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A MÚSICA E A HETEROTOPIA NOS HOMENS

O SILÊNCIO INICIA…

12 Conceito a ser referenciado no capítulo 2 e desenvolvido no capítulo quarto (secção 4.2).

1.3. DO SILÊNCIO ENQUANTO HETEROTOPIA

1.3.2. A MÚSICA E A HETEROTOPIA NOS HOMENS

No caso particular da música como heterotopia por dentro dos homens podemos afirmar que se a música se constitui como a luz auricular dos homens, não nos ficará mal dizer que o silêncio é a sua sombra auricular.

Imaginemos, por instantes, o caso particular da música e da sua presença junto do silêncio, sobretudo, quando este se predispõe cultivar e enriquecer o nosso imaginário íntimo.

Sabemos da sua existência por esta ocorrer na dupla dimensão espaço-tempo. Tal como o movimento – esse dado imprescindível para a demonstração da existência de vida humana - a música fixa-se-nos na memória e saboreia o nosso esforço, mais ou menos conseguido, de a evocarmos.

O que decorre daí depende de nós, da nossa circunstância e da nossa capacidade de a expressarmos, colocando a nossa assinatura e o nosso testemunho sobre o que dela conhecemos.

O termo música raras vezes aparece isolado e, normalmente, evidencia-se acompanhado de termos qualificativos: popular, clássica, étnica, sacra, de dança.

Por causa destas representações talvez nos fosse útil poder afirmar que, afinal, existem músicas e não apenas música. Esta constatação pode ser corroborada pela existência de muitos dialetos musicais e por muitas categorias que lhe são atribuídas.

Apesar de isso acontecer é razoável podermos afirmar que, às músicas, lhes é comum um ethos muito particular.

Vejamos: a música é sempre uma declaração, um testemunho. Não é só, e em exclusivo, apenas uma expressão.

Houve um tempo, na cultura ocidental, um tempo medievo, em que a música se desenvolveu num plano fechado em si mesmo. Consideramos até que o que acontecia é que não havia separação entre os que a faziam e os que a ouviam.

A transmissão oral vingava e, por via disso mesmo, pressupunha a participação de todos. Dentro deste circuito fechado não havia planos de futuro e a música tendia a orbitar sobre si mesma, deixando aos seus fazedores o ónus da responsabilidade face à quase-única interpretação do constructo musical.

Na verdade, o que existia, aquilo que era exposto instrumental ou vocalmente, era aquilo que podia ser visto e ouvido. Tudo o resto rapidamente se evidenciava como uma memória, um dito, um mito.

Os limites da cultura dependiam muito, naquele tempo, dos limites das próprias capacidades humanas. O tempo musical medievo foi, sobretudo, um tempo so-

No período da Renascença, o tempo tornou-se, ele próprio, protagonista de se afirmar enquanto eixo comum de referências entre os cidadãos que habitavam as cidades. A organização urbana sofreu muitos refinamentos e passou a ser acompanhada por visíveis preocupações na elaboração das estruturas espaço-temporais que marcavam o dia-a-dia das cidades.

Na Renascença, a imprensa criou mecanismos para a transmissão de conhecimentos que já não dependiam da tradição, mas outrossim, da reprodução daquilo que foi dito. Assim, surge a possibilidade de nos projetarmos temporalmente de modo a garantir- mos uma memória mais ativa e, naturalmente, de nos propormos a realizar mais ações. Talvez possamos afirmar que na Renascença o tempo é dilatado.

Avançando, nos períodos Barroco e Clássico da cultura ocidental, assistimos, e por acordo comum renascentista, à ideia de que passado e futuro passam a determinar aquilo a que chamamos presente.

O museu, a biblioteca, a enciclopédia e a academia fazem surgir a noção de arte a ser preservada e glorificada. Ao mesmo tempo, o valor específico de cada uma das obras, de cada uma das suas realizações fica agora prisioneiro de um outro atributo: o valor económico.

No que diz respeito à música, a sua materialização fica refém do legado medieval até finais do séc. XIX, fazendo da partitura uma etapa mediadora da interpretação, tornando-se esta um estímulo. Na verdade, e apesar da evolução, continuava a ser preciso estar presente para conhecer e fruir música. O efémero musical a agitar as águas e a marcar pontos.

Tudo mudou com Thomas Edison quando, em 1887, o protagonismo da música se transformou radicalmente: a música enquanto artístico sonoro efémero passou a ser um artístico sonoro registado e preservado.

De um momento para o outro, a música registada rompeu com os limites espaço temporais, dilatou a sua presença no espectro sonoro – com repercussões enormes no futuro próximo - e, com isso, operou-se uma mudança radical: a memória musical já não fica cravada exclusivamente na essência sonora do ato, mas pode ser trabalhada incidindo sobre o detalhe, sobre a precisão e sobre a acutilância da composição. Daí para cá, com o nascimento da indústria da música e da aceleração do seu comér- cio tudo se alterou na forma humana de imaginar, interpretar e rececionar música. Nada ficou na mesma e até podemos dizer que a par do refinamento sonoro que passou a conferir valor à obra musical, assistimos à fetichização14 da obra musical 14 Adorno (2010), em 1938, ao analisar o que ocorre em pleno séc. XX diz-nos que a música

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e à regressão da escuta15, sendo estes assuntos trabalhados com mais pormenor no Cap. IV (A agonia do silêncio).

Uma possível leitura heterotópica da música coloca-a perante a ideia de que ela é uma estrutura viva que, em permanência, reconfigura as suas práticas.

Defini-la – afastemo-nos da pretensão – é, possivelmente, encontrar pontos de vista restritivos relacionados com contextos diferenciados - i.e. sociais, culturais, biológicos - aos quais ela se une.

Na sua forma de se expor no tempo, a música tornou-se autónoma artisticamente e o seu corpo extenso de trabalho resulta, cada vez mais, de experiências comuns entre compositores, intérpretes e ouvintes.

Aplaudindo o ato de cultivar o imaginário sonoro dos homens vemos as artes da gravação a seduzirem-nos e a realizarem uma espécie de namoro aos nossos ouvidos. Assim, uma outra forma possível de contar a história dos sons, que também é a história dos seus silêncios, é a de tornar audível e visível as transformações que ocorreram no armazenamento - para efeitos de memória, de comércio e de indústria - da criação musical.

A ideia de que cada novo meio, forma, ou atitude tecnológica muda o modo de experimentarmos a música, tem implicações na maneira como nos relacionamos com ela e na maneira de como a pomos ao serviço das nossas ações culturais. Sabemos que as mudanças ocorridas em tudo o que é aparato tecnológico ofereceram mudanças nas oportunidades de organizar, disciplinar e propor música.

As tecnologias da música – produção, gravação, reprodução e disseminação – não devem ser consideradas isentas de culpa pelo aparecimento do ruído que se insta- lou na modernidade, mas também não devem ser diabolizadas por serem, pela sua natureza, facilitadoras das práticas que promovem, num sentido mais alargado, o consumo da música.

Curiosamente, ao olharmos para o discurso musical no tempo e numa relação direta com as tecnologias que lhe estão associadas podemos admitir dizer que houve um tempo em que a música foi, sobretudo, preservada no corpo humano e só poderia ser exposta e divulgada à medida em que era interpretada.

Houve um outro tempo em que a música e os sons passaram a ser preservados, guardados, através da notação musical escrita e em que uma experiência sonora 15 Aquando da sua participação no “Princeton Radio Research project” que estava em fun-

cionamento desde 1937, e registado no seu ensaio “Sobre o carácter fetichista na música e a regressão da audição” (escrito em 1938), Adorno (2010) deu conta do estado de regressão da audição em que se encontravam os ouvintes americanos. Estes estavam dominados por uma espécie de infantilização psicológica, estando aptos apenas a reagir a repetições do já ouvido.

equivaleria a um contacto com um ideal artístico, com uma qualquer manifestação de transcendência sonora.

Há, mais próximo dos dias que correm, um momento em que a música e os sons passam a poder ser armazenados e, depois, restituídos através de meios mecânicos, digitais e eletrónicos.

Admitimos aqui que esta situação modifica a experiência material da música e do mundo dos sons.

A música, entre outros exemplos possíveis de dar, passa a ser ouvida por enormes audiências, ultrapassa a barreira do tempo e do espaço e transforma-se num bem de consumo.

Ouvir, ou escutar música torna-se uma atividade paradoxal e simultaneamente estática e dinâmica, privada e pública.

Assim, escutar música tornou-se, ela própria uma experiência a partir da qual é possível unir o passado ao presente num continuum permanente.

Esta constatação ajuda David Le Breton (1997) a confirmar o carácter ruidoso da modernidade, como já foi expresso anteriormente, e auxilia-nos na compreensão sobre uma coisa interessante a emergir: a modificação da linha de demarcação entre aquilo a que cultural e subjetivamente chamamos música e aquilo a que invocamos como não-música.

É até possível podermos dizer que a complexidade do universo dos sons se expande e, com ela, vemos dilatarem-se os espaços da (in)determinação musical.

Eis, pois, a indeterminação como um espelho outro, como uma outra forma de heterotopia.