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5 RASTREANDO O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO CAMPO DE AÇÃO

5.5 PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Checkel (2005) destaca a compatibilidade do rastreamento de processos com outros métodos e técnicas de produção e análise de dados, como técnicas estatísticas, análise narrativa, análise de conteúdo e outros métodos qualitativos. Pelas características do objeto de pesquisa, adotaremos combinação entre estudo de caso e o rastreamento de processos. De acordo com Goldenberg (1997, p. 34), “através de um mergulho profundo e exaustivo em um objeto delimitado, o estudo de caso possibilita a penetração na realidade social”. Além disso, o estudo de caso permite a utilização conjugada de diversas técnicas de pesquisa, o que possibilita a captação da riqueza e diversidade de facetas dos processos sociais (MAY, 2004).

O recorte temporal que delimita o processo em estudo se inicia na década de 1980, com o fim da ditadura militar e a mudança para o regime democrático, quando tem início o movimento para a reestruturação do sistema de proteção social no Brasil, e se encerra na sanção da Lei Orgânica da Assistência Social em 1993. Apesar dessa delimitação, não podemos ignorar a importância do histórico dos campos relacionados na produção do fenômeno estudado. Portanto, será preciso incorporar fatos relevantes que tenham alterado a dinâmica desses campos e, de certa forma, tenham influência no objeto de pesquisa.

Para a análise das duas fases do processo de construção do campo da política pública de assistência social no Brasil, realizou-se uma pesquisa documental que envolveu leis, atas, decretos, portarias e outros registros dos poderes Executivo e Legislativo. Além disso, foram analisados registros de encontros profissionais e acadêmicos do Serviço Social que tratavam da sua atuação profissional e de sua relação com o Estado. Essa etapa teve como objetivo reconstituir os principais fatos e propostas que surgiram durante o período e identificar atores e grupos que estiveram envolvidos em seus diferentes momentos.

A primeira fase do processo em análise pode ser dividida em dois momentos: o período pré-Assembleia Constituinte e a etapa de elaboração do texto constitucional. O estágio que antecedeu a construção da nova Carta Magna teve como espaço privilegiado de discussão da reformulação das políticas de proteção social no Brasil, especialmente aquelas vinculadas à temática da previdência, o Grupo de Trabalho para Reestruturação da Previdência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social. Como resultado das atividades desse GT, foi produzido o relatório Rumos da Nova Previdência. Além de apresentar a proposta de reconfiguração do sistema de proteção social elaborada pelo GT/MPAS, esse documento agrega o decreto de criação do grupo, a mensagem enviada pelo ministro da Previdência ao presidente da República solicitando a criação do GT, o discurso de José Sarney ao Congresso Nacional comunicando, dentre outras medidas, a criação do GT e as atas e transcrições das 11 reuniões realizadas pelo grupo. Esse material foi fundamental para a análise do período pré-Constituinte. Os procedimentos para elaboração da Constituição Federal de 1988 foram amplamente documentados. Para o estudo desse período, recorremos aos registros da Assembleia Nacional Constituinte. O debate sobre a construção da nova proteção social brasileira esteve concentrado em espaços específicos no organograma da Assembleia. O ponto de partida das discussões estava na Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente. Nesse ambiente, foram realizadas 24 reuniões, que resultaram na elaboração de um anteprojeto para a temática. Concluída essa etapa, as conversas foram deslocadas para a Comissão de Ordem Social, com realização de nove reuniões que embasaram a construção de um anteprojeto que, dentre outros

temas, abordava a questão da seguridade social. Além dessas duas arenas, alguns assuntos relativos à assistência social foram discutidos marginalmente na Subcomissão da Família, Menor e do Idoso. Encerrada a etapa de subcomissões e comissões, os anteprojetos foram encaminhados para a Comissão de Sistematização e, posteriormente, enviados ao Plenário para a apreciação da totalidade dos deputados constituintes. Os registros de cada uma das etapas e espaços elencados acima – atas, transcrições, emendas, anteprojetos, projetos e texto constitucional aprovado – fizeram parte da análise documental executada na presente pesquisa. A segunda fase do processo de construção do campo da política de assistência social no Brasil aconteceu por meio da disputa para aprovação da LOAS, lei orgânica que regulamentava a aplicação dos artigos presentes na Constituição Federal. Boa parte dos documentos vinculados a esse momento do processo dizem respeito à atividade legislativa. Assim como na primeira fase, a etapa da LOAS pode ser dividida em dois momentos: a construção da peça legislativa vetada por Collor e a elaboração da lei sancionada por Itamar Franco. Um dos principais documentos do primeiro momento são os Anais do I Simpósio Nacional sobre Assistência Social, que reuniu os principais responsáveis pela criação do primeiro texto da LOAS com o objetivo de apresentar uma nova visão acerca da política aos parlamentares. Esse documento reúne as transcrições de falas e debates e um conjunto de artigos elaborados pelos palestrantes. Outros documentos importantes incorporados foram os que registraram iniciativas parlamentares para elaboração de uma lei orgânica para a assistência social. Dentre essas propostas, dedicamos maior atenção à documentação do projeto de lei do deputado Raimundo Bezerra, que foi aprovado pelo Congresso Nacional e vetado pelo presidente Collor. A mensagem de veto enviada por Collor ao Congresso também é um registro relevante que integrou a pesquisa documental.

O segundo momento da fase de elaboração da LOAS também conta com um amplo registro documental dos trâmites legislativos das diferentes propostas de lei orgânica apresentadas após o veto presidencial de Collor. Na pesquisa para este trabalho, dedicamos especial atenção ao projeto apresentado pelo poder executivo por intermédio do Ministério do Bem-Estar Social, que, após uma série de reformulações, foi aprovado no Congresso e sancionado por Itamar. Além das iniciativas legislativas, concretizou-se, nesse período, a reformulação das diretrizes profissionais dos trabalhadores do Serviço Social. Um dos registros mais importantes que sintetizam a nova concepção dominante a respeito da atuação é o projeto ético-político do Serviço Social, também aprovado em 1993, a partir da articulação de diversas entidades representativas do setor. Esses documentos foram fundamentais para análise dessa subfase.

A interação entre academia e política foi um dos aspectos centrais para o desenrolar do processo de constituição do campo da política de assistência social em todas as suas etapas. Por conta desse fato, associada à análise de documentos, foi necessário realizar uma pesquisa bibliográfica para identificar as perspectivas teóricas sobre o tema das políticas de previdência e a assistência social no Brasil, visando a identificar a influência das ideias oriundas dos campos acadêmicos no âmbito da organização das políticas públicas desses setores. Com a pesquisa bibliográfica, procuramos conhecer a evolução das concepções sobre as políticas de previdência e assistência social e, principalmente, a conformação da ideia da assistência social como direito do cidadão.

Com a finalidade de preencher algumas lacunas deixadas pelos resultados das pesquisas documental e bibliográfica, foram identificados atores-chave para o processo para a realização de entrevistas com roteiro semiestruturado. A construção do roteiro da entrevista foi realizada tendo em vista a necessidade de complementação das informações obtidas pelas técnicas anteriores, abarcando as quatro subfases do objeto em análise. Ao todo, foram realizadas 16 entrevistas com atores divididos em três grandes grupos: (1) acadêmicos ou representantes dos trabalhadores do Serviço Social que atuaram no processo (oito entrevistados); (2) servidores de carreira ou de livre nomeação que ocuparam posição na burocracia do MPAS ou da LBA (seis entrevistados); (3) especialistas na área assistência social que não participaram diretamente do processo, mas cujas trajetórias profissionais os aproximaram dessa realidade (dois entrevistados). Para suplementar o mapeamento inicial, utilizamos a técnica de bola de neve, na qual o entrevistado é convidado a indicar outras pessoas que estejam relacionadas com o objeto da pesquisa. Para a definição do número de entrevistados, foi utilizado o critério de saturação (BAUER; GASKELL, 2002).

Tanto os objetos da pesquisa documental como as transcrições das entrevistas semiestruturadas passaram por uma análise de conteúdo. Durante essa etapa utilizamos o software de análise qualitativa NVivo. Os “nós” analíticos foram definidos tendo em vista os conceitos e dimensões mobilizadas para análise e os objetivos da pesquisa. Em torno deles, foram classificados os trechos das transcrições que foram considerados relevantes para o trabalho. Além da organização sistemática dos dados qualitativos, a análise de conteúdo possibilitou também a quantificação desses resultados. As possibilidades quantitativas abertas pela análise de conteúdo se demonstram especialmente úteis em circunstâncias em que se tem acesso à totalidade de debates em um determinado fórum. Durante esta pesquisa, encontramos essas circunstâncias na análise do GT/MPAS e das subcomissões e comissões. O acesso ao universo dos conteúdos debatidos permite a construção de indicadores quantitativos para a

mensuração dos aspectos que se deseja estudar, como os temas mais abordados ou os tipos de atores que tiveram maior participação em determinado espaço de discussão.

Durante a categorização dos conteúdos coletados, surgiu a necessidade da elaboração de duas árvores de “nós” analíticos. A primeira árvore, de natureza temática, teve como objetivo organizar o conteúdo de acordo com os principais assuntos abordados durante as discussões acerca do fenômeno estudado. A segunda, de natureza teórica, alinhava os aspectos empíricos aos elementos conceituais mobilizados para a construção do problema de pesquisa, possibilitando a aproximação entre as duas esferas e facilitando a elaboração de conclusões que unissem os dois âmbitos, trazendo aportes que viabilizem a resposta satisfatória das questões norteadoras desta investigação.

Quadro 4 – Conceitos e dimensões para análise dos dados

CONCEITO DIMENSÃO 1 DIMENSÃO 2

Macrocontexto político

Grandes eventos desestabilizadores ▪ Redemocratização ▪ Nova constituição ▪ Impeachment de Collor

Janelas de oportunidade

▪ Identificação de oportunidades

▪ Estratégias elaboradas a partir de janelas de oportunidade

▪ Dificuldades impostas pelo contexto político

Dinâmica Interna dos Campos

Dinâmica do campo previdenciário

▪ Mapeamento do grupo de atores

▪ Distinção entre políticas contributivas e não contributivas

▪ Financiamento da previdência ▪ Definição de seguridade social

▪ Separação entre previdência e assistência ▪ Separação entre saúde e previdência

Dinâmica do campo acadêmico do Serviço Social

▪ Mapeamento do grupo de atores

▪ Definição da relação entre o Serviço Social e a Assistência Social

▪ Definições sobre a relação entre Serviço Social e Estado

▪ Definição da política de assistência social Dinâmica do campo profissional do

Serviço Social

▪ Mapeamento de grupo de atores

▪ Definição da relação entre o Serviço Social e a Assistência Social

▪ Definições sobre a relação entre Serviço Social e Estado

▪ Definição da política de assistência social

Relações entre campos

Participação do campo da previdência na Assembleia Constituinte

▪ Vínculos com parlamentares

▪ Participação em cargos de assessoria ou como palestrantes

Relação dos campos acadêmico e profissional do Serviço Social com partidos políticos

▪ Relação com o Partido dos Trabalhadores ▪ Outros vínculos partidários

Relação dos campos acadêmico e profissional do Serviço Social com o campo do poder legislativo

▪ Relações de colaboração com parlamentares

▪ Relações de conflito com parlamentares ▪ Estratégias para influenciar a dinâmica

legislativa

Relação dos campos acadêmico e profissional do Serviço Social com o campo do poder executivo

▪ Relações de colaboração com o núcleo do executivo

▪ Relações de conflito com o núcleo do poder executivo

▪ Relações com outros setores do poder executivo

▪ Estratégias para influenciar o poder executivo

Atores Habilidosos

Construção de atores coletivos

▪ Identificação de lideranças do campo da previdência

▪ Identificação de lideranças dos campos acadêmico e profissional do Serviço Social ▪ Estabelecimento de vínculos colaborativos

entre atores do setor da previdência ▪ Estabelecimento de vínculos colaborativos

entre atores dos campos

Disseminação de paradigmas de política

▪ Estratégias para difusão de ideais sobre a política de atores habilidosos do campo da previdência

▪ Estratégias para difusão de ideais sobre a política de atores habilidosos dos campos acadêmico e profissional do Serviço Social

Outras estratégias

▪ Leituras do contexto político ▪ Formação de alianças

Atores Coletivos

Comunidades de política no campo da previdência

▪ Grupo de participantes

▪ Compartilhamento de um mesmo paradigma de política

▪ Objetivos políticos em comum ▪ Estratégias em comum Comunidades de política nos

campos acadêmico e profissional do Serviço Social

▪ Grupo de participantes

▪ Compartilhamento de um mesmo paradigma de política

▪ Objetivos políticos em comum ▪ Estratégias em comum

Paradigmas de Política

Paradigmas do campo da previdência

Aspectos normativos e cognitivos:

▪ Conceitualização de temas e problemas ▪ Definição de objetivos e prioridades ▪ Estabelecimento de soluções e

instrumentos de ação

Operacionalização:

▪ Concepções sobre autoridade e responsabilidade

▪ Definição de conhecimentos técnicos legítimos

▪ Indicativo de procedimentos legítimos para a tomada de decisões

Paradigmas dos campos acadêmico e profissional do Serviço Social

Aspectos normativos e cognitivos:

▪ Conceitualização de temas e problemas ▪ Definição de objetivos e prioridades ▪ Estabelecimento de soluções e

instrumentos de ação

Operacionalização:

▪ Concepções sobre autoridade e responsabilidade

▪ Definição de conhecimentos técnicos legítimos

▪ Indicativo de procedimentos legítimos para a tomada de decisões

Fonte: Elaboração própria.

Cabe ressaltar que, apesar de as duas árvores terem sido utilizadas na categorização dos conteúdos de documentos e entrevistas, a análise desses materiais foi realizada em arquivos

diferentes, uma vez que são informações de naturezas distintas e que não podem ser equiparadas, sob pena de distorção das conclusões.

5.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de caracterizar o desenho de pesquisa, delimitando seu universo histórico, as perguntas, as hipóteses que orientaram a investigação e as perspectivas metodológicas que nortearam a coleta e a análise dos dados, passaremos à exposição dos resultados encontrados. A lógica de exposição desses resultados respeita a estrutura do processo de pesquisa em suas diferentes fases. No próximo capítulo, abordaremos a primeira fase da constituição do campo da política de assistência social, destacando a elaboração da Constituição de 1988 e de seus antecedentes.

6 A REDEMOCRATIZAÇÃO COMO JANELA DE OPORTUNIDADE: A