• Nenhum resultado encontrado

A relação entre habilidade social e os conceitos de empreendedores

3 A TEORIA DOS CAMPOS DE AÇÃO ESTRATÉGICA E A PRODUÇÃO

3.1 HABILIDADE SOCIAL E AÇÃO COLETIVA

3.1.1 A relação entre habilidade social e os conceitos de empreendedores

A noção de ator habilidoso pode ser aplicada a um amplo espectro de fenômenos sociais. Algumas das subáreas da Sociologia já protagonizaram elaborações teóricas que flertavam com entendimentos próximos ao descrito pelo conceito. A seguir trataremos de alguns deles. Em

6 O conceito de homo economicus se opõe ao modelo de indivíduo propagado por teorias utilitaristas e pela abordagem da escolha racional embasado no pressuposto de que os atores sociais são movidos pela busca à maximização dos retornos oriundos de suas ações.

especial, abordaremos os conceitos de empreendedor institucional e empreendedor de política. Cada um desses conceitos tem origem em um ramo diferente das Ciências Sociais, porém ambos se referem a fenômenos semelhantes: a capacidade de agência de atores que se dedicam a fabricar cooperação e desencadear ações coletivas em busca de um determinado objetivo em um espaço social específico.

A relação entre os conceitos de empreendedores institucionais e de habilidade social é apontada por Fligstein (2001). Para o autor, empreendedores institucionais são “atores estratégicos habilidosos que encontram formas de levar grupos a cooperarem precisamente por colocar a si mesmos na posição de outros criando significados que apelam para um grande número de atores” (FLIGSTEIN, 2001, p. 106). A participação dos empreendedores ocorre tanto em momentos de estabilidade no campo como em circunstância de formação ou transformação desses espaços. No entanto, a atenção dos pesquisadores normalmente se concentra nas ocasiões de conformação ou redefinição das estruturas do campo.

Conforme apontado no segundo capítulo desta tese, o conceito de empreendedores institucionais está associado à corrente sociológica do neoinstitucionalismo. Esse conceito foi criado em reação aos primeiros trabalhos dessa abordagem, que se detinham majoritariamente nos processos de isomorfismo, ressaltando a tendência reprodutivista dos campos. O posicionamento teórico da etapa inicial do neoinstitucionalismo sociológico deu origem ao chamado paradoxo da agência imersa, que pode ser resumido na seguinte questão: se a ação no campo é constrangida por scripts e regras institucionalizadas, como atores podem contestar e transformar internamente o campo? A incorporação dos empreendedores institucionais teve como objetivo solucionar esse paradoxo oferecendo uma visão acerca da agência e da possibilidade de mudança nas arenas organizacionais.

O desenvolvimento do conceito teve início com a crítica de DiMaggio (1988) aos trabalhos fundadores do neoinstitucionalismo sociológico na Sociologia Organizacional (MEYER; ROWAN, 1977; DIMAGGIO; POWELL, 1983). O autor formula essa noção com o objetivo de compreender os processos de formação e transformação radical que se sucedem nos campos organizacionais. Fenômenos dessa natureza ocorrem quando algum indivíduo ou grupo encontra uma nova maneira de agir e convence outros atores a adotarem a mesma forma de ação. No entanto, DiMaggio atribui importância aos empreendedores institucionais apenas em momentos de instabilidade. Assim que se assentam as estruturas do campo, a lógica de reprodução institucional volta a operar e o espaço para inovação se restringe.

A solução do empreendedor institucional foi amplamente adotada na análise sociológica de campos organizacionais. A utilização irrestrita, porém, foi objeto de um conjunto de críticas.

A principal delas se refere à substituição do modelo de ator “supersocializado” preso às instituições e com pouco espaço para reflexão e ação por outro em que os indivíduos são oniscientes, capazes de identificar todas as oportunidades de mudança e engendrar ações para persegui-las. Ademais, argumenta-se que a segunda fase do neoinstitucionalismo sociológico superestimou a mudança enquanto objeto de pesquisa. Qualquer alteração no campo passou a ser identificada como uma mudança institucional e qualquer agente era considerado um empreendedor. Kluttz e Fligstein (2016) entendem que a visão “heroica” dos agentes construída com o desenvolvimento dos estudos sobre empreendedorismo institucional ignora os determinantes estruturais relevantes que interferem na formação e transformação de campos e na atuação de atores habilidosos durante esse processo.

Mesmo com a proximidade entre os conceitos de atores habilidosos e empreendedores institucionais, não podemos sobrepor as concepções de agência propostas pela Sociologia Organizacional e pela TCAE. Ao atentar para esse aspecto, Kluttz e Fligstein afirmam que as duas abordagens teóricas partem de pressupostos diferentes ao abordarem as motivações para a ação.

Para os neoinstitucionalistas, a motivação básica de ação em campos organizacionais institucionalizados é a preocupação em relação à legitimidade. Seja pela força coercitiva, influência normativa ou pressão mimética para seguir os demais em tempos de incerteza, os atores dos campos organizacionais tendem a agir em conformidade com a ordem aparentemente vigente. Fligstein e McAdam concordam que atores tendem a alinhar suas ações com o campo, mas ao invés de argumentar que isso se deve majoritariamente a uma preocupação irrefletida com legitimidade, eles posicionam isso como decorrência da função existencial do social. (KLUTTZ; FLIGSTEIN, 2016, p. 195, tradução nossa).

Além da afinidade com o conceito de empreendedores institucionais, a noção de atores habilidosos também pode ser transportada para a realidade das políticas públicas. Diversos autores dedicados à análise de fenômenos nesse âmbito recorreram ao conceito de empreendedor de política para caracterizar a ação de indivíduos que capitaneiam transformações na formação da agenda ou na tomada de decisões. Apesar das variações existentes dentre os modelos de análises de políticas públicas, genericamente o uso da expressão empreendedores de política se refere a atores que não apenas querem influenciar uma política pública, mas também modificar substancialmente o modo como as coisas são feitas em seus respectivos campos de ação.

Para Mintrom e Norman (2009), qualquer empreendedor de política pode ser identificado por seus esforços em promover mudanças, embora suas motivações possam variar. Ao realizar uma revisão teórica do conceito, os autores apresentam quatro elementos constituintes que perpassam as diferentes visões. O primeiro aspecto é a demonstração de

“perspicácia social” (social acuity), isto é, a capacidade de leitura das condições contextuais, dos diferentes motivos e ideias em jogo e a habilidade de estabelecer conversas políticas com um amplo espectro de atores. O segundo elemento está na capacidade de definição de problemas por parte dos empreendedores de política. O modo como a questão é formulada interfere na relação que as pessoas envolvidas estabelecem com a temática. Por essa razão, os empreendedores de política devem estar atentos à forma como o enquadramento de problemas é realizado. O terceiro componente identificado é a capacidade de construir times. O empreendedor deve ser capaz de formar uma rede de indivíduos com capacidades diversas e que se unem para atuar de maneira coordenada em torno de objetivos em comum. O último aspecto destacado é a liderança que consiste, por exemplo, em colocar em prática a ideia que se está defendendo, assumindo para si os riscos de um possível fracasso. Esse tipo de atitude transmite confiança aos apoiadores e ao público em geral e dificulta a atuação de opositores, que não podem utilizar o medo e incredulidade como arma para bloquear as mudanças.

O pioneiro no emprego do conceito de empreendedor de políticas na área de políticas públicas foi John Kingdon (1995), em seu modelo dos fluxos múltiplos, teoria que procura explicar a formação das agendas. A abordagem de Kingdon pressupõe a existência de três fluxos de processos que se desenrolam de maneira independente durante o cotidiano de um setor de políticas públicas. Os três fluxos são: 1) a definição de problemas (problem stream); 2) a definição das soluções de política pública para o problema (policy stream); 3) o processo político de escolha dos agentes (political stream). A incorporação de um assunto à agenda ocorre por meio da ação de empreendedores de políticas (policy enterpreneurs), que se aproveitam de janelas de oportunidades – situações convenientes para a proposição de mudanças – para provocar a confluência dos três fluxos, isto é, o alinhamento entre a definição de um problema, de uma solução e da escolha dos atores políticos relevantes no setor em prol da solução. A partir de então, determinado tema é incorporado à agenda governamental.

Kingdon (1995, p. 179, tradução nossa) descreve os empreendedores de política como pessoas que

[...] podem estar dentro ou fora do governo, em posições eleitas ou indicadas, em grupos de interesse ou organizações de pesquisa. Mas a sua característica definidora, bem como no caso dos empreendedores de negócios, é a sua disposição em investir seus recursos – tempo, energia, reputação, dinheiro – para promover uma posição em troca de futuros ganhos na forma de benefícios materiais, propositivos ou solidários.

Ao distinguir diferentes formas de ganhos que motivam a atuação do empreendedor de política, Kingdon (1995) se aproxima da noção de homo sociologicus proposta pela TCAE. A motivação para o engajamento dos atores não se restringe aos ganhos materiais. Também se

incorporam satisfações sociais, como o sucesso de determinada concepção acerca da realidade, como no caso das recompensas propositivas, ou do contentamento em integrar e coordenar uma ação coletiva com o objetivo de defender alguma ideia política, como nas recompensas solidárias.

Dentre as qualidades que caracterizam esse tipo de ator, são destacadas a capacidade de ter legitimidade e de se fazer ouvir pelos demais – o que pode advir da expertise no tema em questão –, a habilidade para negociar e para criar conexões políticas e a persistência em sua empreitada. Ou seja, assim como os atores habilidosos, os empreendedores de política também devem possuir atributos individuais que incrementem sua capacidade de reunir pessoas e atuar a favor de uma meta. As qualidades de um empreendedor de política o auxiliam na atuação em duas frentes: a promoção de percepções e entendimentos a respeito do problema em questão (soften up) e, no momento em que se estabelece uma janela de oportunidade para mudança, a construção da convergência dos fluxos de problema, solução e dinâmica política (coupling) viabilizando a ascensão de determinado tema à agenda (CAPELLA, 2016). O processo de coupling, portanto, consiste no convencimento da existência de um problema, o oferecimento de uma solução que é percebida como adequada para esse problema e na construção de um contexto de interação política que possibilite que o duo problema-solução seja alçado à agenda pública. O empreendedor de política atua em cada um desses fluxos e também é responsável pela “amarração” entre esses três aspectos.

Baumgartner e Jones (1993), elaboradores do modelo do equilíbrio pontuado,7 também recorrem ao conceito de empreendedor de política para explicar a produção de mudanças em áreas de políticas públicas. O modelo do equilíbrio pontuado argumenta que os setores de políticas públicas são marcados por longos períodos de estabilidades pontuados por breves momentos de transformação aguda. A estabilidade característica é decorrente do estabelecimento de um monopólio de política, isto é, um conjunto de entendimentos sobre determinada temática que domina o setor de política pública. A finalidade dos empreendedores de política é desestabilizar esses monopólios, possibilitando a entrada de novos atores na disputa e possibilidade de construção de novos entendimentos que desafiem os anteriores.

Uma das principais funções do empreendedor de política, de acordo com Baumgartner e Jones (1993), é a construção, desconstrução e reformulação de sistemas de representação simbólicos a respeito de uma política pública. A essas representações, os autores atribuem o conceito de policy image. O empreendedor de política tem noção da importância dessas ideias

7 O entendimento acerca da mudança propagado pelo modelo do equilíbrio pontuado será aprofundado na seção 3.4 do presente capítulo.

para o processo das políticas e, tendo isso em vista, procura moldá-las e propagá-las de modo a favorecer os seus objetivos finais de transformação ou manutenção de um monopólio de política. Por intermédio da manipulação de policy images, os empreendedores asseguram a cooperação de outros atores e influenciam a tomada de decisão dos governos (CAPELLA, 2016).

Outra abordagem para análise de políticas públicas que flerta com a noção de empreendedores de política é o modelo de coalizões de defesa elabora por Paul Sabatier. Apesar de não citar explicitamente o conceito, o modelo deixa espaço para a inclusão de uma figura dessa natureza em sua elaboração teórica (MINTROM; NORMAN, 2009; CAPELLA, 2016). Sabatier entende que as políticas públicas são produzidas em subsistemas temáticos habitados por, no mínimo, dois grupos que defendem posições distintas, as chamadas coalizões de defesa (SABATIER; WEIBLE, 2007). Os indivíduos se aglutinam em coalizões a partir do compartilhamento de determinado sistema de crença e atuam de maneira coordenada para traduzir essas crenças em políticas públicas. A formação e a manutenção das coalizões pode ser obra de um empreendedor de política, uma vez que esses são responsáveis pela formulação e disseminação de um enquadramento interpretativo da realidade e pela construção de vínculos colaborativos baseados nessa interpretação.

De acordo com Mintrom e Norman (2009), outra possibilidade de compatibilidade entre o modelo e a noção de empreendedores de política está na concepção de mudança presente no modelo. Para Sabatier, a mudança pode ser originada no subsistema, a partir da interação competitiva entre as coalizões, ou fora do subsistema, por meio de choques externos decorrentes de grandes transformações socioeconômicas. No segundo caso, o impacto dos acontecimentos exteriores não ocorre de maneira mecânica. É necessário um processo de interpretação e direcionamento dos efeitos do evento exterior para o subsistema. Nesse sentido, o empreendedor de política pode ser o responsável pela construção e disseminação de uma interpretação específica que favoreça seus objetivos pessoais e do grupo ao qual ele pertence (SABATIER; WEIBLE, 2007).

Além dos pontos já destacados, Capella (2016) explora outra possibilidade de vínculo entre o modelo de coalizões de defesa e o conceito de empreendedores de política por meio da figura do policy broker, um ator do subsistema que, embora não seja neutro, não está filiado a nenhuma coalizão. O policy broker é o responsável por estabelecer canais de contato entre os grupos e negociar pontos de convergência para manter o conflito político dentro de parâmetros “razoáveis”. A posição de intermediador demanda um conjunto de habilidades sociais que possibilitam caracterizar esses atores como empreendedores de política.

Esse breve panorama acerca dos conceitos de empreendedor institucional e empreendedor de política nos permite identificar possibilidades de transposição das noções de habilidade social e atores habilidosos para teorias e modelos de análise de médio alcance. No caso da pesquisa em tela, o conceito de empreendedor de política é de grande valia, já que possibilita caracterizar a atuação de alguns protagonistas, dotados de propriedades específicas que configuram a habilidade social, que atuaram na fabricação de identidades, crenças, definição de problemas e soluções e na conformação de ações coletivas que desencadearam um processo de emergência de um novo campo de políticas públicas.