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2 OS FUNDAMENTOS DO CONCEITO DE CAMPO NAS

2.2 O CONCEITO DE CAMPO NA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA

2.2.2 A Teoria dos Campos de Pierre Bourdieu

A utilização da categoria campo para o desenvolvimento do “pensar relacional” de Bourdieu tem como objetivo analisar as forças invisíveis que mediam o dualismo entre sujeito e estrutura social. O autor critica abordagens que focam apenas nos elementos visíveis da realidade social: o indivíduo e o grupo, que não são mais do que os indivíduos em interação. Bourdieu compara a oposição entre seu conceito de campo e as abordagens substancialistas com a elaboração da teoria gravitacional newtoniana em rejeição ao realismo cartesiano, que restringia a ação ao contato físico direto (BOURDIEU; WACQUANT, 1992). A teoria dos campos permite enxergar que “o que existe no mundo social são relações – não interações entre agente ou laços intersubjetivos entre indivíduos, mas relações objetivas que existem ‘independente da vontade e consciência individual’, como Marx disse” (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p. 97).

Bourdieu define o conceito de campo como

Uma rede, ou configuração, de relações objetivas entre posições. Essas posições são objetivamente definidas, em sua existência e nas determinações que ela impõe sobre seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação presente e situação potencial (situs) na estrutura de distribuição de espécies de poder (ou capital) cuja posse

comanda o acesso a lucros específicos que estão em jogo no campo, assim como por suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação, homologia, etc.) (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p. 97).

O objetivo de Bourdieu, ao adotar a noção de campo, é criar um conceito aberto capaz de superar diversas formas de subjetivismo e objetivismo. Além do positivismo substancialista, Bourdieu se opõe ao marxismo vulgar, que reduz a sociedade aos determinantes da esfera econômica. Nesse sentido, a concepção de sociedade do autor consiste em uma constelação de campos, cada qual com uma dinâmica própria e relativa autonomia. O conceito também é construído em oposição às interpretações idealistas das práticas culturais, demonstrando como essas práticas são produzidas pelas condições sociais de luta no campo (SWARTZ, 1997).

Bourdieu justifica a necessidade de uma teoria dos campos, demonstrando a existência de propriedades comuns que perpassam a todos os espaços dessa natureza. No entanto, a análise concreta depende das singularidades de cada um desses campo. Uma lógica específica e irredutível é o que sustenta a existência de um campo. O estudo dos fenômenos que ocorrem nos domínios do campo deve ser realizado a partir do conjunto de particularidades do campo (BOURDIEU; WACQUANT, 1992).

Campos são arenas de disputa. Por essa razão, é recorrente o uso da metáfora do jogo para descrever suas características gerais. A diferença é que, nos jogos, as regras e o processo de disputa são resultados de ações deliberadas, enquanto, no campo, a produção e reprodução do campo independe da vontade de um indivíduo. Cada campo possui um objeto de disputa que move a ação de seus participantes. Os agentes percebem essa realidade como algo natural e estão investidos na disputa em questão – o que Bourdieu (1996) chama de illusio. A disputa no campo é regulada pelo nomos, um conjunto de regras não codificadas e partilhadas por seus membros. Para a sustentação do campo é fundamental o compartilhamento da doxa: a crença na vigência do objeto de disputa e dos regulamentos de ação do campo. A adoção da doxa é indispensável para alguém se tornar membro de um campo, mesmo que o indivíduo pretenda modificar as estruturas do campo – já que, para modificá-las é preciso ser reconhecido como agente daquele domínio (BOURDIEU; WACQUANT, 1992).

A posição de um agente no campo depende da força relativa que ele possui. A força de cada jogador é determinada pelo controle de recursos valorizados no âmbito do campo. Esses recursos recebem o nome de capitais. Ao analisar a composição da estrutura de posições do campo em função do controle de capitais por parte dos agentes, Bourdieu destaca que não devemos apenas avaliar a quantidade, mas também do tipo de capital que cada indivíduo possui. A determinação de quais tipos de capital serão mais valorizados varia de acordo com a dinâmica

interna de cada campo. Por exemplo, no mercado, o tipo de capital mais valorizado é o econômico. Já no campo acadêmico, valoriza-se mais o capital cultural.

Para Bourdieu (2011), capitais são relações sociais de poder e, por isso, tornam-se objetos de disputa. É por meio dessa distribuição que se estabelecem as posições de dominantes e subordinados dentro do campo. Esse aspecto da teoria bourdiana revela a presença da abordagem relacional também na concepção de poder. O exercício do poder ocorre por meio do controle de capitais cuja valorização depende do contexto de relações na qual o indivíduo está inserido e da quantidade e tipo de capitais controlados pelos demais agentes do campo.

Ao argumentar que a estrutura de relações é determinada pelo controle de capitais, Bourdieu evidencia o seu entendimento de campo enquanto um espaço de dominação. Mas, afinal de contas, quais são as vantagens obtidas por aqueles que ocupam as posições dominantes de um campo? A luta no campo é para manutenção ou transformação da relação de forças. Conforme já abordamos, essa contenda obedece às regras específicas de cada espaço. O controle de grandes quantidades de capital relevante ao campo traz como vantagem a capacidade de moldar as regras do jogo de acordo com seus interesses. São os agentes dominantes que definem aquilo que é legítimo dentro do campo e, por essa razão, possuem grandes vantagens. Portanto, a luta por posição também pode ser compreendida como uma disputa pela capacidade de impor modos legítimos de pensar e agir aos demais integrantes de um campo, o que Bourdieu denomina violência simbólica (SWARTZ, 1997).

A luta por posição é um dos principais diferenciais da teoria dos campos em relação à noção de sistema. Enquanto nos campos a estabilidade e a reprodução do status quo é resultado da ação dos dominantes em relação aos subordinados, nos sistemas, a tendência ao equilíbrio e à estabilidade é uma propriedade inerente ao arranjo social. A produção de estabilidades e instabilidade por parte dos agentes como uma das propriedades do campo fica mais evidente quando Bourdieu identifica três tipos de estratégia de luta: a conservação, a sucessão e subversão. As estratégias de conservação são adotadas por agentes dominantes que visam a manutenção de sua posição. As de sucessão se referem às tentativas de ascensão a posições dominantes e, normalmente, são adotadas por membros recentes que pretendem se juntar ao grupo dos mais poderosos. Por fim, as estratégias de subversão são adotadas por agentes subordinados com o objetivo de desbancar os dominantes e assumir seus lugares. Esse tipo de estratégia normalmente toma a forma de grande ruptura na ordem do campo (SWARTZ, 1997). Apesar de sua importância para compreensão das práticas dos agentes do campo, a estrutura objetiva de posições de um campo decorrente da distribuição de capitais não é o único aspecto que deve ser considerado. Nesse processo, somado às regras do campo e à distribuição

de capital, também está presente o habitus dos agentes. Bourdieu define habitus nos seguintes termos:

Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente 'regulamentadas' e 'reguladas' sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 1977 apud ORTIZ, 1983, p. 15).

O habitus é um princípio gerador de estratégias. É por meio dele que o sujeito percebe o mundo social que o cerca e concebe suas ações. A produção do habitus ocorre durante o processo de socialização e reflete a trajetória social do indivíduo. Por conseguinte, as disposições estruturadas variam de acordo com as posições que o agente ocupa no espaço social ao longo de sua vida. Dessa forma, o habitus é produto da internalização das estruturas sociais às quais o indivíduo esteve submetido. Simultaneamente, é pela lente do habitus que se constituem as capacidades cognitivas e avaliativas de um sujeito que constituem percepções, julgamentos, gostos e concepções de estratégias de ação. Portanto, o habitus é constituído pelas estruturas sociais por meio da socialização e constitui as estruturas sociais por mediar as ações que as produzem, reproduzem ou transformam.

Embora seja um elemento essencial na conformação das estratégias e práticas nas arenas de disputa, a relação entre o conceito de campo e o de habitus não é mecânica. Sua construção se dá pela trajetória do indivíduo no espaço social e, consequentemente, o acompanha no momento em que ele se insere em um campo. A transposição do habitus para a realidade do campo não é imediata. É necessário um processo de tradução que adapte o sistema de disposições à dinâmica interna daquele domínio. Esse processo é mais acentuado em campos que gozam de maior autonomia. Nesse caso, a lógica específica do campo tem maior capacidade de imposição sobre o habitus do agente (BOURDIEU; WACQUANT, 1992).

A adaptação do habitus de acordo com a dinâmica do campo evidencia outra questão importante para a teoria bourdiana: a relação entre autonomia do campo e homologia. A autonomia está no cerne do conceito de campo. Sem um conjunto de relações e normas particulares, não há campo. Contudo, isso não significa ausência de relação entre essas ordens relativamente autônomas e o ambiente social como um todo (BOURDIEU; WACQUANT, 1992). Para caracterizar esse processo, Bourdieu recorre ao conceito de homologia. O espaço social é ilustrado por Bourdieu por intermédio de um plano cartesiano: no eixo ‘y’ temos a quantidade de capital e no eixo ‘x’ temos a predominância do capital econômico ou cultural

(BOURDIEU, 2006). A partir dessas duas dimensões é que ocorre a colocação de um indivíduo no espaço social. Ocupar uma posição alta da estrutura social geral provavelmente corresponda a uma posição de dominância nos campos em que o indivíduo se insere. No entanto, essa correspondência não é mecânica e nem inescapável. Por exemplo, um agente dotado de grandes quantidades de capital econômico, apenas por esse fato, não ocupará posição dominante no campo acadêmico, já que esse espaço valoriza o controle de capital cultural. Porém, a posse do capital econômico é um elemento facilitador para a obtenção do capital cultural. Ou seja, para que as condições que viabilizam a ocupação de locus privilegiado na estrutura de classe sejam válidas também para a realidade do campo, é necessário a tradução do tipo de capital de acordo com a lógica do campo (BOURDIEU, 2011).

As propriedades gerais dos campos são os elementos estruturantes para a conformação de um método de estudo dessas ordens sociais, especialmente em relação a três dimensões básicas: as regras internas de funcionamento do campo, o tipo de valorização de capitais e a transposição do habitus para a lógica do campo. Para isso, sempre que um campo estiver em análise, deve-se considerar (1) a economia de capitais vigente naquele campo, isto é, quais os tipos de capitais que são mais valorizados naquele espaço; (2) a estrutura de relações objetivas, definida pela distribuição de capitais, que se impõem aos seus membros; (3) a maneira à qual o habitus trazido por um indivíduo é traduzido pela lógica do campo, regulando estratégias de ação e trajetórias desejadas (BOURDIEU; WACQUANT, 1992).