do mundo. É um silêncio - grito em rutura com o modo de regulação, digamos, fordiano com que nos puseram a viver.

É um silêncio malcomportado, capaz de rir na cara da racionalidade contabilística e da rentabilidade máxima com que temos vindo a lidar com o mundo, em particular com a educação, a música e o mundo das artes.

Por isso decidimos partir, não sem antes passar pelo essencialista Parménides, pelo

homem do é, eterno e imutável, e, sem o desrespeitar, dizer-lhe que preferimos ir

acolher e abraçar, no nosso modo de ver o mundo, o existencialista Heráclito. E abraçá-lo sobretudo quando nos diz que o homem é devir e está em perma- nente afetação.

Com ele podemos dizer que somos o que ouvimos, que o ser não é vazio e que se forma permanentemente e de múltiplas maneiras.

O que afeta, então, o nosso corpo?

No nosso entender, e acima de tudo, o que nos afeta é a experiência estética. Para legitimar o nosso silêncio, diríamos que a experiência estética é aquela que nos dá o ser e, sem o silêncio necessário à sua realização, sem o distanciamento indispensável, tornar-se-á difícil refinar o nosso papel de seres abertos e disponíveis. E, então, seres abertos e disponíveis a quê?

Abertos e disponíveis à reconfiguração permanente, por osmose com o mundo, e assumindo o papel de cocriadores de poéticas e de outras sensibilidades.

Eis, pois, um silêncio disposto a ser parceiro confidente dos homens, de quaisquer homens. Os mais antigos chamariam assim aos homens: seres em devir.

Agamben, hoje, chamar-lhes-ia seres em aberto. Que assim seja. E, amplificando, abertos a quê?

No nosso entender, só pode ser às afetações permanentes.

Ora o que pretendemos observar é o escutar, exatamente, esse poder das artes, es- pecialmente o poder da música, em afetar-nos, a comover-nos.

Sendo assim, sentimos o som e a música como formas singulares em devir e, por isso, vamo-nos convencendo de que usar o silêncio, enquanto seres-em-trânsito que somos, nos permite estar abertos à pluralidade dos territórios e, convivencial- mente, dispostos a ouvir a alteridade.

Eis um silêncio legitimado a exprimir a sua predisposição para a exploração, para a possibilidade de aumentarmos o nosso mapa de experiências.

(tacere)

Recordemos, por instantes, o grito de Artaud (1896-1948). Em que é que ele consistiu? Uma leitura possível é a de que foi um grito-silêncio que transformou um auditório. É isso o silêncio, este silêncio de que falamos. Um grito que nos transforma, que nos muda, que irrompe pelo pensamento adentro. Um silêncio que nos impele a uma mudança.

Diríamos que o silêncio existe em nós enquanto dimensão estética que se dispõe a estar na origem e a ser companheira das demais. Um silêncio que potencia, que apoia e amplia o gesto criativo humano.

Esse silêncio – lugar para a criação – significa ir ao encontro de todas as possibi- lidades estéticas. Por causa disso, até pode dar-se o caso de, com ele, podermos pensar em novos atributos e definições para o conceito de música. Voltando a John Cage, e na nossa espiral de pensamento, sentimos cada vez mais clara a sua inter- pelação. Sentimos que, com ele, ficaram ainda mais claras, as inscrições para novas possibilidades de o ser humano poder ser, ainda mais, um ser em devir.

Fica assim a legitimação do silêncio pronta para nos confidenciar que o silêncio se mani- festa plural, se evidencia – talvez seja o mais acertado de dizer – e se mostra disponível para nos dizer que não existe enquanto silêncio, mas outrossim, enquanto silêncios. Apesar de existirem muitos autores apaixonados pela temática silenciosa – i.e. Anton Webern (1883 - 1945), Arvo Pärt (1935- ), Mallarmé (1842 - 1898), Rimbaud (1854 - 1891), Beckett (1906 - 1989), Vergílio Ferreira (1916 - 1996), Paul Celan (1920 - 1970), Fernando Pessoa (1888 - 1935) - em Cage encontramos um acutilante sentido em evidenciar que o silêncio não se esgota nos cenários acústicos, expondo-se este tal qual um modo de pensar, como uma mudança, uma reviravolta.

There is no such a thing called silence. Something is always happening that makes a sound. No one can have an idea once he starts really listening. (Cage, 1961, p. 191).

Esta afirmação cageana marca a importância do silêncio no seu pensamento e no seu fazer artístico permitindo-nos, legitimando-nos a discernir sobre a sua pertinência e, direcionando-nos a legitimar a sua inscrição, hoje, no mundo.