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A regra e a transgressão

No documento DA ARTE HISTÓRIA (páginas 139-143)

MIGUELÂNGELO(1475-1564) e Giorgio VASARI(1511-1574), vestíbulo e escadaria da Biblioteca Laurenciana de Florença. © Alinari/Giraudon.

MIGUELÂNGELO(1475-1564), “A Aurora”. Pormenor do Túmulo de Lourenço de Médicis. Sacristia Nova, Igreja de São Lourenço, Florença. © Dagli Orti.

M

iguel Ângeloé geralmente apontado como o iniciador do Maneirismo. Apesar da cres-cente intelectualização da pintura de Rafael e da ambígua morbidezade tantos dos seus quadros, ninguém encarnaria melhor do que ele o ideal renas-centista do génio criador, dotado por Deus de uma capacidade incomum de imprimir à matéria inerte a chama que a converteria em obra imperecível.

A sua visão desencantada da Humanidade – tão diversa do humanismo dos seus contemporâneos – e a sua busca desesperada do caminho da redenção, conduzem-no, na sua última fase, à procura de uma visão introspectiva, susceptível de libertar as forças e tensões que a superfície das coisas e dos seres geralmente oculta. Rompe com as regras de repre-sentação consagradas pela prática renascentista e os corpos das suas personagens convertem-se em veículos de um discurso simbólico que os submete até aos limites da deformação.

A sua pintura refere-se, com efeito, a uma espé-cie sobre-humana, raça de heróis e de gigantes que se movem lentamente com escultórica monumenta-lidade. Esta realidade, já bem patente no Tondo Doni

(1504), que muitos consideram a certidão de nasci-mento do Maneirismo, avoluma-se, com refinado erotismo, em Leda e o Cisne(c.1529), para constituir a principal razão da impressionante “terribilità” do

Juízo Final* (1534), onde a figura irada de Cristo esmaga com a sua aparência hercúlea a multidão compacta que o rodeia. Um tal processo não se limi-taria ao domínio da pintura e encontraria a necessá-ria correspondência escultórica e arquitectónica num homem que se dividiu por todos os domínios da criação artística. O conjunto das estátuas dos túmulos dos Médicis, na Sacristia Nova de San Lorenzo, em Florença especialmente as representa-ções do Dia, da Noite, da Aurora* e do Crepúsculo, contorcem-se e alongam desmesuradamente as suas proporções, num expressionismo prenunciador do movimento “serpentinato’ que os pintores e esculto-res da geração seguinte usarão até à exaustão.

Do mesmo modo, a utilização absolutamente heterodoxa que, também em Florença, faz dos ele-mentos arquitectónicos no vestíbulo da Biblioteca Laurenciana* (c.1524). abre o caminho a todas as futuras heresias. Em Florença, aliás, deixaria Miguel Ângelo o seu esboço para a Batalha de Cas cina, que seria copiado e mesmo decalcado até ao infinito pela primeira geração de maneiristas: Pon tormo (1494--1556) e Rosso Fiorentino(1494-1540).

Rosso confessaria em 1521 a sua ruptura com o equilíbrio renascentista no Descimento da Cruz* (p.134), perturbadora e agitada composição tingida de cores ácidas, de um patetismo verdadeiramente radical. Esse cromatismo agressivo e violento,

tituiria um dos ingredientes predilectos da pintura maneirista – e um dos melhores expoentes será a

Visitação de Pontor mo, esplêndida pintura de uma notável riqueza cromática, cujo grupo central ensaia um movimento helicoidal.

Igualmente carregada de subjectividade seria a obra de Parmi gianino(1503-1540), como atesta o

auto-retrato(1524) que nos deixou, reproduzindo a sua imagem sobre um espelho convexo. Mas a sua propensão anti-clás sica, patenteia-se na Madonna do Pescoço Comprido(1535), composição de uma ele-gância artificial e fria que explora até à saciedade, numa atmosfera suave de ressaibos rafaelescos, o alongamento de corpos e elementos arquitectónicos. Na geração seguinte muitos pintores orientam-se para uma expressão sofisticada e subtil, de um rea-lismo meticuloso e calculado, que teria o seu mais representativo produto na obra de Bronzino. Autor de soberbos retratos, como o de Eleanora de Toledo*, seria também o criador de composições de um erotismo frio e sumptuoso, como Vénus e Cupido entre o Tempo e a Loucura.

Também a obra de Ticiano(1488/89-1576) reve-laria sinais do Maneirismo – tanto é verdade que um grande artista não pode limitar-se a um género ou a uma escola – seja nos seus retratos, de uma suprema e poética elegância, seja na contorcida e dramática

Deposição, a qual deixa já pressentir os primeiros ecos do Barroco. Veneza permaneceria um pouco à margem da sensibilidade maneirista, mau grado a personalidade dominante de Tintoretto(1580-1594). Este, reunindo na sua pintura o anti-clas sicismo e o refinamento das duas correntes florentinas e a flui-dez da pincelada própria da escola ve neziana, produ-ziria vastas composições, como Cristo perante Pilatos

ou A Última Ceia, que impressionam pelo brilho das cores, pelo jogo complexo da perspectiva e pelo dra-mático contraste de luz e sombra.

Por esta altura surgiria em Parma uma outra corrente que igualmente se distancia das concep-ções pictóricas do Renascimento e cujo represen-tante seria Correggio. A sua sensualidade e a vinca-da predilecção pela robustês vinca-das formas e pela sumptuosidade das cores, onde se sente a marca da pintura veneziana e que ilustra em obras como

Danaeou o fresco da Assunção da Virgem, encami-nham-no já para o universo do Barroco.

Numerosos cultores teria igualmente a escultu-ra italiana deste período, geescultu-ralmente conotados com a vertente requintada do Maneirismo. O maior representante seria Benvenuto Cellini, autor do

saleiro de ouro de Francisco I, rebus cado exercício alegórico em escala miniatural, onde avulta a esguia modelação dos nus. O mais destacado expoente deste género seria Giovanni Bologna que deixa-ria no prodigioso Rapto das Sabias (1583), em Flo-rença, a mais impor tante realização do espírito maneirista: um grupo escultórico monumental, de quase três metros de altura, enredado num arroja-díssimo movimento helicoidal.

PARMIGIANINO(1503-1540). A Senhora do pescoço comprido. Galeria dos Uffizi, Florença.

© Scala.

Agnolo BRONZINO(1503-1572), Retrato de Eleanora de Toledo

e de seu filho João de Médicis. Museu dos Uffizi, Florença. © Dagli Orti.

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CARACTERÍSTICAS E DIFUSÃO

O Maneirismo

CORREGGIO(1489-1534), Danae. Villa Borghese, Roma. © Scala.

Galeria de Francisco I

do Castelo de Fontainebleau.

Estuques e frescos de ROSSOe PRIMATICCIO. © Dagli Orti.

Certos edifícios desta época desenvolvem for-mas anti-clássicas de tratamento dos elementos arquitectónicos ou, pelo menos, ensaiam novas sis-tematizações. É o que se passa com a loggia dos Uf fizi, em Florença, de Giorgio Vasari, onde se repõem algumas soluções do vestíbulo da Biblioteca Laurenciana, de Miguel Ângelo (como as mísulas estiradas e a estranha relação entre colunas e pare-des), porém despojadas da qualidade expressiva e da força escultórica iniciais. Contras tando com a fragilidade dos Uf fizi, o pátio do Palácio Pitti

(1558), de Bartolomeo Amma nati(1511-1592), também em Florença, exibe uma muscularidade que lhe advem do opressivo tratamento rústico das paredes, envolvendo as próprias ordens de colunas sobrepostas que abdicam, desse modo, de qualquer papel activo na estruturação das fachadas.

Foi justamente contra o excesso gratuito de or -na mentação que reagiu Andrea Palladio (1508--1580), um dos maiores arquitectos e tratadistas deste período. A sua obra filia-se na tradição huma-nista de Leon Battista Alberti, de quem partilhava as convicções quanto ao significado cósmico das proporções aritméticas. As suas obras, entre as quais se contam algumas das melhores realizações da arquitectura quinhentista italiana, como a Basíli-ca, a Vila Rotondaou o Teatro Olímpico, todos em Vicenza, ou a Igreja de S. Giorgio Maggiorede Vene-za, consistem numa reinvenção monumental da arquitectura clássica. A obra de Palladio ilustra já uma vontade de regresso à ordem e de negação do caos como fim, que anuncia a resolução da crise.

Jean COUSIN(c.1490-c.1560), Eva Prima Pandora. Museu do Louvre, Paris. © Dagli Orti.

Jean METSYS(1509-1575), Flora diante do porto de Antuérpia (1559). Kunsthalle, Hamburgo. © Kunsthalle, Hamburgo.

Fachada do Castelo de Heidelberga, Alemanha.

© Thomas Jullien/DIAF.

Uma Europa maneirista?

Após a reacção explosiva da Itália contra a codi-ficação artística do Renascimento, o Maneirismo estende-se a toda a Europa. Contudo o Maneirismo europeu constituirá, essencialmente, um manancial de receitas (fornecidas pelos diversos tratados teó-ricos, que conhecem agora intensa divulgação), com as quais o velho continente se esforçará por operar a transição para a arte clássica. Verifica-se uma verdadeira obsessão pela cópia dos termos e soluções mais vulgarizados pela arte meridional, como sejam o alongamento das formas, a silhueta espiralada e a figuração requintadamente distante das personagens.

Entre a Itália da primeira metade do Cinquecen-to e a Europa da segunda metade da centúria opera-ra-se uma alteração profunda do contexto histórico, que haveria de marcar decisivamente o seu carác-ter. De facto, o momento pertence agora à Con-tra-Reforma, que visa trazer a ordem aos espíritos conturbados, e aos absolutismos monárquicos nas-centes que se esforçam por organizar rigidamente o corpo social e por criar também os seus próprios mecanismos imagéticos. Neste contexto, o Manei-rismo, submetido a severos códigos de representa-ção, converter-se-á numa verdadeira arte oficial e desse modo, no primeiro ensaio da grande arte de massas que será o Barroco no século seguinte.

A França

Uma vez mais, a proximidade geográfica e as relações políticas e culturais existentes entre a Itália e a França obrigam-nos a prestar-lhe atenção em primeiro lugar. Neste país, o pólo dinamizador da corrente maneirista seria a chamada “escola de Fontainebleau”, formada em torno de um grupo de artistas italianos reunidos por Francisco I para a decoração desse castelo. Entre eles, figuram nomes conhecidos da arte italiana, como Serlio, Primatic-cio, Rosso Fiorentinoou Benvenuto Cellini, de quem referimos já o saleiro de ouro concebido para aquele monarca e que em França deixaria ainda outras obras dignas de referência, como a chamada

Ninfa de Fontainebleau, notável relevo de bronze onde avulta o grandioso nu feminino de um tipo simultaneamente esbelto e sensual.

Estas figuras de mulher de longos corpos sinuo-sos, executadas com notável apuro técnico, consti-tuiriam, aliás, um verdadeiro traço distintivo da escultura francesa deste período, tanto no que res-peita aos trabalhos de Primaticcio – responsável pela decoração em pinturas e estuques das mais belas salas de Fontainebleau (entre as quais, de colaboração com Rosso, a galeria de Fran cisco I* ) – como aos de Jean Goujon(c.1510 – c. 1564/69), de que se destacam os relevos para a fachada do Lou-vree para a Fonte dos Inocentes(1547), além da sua obra-prima, a estátua de Diana(c.1550) para a fonte do mesmo nome no Castelo de Anet.

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CARACTERÍSTICAS E DIFUSÃO

O Maneirismo

Pátio e Torre do Relógio da Burghley Houseem Stanford. © English Life Publications Ltd, Derby.

Pieter BRUEGEL, o Velho (c.1525/1530-1569), A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma, Kunsthistorisches Museum, Viena. © Erich Lessing/Magnum.

O escultor mais poderoso dos finais do século XVI seria Germain Pilon(c.1528-1590), a quem se deve, de novo em colaboração com Primaticcio, um dos expoentes máximos da escultura francesa deste período, o túmulo de Henrique IIe Catarina de Mé -dicis em Saint-Denis, cujas portentosas estátuas jacentes evocam uma beleza heróica que persiste além da morte.

Todas estas características ecoam na arquitectu-ra farquitectu-rancesa deste período, que rompe definitivamen-te com os resquícios góticos, abundandefinitivamen-tes ainda na primeira metade do século e entre os exemplos mais maduros e personalizados dessa evolução con-tam-se a Igreja de St. Étienne-du-Montem Paris e a

cour carrée do Louvre(c. 1545), de Pierre Lescote Jean Goujon.

Simultaneamente e também em torno da escola de Fontainebleau, desenvolve-se uma pintura maneirista muito específica, dominada por uma fan-tasia intelectualizada. Exprime-se em voluptuosas cenas mitológicas, como a célebre Diana Caçadora,

de autor desconhecido, ou numa espécie muito peculiar de retratos, de um erotismo frio e munda-no, como os de Diana de Poitiers ou de Gabrielle d’Es trées com a duquesa de Villars, este último já atribuído a Jean Cousin, autor também da célebre

Eva Prima Pandora* –, que constituem um dos mais originais produtos da vertente requintada do Maneirismo.

No documento DA ARTE HISTÓRIA (páginas 139-143)