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O SILÊNCIO INICIA…

Silêncio 8 2016 Tiananmen, China

2.2. JOHN CAGE NO DESERTO

2.2.7. CAGE E A CESURA NA MÚSICA

O que é o homem, se este é sempre o lugar – e. simultaneamente, o resultado – de divisões e cesuras incessantes? Trabalhar sobre estas divisões, interro- garmo-nos sobre o modo como – no homem – o homem foi separado do não-homem e o animal do humano, é mais urgente do que tomar posições sobre as grandes questões, sobre os supostos valores e direitos humanos. E talvez até a esfera iluminada das relações com o divino dependa, de algum modo, daquela - mais obscura – que nos separa do animal.

(Agamben, 2015, p. 29)

Suspeitamos agora que só poderemos admitir que a obra musical, uma qualquer obra ou procedimento musical, seja de natureza aberta. O que é pertença da música? Pertencem à música, silêncios, sons e ruídos que os hábitos culturais e convenções tácitas nos fazem considerar como seus. Podemos chamar de objeto musical a qualquer objeto/material sonoro integrado numa construção sonora requerida pelo homem, mesmo que essa vontade se limite apenas ao ato de ouvir.

Nesta perspetiva sublinha-se que o facto musical não resulta somente de uma intenção criadora, mas também de uma atitude de escuta, aspeto que foi, como vimos, profundamente explorado por Cage.

É possível distinguir som e ruído em termos acústicos. O som é resultado de vibrações periódicas e regulares e o ruído o resultado de vibrações aperiódicas o que faz com que as definições oficiais de ruído o coloquem enquanto vibração errática ou estatisticamente aleatória.

De outra maneira e, considerado subjetivamente, o ruído é toda a manifestação sonora que toma para nós um carácter afetivo desagradável. Claro está que os critérios que, de um ponto de vista percetivo fazem com que um som seja classificado de ruído, são diversos e vão desde a intensidade elevada, à ausência de altura definida e à falta de organização.

Estes critérios são definidos em relação a um limiar de aceitabilidade que é arbi- trariamente definido como norma e são estes mesmos critérios que, na experiência musical, estabelecem a equação som/ruído como equivalente a musical/ não musical. Apuramos que a distinção som/ruído não tem fundamento físico estável e, por isso mesmo, configura uma construção da perceção do ouvinte resultante de um cenário humano profundamente cultural.

Nestas deambulações históricas e culturais encetadas pelo homem damos conta, e podemos assinalar, que é frequente certos sons musicais serem acolhidos pelo compositor e, ao mesmo tempo, serem considerados desagradáveis pelos ouvintes. A história da música ocidental está prenhe deste tipo de acontecimentos.

Aquando da sua aparição, o primeiro acorde da Ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner em 1859, é comentado por Luciano Berio como tendo sido compreendido como ruído, ou seja, como uma configuração sonora cuja regra e sintaxe a norma harmónica daquele tempo não podia admitir.

No entender de alguns musicólogos, “a música é um jogo com sons nítidos e determinados. Outros ruídos como os glissandi, os gritos, os murmúrios, podem sobreviver enquanto acessórios; se são numerosos, o resultado é apenas parcialmente musical; se predominam, já não se pode falar de música na aceção própria do termo” (Nattiez, 1984, p. 216).

Esta discussão em torno da natureza da nova arte ruidosa intensificou-se, agigantou-se, ao longo de todo o século XX, desde A. Schoenberg (1874-1951), E. Varese (1883-1965) L. Russolo (1885-1947), P. Schaeffer (1910-1995) e J. Cage (1912-1992) passando a K. Stockausen (1928-2007), entre muitos outros, e esta- belecido este movimento de fratura, de quebra, abriu-se a aventura irreversível de ultrapassar todos os limites no admirável novo mundo dos sons.

Um claro exemplo disso mesmo é a primeira edição, em 1912, de Der blaue reiter almanaque esse que permanece como obra de referência sobre o que se escreveu na Europa sobre a nova arte que começava a despontar.

A exploração e a pesquisa de todas as possibilidades instrumentais e sonoras não re- pertoriadas ainda, são trazidas à superfície por Cage, na infinitude das fontes sonoras possíveis que vão desde a observação e registo cuidadoso dos ambientes urbanos, passando pela exploração sonora-ecológica-ambiental dos materiais de desperdício, à captação da irradiação sonora de máquinas, ou até mesmo à exploração tímbrica dos objectos comuns do nosso dia-a-dia. No entanto, Cage afastar-se-á de outros compositores experimentalistas, sobretudo pela delicadeza de trato que demonstra em criar novas atitudes de escuta.

É exatamente aqui que mais nos aproximamos de Cage por o vermos muito atento às possibilidades infinitas de, através da escuta, poder colocar os auditores numa situação privilegiada: a de serem activos cocriadores do acto de fazer música, en- tendendo-a aqui enquanto a celebração do enigmático sonoro, entendendo-a como um modo de os homens - de quaisquer homens - poderem ser promotores da sua própria emancipação.

Assim, mais do que agir criativamente escolhendo e organizando sons, o homem dá conta, pela escuta atenta, de todo o mundo circundante. Pela escuta, mais vai descobrindo que os ruídos do mundo exterior lhe são sonoramente favoráveis para potenciar o ato consciente de poder pensar que há ainda muita música por fazer. Os recursos do meio ambiente para a música tornam-se assim inesgotáveis.

Eis a potência que a escuta em si mesmo encerra quando nos confrontamos com um criador que desejou transformar os ouvidos humanos em janelas abertas para deixarem entrar os sons – eis a potência da escuta oblíqua cageana - e com eles atravessar o pensamento humano. Esta escuta, a oblíqua, é aquela que requer de todos nós uma atenção demorada, silenciosa, e muito atenta à auscultação dos sons para poder pensar o mundo.

Cage deixa-nos aqui um aviso: aquilo a que nós chamamos música não é mais, na verdade, do que uma representação subsidiária de um determinado tipo de pensa- mento, de uma determinada gramática que, por sua vez, compõe e naturaliza um tipo específico de audição. Cage, pura e simplesmente, põe em causa esta forma de ouvir ao libertar os sons dessas normatividades. Eis a cesura.

Toda a sua obra, literária e musical, indica o caminho que aponta para uma ideia de música enquanto sonoro organizado. Disso fez prova quando em 1937 na sua conferência The Future of Music: Credo postula que música é organização do som e que essa mesma organização do som incluirá o ruído.

Dito daquela forma ficamos com o registo de uma transformação a ocorrer no pen- samento de Cage sobre como definir música. Assim posta, e neste novo cenário, a denominação música aplica-se a qualquer organização sonora – exercício estetica- mente inclusivo - e não reduzida ao culturalmente estabelecido em épocas anteriores. O que muda então na música com a chegada de Cage? O compositor passa a ter disponível para o seu trabalho todo o âmbito sonoro e é assim que Cage inicia uma crítica ao antropocentrismo – quem decide o que é ou não é que um som seja musical? – questionando o homem sobre o seu protagonismo enquanto regulador determinante das relações que se podem, ou não, estabelecer entre o som e a música.

A música pode ser então todo o ruído que nos possa parecer poder tornar-se mu- sical, pelo simples facto de o desejarmos incluir numa estrutura sonoro-musical. Cage apropria-se de todo o som-ruído e do silêncio primordial circundante (seja ele transitivo - tacere- ou intransitivo – silere) e, à maneira de Duchamp, num gesto de liberdade absoluta, numa situação inteiramente nova e provocatória, expõe-nos os seus procedimentos artísticos e as suas obras transfiguradas em música.

Cage, citado por Bigazzi (1993), concebe ready-made musicais, numa clara alusão ideológica ao imaginário duchampiano, onde “todo o tipo de som-ruído se assume de pleno direito, conjugado com qualquer outro, provocando estranhezas e perple- xidades plurais”. (p. 64)

Será o grande representante da música experimental do século XX em que, nas suas obras, se misturam o gesto, a dança, a pintura, a poesia, e outras artes, em os resul- tados são tão imprevisíveis quanto indeterminados.

John Cage propõe escutar o som não delimitado pela chave do sentido, sair do território musical e recuperar o que poderia denominar-se a fisicidade do som.

(Salgado, 2001, p. 9)

O permanente desafio de questionar os limites da arte, levaram Cage a fazer da música um amplo exercício artístico, um espaço aberto à experiência e à investigação. Perma- nentemente inspirado, Cage não deixará de inventar novas possibilidades de criação e de caminhos não desbravados, desafiando todos os limites.

Num amplo exercício de trabalho concetual colaborativo – a cocriação é-lhe favorável e muito estimulante - aproxima-se de Robert Rauschenberg, das suas telas total- mente brancas ou negras, 4’33’’ é prova dessa magnetização à obra de Rauschenberg, onde explorará todos os materiais possíveis para lhes descobrir a potência da sua utilização na criação musical.

Desde os instrumentos alterados, desde o piano preparado aos eletrodomésticos e desde a parafernália dos metais ao ruído da água a cair, até ao passar desta na garganta ao ser bebida em “Water Walk”. Também realizará cruzamentos e justaposições com as artes plásticas, a dança e a poesia. Amigo de Marcel Duchamp, defenderá que a melhor forma de escrever música é estudando a obra desse seu companheiro de viagem e de pensamento. Dirá mais tarde exatamente a mesma coisa, aquando da sua passagem pela Holanda, sobre a pintura de Piet Mondrian.

Cage sugerirá que, em simultâneo, aconteçam muitas manifestações artísticas paralelas – dança, pintura, poesia - aquando das performances musicais, tal como fica explícito em Fontana Mix, Cartridge Music e Solos. As várias performances permitiram ensaiar música, movimento e poesia visual com colagens de objetos do quotidiano, con- jugadas com um gestualismo tranquilo e irónico, e a possibilidade de abandono a múltiplas experiências.

Estas numerosas experiências permitiam, segundo Cage, retirar espaço à mediação da razão, dando azo a que a música passasse a poder ser escrita tal como se faz, apelando ao uso do acaso e da indeterminação.

A influência das artes plásticas, da dança e do teatro são visíveis e coexistem de forma independente. Nas produções conjuntas com Cunningham, os bailarinos não seguem a música, cada um é solista que ensaia trajetórias não determinadas, rompendo com todas as categorias das artes clássicas: a unidade de espaço, a do tempo e da acção.

Cage (2010) fala-nos disso quando, em Para los pájaros, nos diz que, a propósito da multiplicação de possibilidades:

(…) essa perspetiva de universo sumamente vasto, (…). Jamais teria o sentimento de que a atenção se concentrasse num só efeito. (p. 194)

Ao mesmo tempo, via Cage, será recusado aos objetos estéticos o estatuto de mercadoria numa clara leitura aproximativa ao questionamento contemporâneo sobre o valor e o conceito de obra de arte. A obra de arte mais bem conseguida é a que envolve o observador, que ativa nele a necessidade e a compulsão para completar essa obra, sobrepondo nela diferentes formas de manifestações que se interpenetram, como se estivessem numa reunião de fragmentos advindos de uma colagem.

Contudo, cada unidade mínima de uma criação musical cageana passa a refletir um microcosmo muito particular em que cada som, cada gesto, cada movimento sonoro adquire um valor por si só.

Acentua-se aqui a perda da semântica, realça-se aqui a não obstrução para a afirmação de uma qualquer criação musical, vista agora como espaço poroso de circulação e interpenetração entre todas as manifestações estéticas. Estas revelações são agora congeminadas como organizações estéticas instáveis, de contornos indefiníveis, resultando daí novas direções, novas atitudes e novos procedimentos que marca- ram o nosso passado recente e promovem em nós fissuras silenciosas em busca de novas poéticas musicais com um fulgor sem precedentes.