• Nenhum resultado encontrado

4 A POSIÇÃO DAS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA NA TRAJETÓRIA DA

4.3 AS PROTOFORMAS DE PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

As primeiras ações de proteção social promovidas diretamente pelo Estado brasileiro estão relacionadas ao mundo do trabalho. Ainda na fase imperial, as burocracias civil e militar obtiveram alguns privilégios nesse sentido em decorrência de sua inserção profissional. No final do Império, em 1888, foi criada a Caixa de Socorro para trabalhadores que atuavam na construção das estradas de ferro de propriedade do Estado. Esse mecanismo visava a oferecer ajuda financeira em caso de doença ou auxílio-funeral à família em decorrência de falecimento do empregado. Tais medidas destoavam da postura laissez-fairiana adotada pelo Império desde a independência, com a preponderância da ideia de não interferência do Estado na regulamentação de profissões e na oferta de ações voltadas ao bem-estar dos trabalhadores.

Privadamente, podem os menos aquinhoados associar-se para amparo mútuo, ademais do apelo, que lhes é permito, à caridade pública. Deveria ficar, porém, indubitavelmente compreendido, durante o século XIX, que às associações de socorro mútuo, ou aos auxílios proporcionados pelos bem-sucedidos, não constituía prova de

que o “mercado” era ineficiente ou “injusto” mas, ao contrário, indiscutível evidência da inferioridade dos pobres e desvalidos (SANTOS, 1979, p. 18).

As sociedades de ajuda mútua eram as instituições responsáveis pela organização do chamado mutualismo, prática de união voluntária de trabalhadores em associações que, em troca de contribuição, ofertavam auxílio-funeral, aposentadoria, benefícios médicos, dentre outros benefícios e serviços a seus membros (MALLOY, 1986). O mutualismo foi a forma encontrada pelos trabalhadores de se proteger de eventualidades que poderiam deixá-los desamparados. Esse modelo foi adaptado por algumas empresas do setor privado que criaram fundos próprios para seus trabalhadores com os mesmos objetivos das sociedades mutualistas. A distinção era que a participação dos empregados no fundo das empresas era de caráter obrigatório.

Apesar da ruptura de regime, o posicionamento laissez-faire que predominou durante o Império foi reafirmado após a proclamação da República em 1989. Alguns desses princípios estavam presentes na Constituição de 1891, como, por exemplo, a manutenção do princípio da não regulamentação das profissões, elemento mantido na revisão constitucional de 1926. A proteção social permaneceu restrita a ações pontuais sempre vinculadas à inserção profissional. Em 1989, foi regulamentada a aposentadoria para funcionários dos Correios, das oficinas de imprensa e dos empregados do Ministério da Fazenda. Durante a Primeira República, no ano de 1891, estabeleceu-se a aposentadoria do servidor público em caso de invalidez no exercício de sua função (SANTOS, 1979; OLIVEIRA; FLEURY, 1985; MALLOY, 1986).

Apesar da continuidade da ideologia liberal no início do século XX, durante a República Velha, teve início uma transformação na estrutura social e demográfica do país. Embora o carro- chefe da economia brasileira ainda fosse a produção rural, nesse período surgiram as primeiras indústrias na região sudeste do país. Como consequência, os aglomerados urbanos começaram a crescer, especialmente nas cidades do Rio de Janeiro, que teve um crescimento populacional de 274.972 habitantes em 1872 para 1.157.873 em 1920, e de São Paulo, que teve o número de habitantes elevado de 31.395 em 1872 para 579.033 em 1920 (MALLOY, 1986). Refletindo essa nova realidade, o domínio das oligarquias rurais regionais que davam sustentação à política do café-com-leite, esquema de revezamento entre representantes de São Paulo e Minas Gerais no comando do governo federal, começou a ser questionado.

Nesse momento, iniciou-se a organização da nascente classe trabalhadora urbana, que passou a se articular tendo como influência o modelo dos sindicatos europeus trazido pelos imigrantes que vieram da Europa para substituir a mão de obra escrava após a abolição. As principais questões combatidas por esses movimentos diziam respeito às condições de trabalho:

jornadas de trabalho excessivamente longas, remuneração insuficiente, falta de segurança no exercício profissional. A greve era o repertório adotado pelas incipientes organizações de trabalhadores. A reação do governo a essas reivindicações era a repressão. Não havia o entendimento de que era responsabilidade estatal solucionar qualquer questão social levantada pela articulação dos trabalhadores. A única atitude governamental tomada era o envio da polícia para debelar qualquer demonstração de insatisfação (MALLOY, 1986).

O tratamento das questões sociais como caso de polícia começou a ser alterado lentamente com tentativas fragmentadas nas primeiras décadas do século XX. Em 1903, foi reconhecido o direito dos trabalhadores rurais se organizarem em sindicatos, o que foi estendido para todas as categorias profissionais em 1907. A atuação sindical impulsionou algumas iniciativas parlamentares para a regulamentação do trabalho por parte do Estado. No entanto, apenas em 1917 um movimento nessa direção começa a se fortalecer com a criação da Comissão de Legislação Social na Câmara dos Deputados, grupo parlamentar cuja função era discutir as questões sociais e elaborar possíveis medidas estatais para sua amenização. A Comissão foi responsável pela revisão constitucional de 1926, que incorporou algumas regulamentações da relação entre trabalhador e empregador, contrariando a tendência liberal que imperava (SANTOS, 1979). No que concerne às ações concretas, a primeira lei de proteção ao trabalhador foi aprovada em 1919 e tratava da questão do acidente de trabalho, colocando sob o empregador a responsabilidade e eventuais ônus provocados por essas ocorrências. Santos (1979) aponta que essa inovação legislativa foi a única a atender as reivindicações, indo até 1923, quando outras questões sociais relevantes serão abordadas pelas autoridades estatais.

A progressiva reformulação do entendimento estatal acerca dos temas sociais foi influenciada também pelo contexto internacional. O fim da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa colocaram a questão social dentre as principais temáticas para as grandes potências internacionais. Refletindo essa nova postura, o Tratado de Versalhes – documento que selou a paz entre os participantes da Primeira Guerra Mundial e do qual o Brasil foi signatário – comportava uma nova abordagem dos governos em relação à área social, que incluía políticas trabalhistas e outras medidas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), responsável por elaborar políticas e prestar assessoria a governos nacionais nesse setor, foi criada nesse contexto. As transformações no cenário mundial contribuíram para o fortalecimento de um bloco de parlamentares que defendia que a questão social deveria estar sujeita ao planejamento estatal e que capitaneava iniciativas nesse sentido.

O ápice desse processo ocorreu no ano de 1923, com a aprovação da Lei Eloy Chaves. Apontada como ponto de partida para estruturação da previdência social no Brasil,13 a legislação instituiu a Caixa de Aposentadoria e Pensão (CAP) para os trabalhadores ferroviários. Pela primeira vez, o Estado brasileiro se comprometeu a garantir o direito à previdência para profissionais que prestavam serviços para a iniciativa privada. Até então, a proteção social de trabalhadores garantida pelo governo era fragmentada e restrita ao funcionalismo público (OLIVEIRA; FLEURY, 1985). O modelo proposto pela Lei Eloy Chaves foi rapidamente disseminado, chegando ao número de 33 em 1926 e de 47 em 1930 (SANTOS, 1979). Apesar de serem denominadas por categorias profissionais, as CAPs eram administradas por empresas e destinadas apenas aos seus trabalhadores.

O objetivo das CAPs era garantir que parte da renda que o empregado obtinha pelo exercício profissional fosse garantida quando ele se desligasse de sua função produtiva por motivo de velhice, invalidez e por tempo de serviço ou que, em caso de morte, seus familiares fossem amparados. Ainda estava previsto o oferecimento de assistência médica. Ou seja, o modelo proposto pela Lei Eloy Chaves comportava o pagamento de benefícios pecuniários, sejam eles em forma de aposentadoria, pensão ou auxílio-funeral, e o provimento de serviços, no caso do atendimento médico.

A sustentação financeira dos fundos CAPs se dava por meio da contribuição de empregados, com 3% de seu salário mensal, de empregadores, que dedicavam às Caixas 1% da renda de crescimento anual da empresa, e dos consumidores, por meio de uma taxa cobrada no pagamento dos serviços providos pelos empregados beneficiados pelo mecanismo de proteção previdenciária (OLIVEIRA; FLEURY, 1985).

A rigor tratava-se, ainda, de um contrato, mediante o qual a empresa e seus empregados comprometiam-se a sustentar o empregado atual, no futuro, em troca de uma parcela da renda deste, no presente. Não se tratava de um direito de cidadania, inerente a todos os membros de uma comunidade nacional, quando não mais em condições de participar do processo de acumulação, mas de um compromisso a rigor privado entre os membros de uma empresa e seus proprietários. (SANTOS, 1979, p. 24).

Para garantir a sustentabilidade do fundo, estabeleceu-se a estabilidade dos trabalhadores que ultrapassassem 10 anos de serviço na empresa, que somente poderiam ser demitidos em caso de falta grave constatada por inquérito administrativo. A ideia dessa medida era garantir um fluxo contínuo mínimo de recursos para as Caixas (OLIVEIRA; FLEURY, 1985).

13 24 de janeiro, data da promulgação da Lei Eloy Chaves, é considerado como dia do aposentado e aniversário da previdência social brasileira.

Do ponto de vista administrativo, a CAP era uma entidade autônoma semipública, cujo papel governamental se restringia à fiscalização. O órgão responsável pela administração das CAPs eram os Conselhos de Administração presididos por um superintendente indicado pela empresa, dois empregados também escolhidos pela empresa e outros dois empregados eleitos pelo conjunto de trabalhadores a cada três anos. Na prática, as comissões contavam com três representantes da empresa e dois representantes dos trabalhadores (OLIVEIRA; FLEURY, 1985).

De acordo com Oliveira e Fleury (1985), o período de 1923 a 1930 pode ser considerado a primeira fase da previdência social brasileira e cujas principais características se resumiam nos seguintes pontos: inclusão de serviços junto aos benefícios pecuniários, liberalidade para que cada CAP determinasse quem seriam seus beneficiários, existência de outros benefícios pecuniários além de aposentadoria e pensão e liberalidade na definição dos critérios de aposentadoria.

Não foi apenas a postura do Estado em relação às questões sociais que foi reformulada com as mudanças sociodemográficas e a emergência do movimento sindical no Brasil. O aumento da pressão pela regulamentação das relações de trabalho também teve impacto na preocupação do empresariado a respeito do tema. Com a finalidade de garantir a estabilidade no ambiente produtivo, a nascente burguesia nacional atuou em duas frentes: instituir mecanismos de socialização dos trabalhadores que garantissem uma integração física e psíquica com o trabalho na fábrica e desenvolver mecanismos de assistência para os empregados da empresa. As iniciativas do primeiro tipo objetivavam moldar hábitos e formas de pensar dos trabalhadores de acordo com os interesses empresariais. A segunda se aproximava daquilo que era ofertado pelas instituições católicas de assistência sob o prisma da caridade. Eram oferecidos aos trabalhadores atendimento médico, creches, escolas, habitação em vilas operárias, além da adesão às Caixas de Auxílio e sociedades de ajuda mútua. No entanto, ao contrário das iniciativas católicas, que eram motivadas pela preocupação com a “boa morte”, os empresários se moviam pela necessidade de criar um vínculo de dependência com os empregados, evitando, assim, qualquer forma de insurgência (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982).

As obras de caridades católicas também foram impactadas pelo novo contexto social brasileiro.

As instituições assistenciais que surgem nesse momento, como a Associação das Senhoras Brasileiras (1920), no Rio de Janeiro, e a Liga das Senhoras Católicas (1923), em São Paulo possuem já – não apenas no nível da retórica – uma diferenciação em face das atividades tradicionais de caridade. Desde o início são obras

que envolvem de forma mais direta e ampla os nomes das famílias que integram a grande burguesia paulista e carioca e, às vezes, a própria militância de seus elementos femininos. Possuem um aporte de recursos e potencial de contatos em termos de Estado que lhes possibilita o planejamento de obras assistenciais de maior envergadura e eficiência técnica (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982, p. 166).

Um exemplo do início do processo de profissionalização do exercício da caridade exposto na citação acima é a Confederação Católica, instituição criada em 1922 que foi a precursora da Ação Católica, organização responsável pela criação do primeiro centro de estudos em Serviço Social do Brasil, já na década de 1930. Além das tradicionais ações voltadas para o amparo de crianças, com foco acentuado na questão dos órfãos, essas novas instituições também se dedicavam à temática da disciplina e preparo para o trabalho.

O aumento do número de entidades e do escopo de suas ações e a relação destas com o Estado acarretaram no desenvolvimento, por parte do governo, de instrumentos de fiscalização. Com esse objetivo, cria-se a Junta de Auxílios e Subvenções (CARRO, 2008). Contudo, é importante ressaltar que essa medida governamental ainda era incipiente. Uma sistematização mais robusta da relação entre governo federal e entidades beneficentes somente ocorrerá na década de 1930, durante a administração de Getúlio Vargas.

4.4 A EXPANSÃO PARCIAL DA PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA VARGAS E NA