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2 OS FUNDAMENTOS DO CONCEITO DE CAMPO NAS

2.1 O CONCEITO DE CAMPO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

O emprego da noção de campo nas Ciências Sociais é resultado da importação de um conceito das ciências exatas, mais especificamente da Física. Nessa área do conhecimento, esse conceito é empregado para caracterizar um espaço delimitado no qual elementos dotados de propriedades específicas sofrem a ação de determinada força exercida de maneira aleatória. Campos são dotados de organização própria e a força à qual são submetidos os objetos sujeitos aos seus efeitos variam de acordo com essa organização. Por exemplo, no caso do campo elétrico, o vetor de força sofrida por uma carga é inversamente proporcional ao quadrado da sua distância para a carga geradora do campo. Ou seja, dentro da área de ação do campo há uma dinâmica regular particular que permite, inclusive, o cálculo do vetor de força em determinado ponto do campo (MARTIN, 2003).

As teorias dos campos na Física desfizeram a noção cartesiana de causalidade, na qual um fenômeno físico de propagação de força poderia ser causado exclusivamente pelo contato direto entre dois objetos. A teoria gravitacional newtoniana e os estudos sobre campos eletromagnéticos comprovaram a possibilidade de um outro tipo de causalidade em que a força causadora não é visível e apenas pode ser identificada e mensurada por meio de seus efeitos. Entretanto, o poder causal de um campo somente pode ser exercido com a presença de elementos a ele suscetíveis em seu raio de ação. Caso contrário, o campo se restringe a um potencial de força não exercido (HALLIDAY; RESNICK, 2009).

Todos esses aspectos são importantes para a transposição conceitual para a área das Ciências Sociais. De acordo com Martin (2003), os cientistas sociais que adotaram o conceito de campo consideram que as características de um campo físico também se aplicam à vida social. É evidente que o uso de um conceito originário de uma área tão distinta demanda um amplo espectro de adaptações. No entanto, há um conjunto de entendimentos provenientes das Ciências Físicas que conformam um pilar de sustentação sobre o qual as versões sociológicas das teorias dos campos são erguidas (MARTIN, 2003; KLUTTZ; FLIGSTEIN, 2016).

A incorporação do conceito de campo ao corpo teórico das Ciências Sociais tem como pressuposto a existência de ordens sociais delimitadas que possuem um modo de funcionamento particular. A partir dessa lógica própria, são reguladas as relações socais dos indivíduos que atuam nesse espaço e são explicadas as regularidades na vida social. Ademais, assim como na construção teórica da Física, não são todos os elementos que estão sujeitos a sofrerem os efeitos do campo. Para integrar um campo social, seus membros devem estar dotados de propriedades específicas que permitam a ação do campo sobre eles (MARTIN, 2003; KLUTTZ; FLIGSTEIN, 2016).

2.1.1 A segmentação do espaço social nos clássicos da Sociologia

Em graus distintos, o entendimento de um espaço social estratificado composto por um conjunto de ordens sociais relativamente autônomas está presente nos autores clássicos da Sociologia. Émile Durkheim (1999) identificava na diferenciação social o processo central da sociedade moderna. A passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica é marcada pela complexificação da sociedade, sendo necessária a complementariedade de funções para a manutenção do bom funcionamento do corpo social. Nessa nova realidade, o meio moral no qual o indivíduo está inserido varia de acordo com a sua posição no espaço social. Embora haja um substrato em comum para toda a sociedade, o conjunto de crenças, valores e instituições sociais internalizadas por uma pessoa – e, consequentemente, o seu modo de percepção e ação – depende da função ocupada na divisão social do trabalho. Durkheim considera que essa variação de meios morais nos diferentes setores sociais, desde que complementar, é fundamental para a sustentação da sociedade (RODRIGUES, 2004). Marx e Engels (1998) também identificam a diferenciação como característica da modernidade. No entanto, a dinâmica capitalista é posta como propulsora desse fenômeno. O materialismo histórico marxiano está ancorado na divisão da sociedade em infraestrutura produtiva e superestrutura jurídica e cultural, com preponderância da primeira sobre as últimas na

determinação de suas dinâmicas. Por conseguinte, a segmentação social reflete a diferenciação na infraestrutura produtiva, com a diversificação de mercadorias e técnicas produtivas.

Apesar de Durkheim e Marx refletirem sobre distintas formas de segmentação social e os reflexos disso na dinâmica da sociedade, Max Weber foi o pensador clássico cujas formulações a esse respeito tiveram maior impacto nas teorias contemporâneas sobre campos. Weber se dedicou à análise da autonomização das diferentes esferas sociais como um dos fenômenos decorrentes do processo de racionalização característico da modernidade (WEBER, 1982).

A unidade de análise para a Sociologia weberiana é a ação social, entendida como ação com sentido subjetivo referenciado no comportamento ou expectativa de outros. Toda ação social possui uma conexão de sentidos que motivam um indivíduo a agir de determinada maneira. Cabe ao sociólogo desvendar os sentidos da ação social. Visando esse objetivo, Weber (1999) elaborou uma tipologia de ações sociais. A ação social pode ser referente a fins, quando motivada por um cálculo racional de custos e benefícios; referente a valores, quando motivada por um conjunto de crenças pelo agente; afetiva, quando motivada por imperativos emocionais; ou tradicional, quando motivada pelo costume.

As relações sociais são estabelecidas quando um comportamento possui um sentido referido por uma pluralidade de agentes. Nesse caso, há uma reciprocidade entre os agentes que se orientam mutuamente em suas ações. Uma relação social pode ser regularizada caso ela seja repetida reiteradamente ao longo do tempo. A institucionalização de um conjunto de relações sociais orientadas por motivações comuns pode resultar na conformação de uma ordem legítima. A partir de então, os indivíduos podem orientar suas ações tendo em vista a representação da existência dessa ordem. Um exemplo desse fenômeno é o Estado. Para Weber, o Estado é um agrupamento que tem como principal objetivo a dominação racional de uma população de um determinado território. Uma vez consolidado o aparelho estatal, todos aqueles que habitam o território passam a orientar suas ações por esta ordem legítima (WEBER, 1999). Por terem as ações sociais como unidades básicas, as ordens legítimas podem estar orientadas por diversas motivações e sentidos. Portanto, distintas ordens com lógicas internas próprias e, por vezes, contraditórias coexistem em uma sociedade. É por meio do trajeto que parte da ação social, passa pela constituição de relações sociais e culmina na construção de uma ordem legítima que são conformadas as diferentes esferas da vida social.

Em relação a multiplicidade de espaços sociais que operam sob lógicas distintas, Weber (1982, p. 147) sintetiza: “Estamos colocados em várias esferas da vida, cada qual governada por leis diferentes”. Ao abordar essa temática, o autor apresenta seis esferas que compõem a

vida social como um todo, cada uma com uma dinâmica interna de funcionamento própria: a religiosa, a econômica, a política, a intelectual, a erótica e a estética (WEBER, 1982, 2006).

A esfera religiosa, baseada na ação racional orientada por valores e na ação afetiva, oferece um conjunto de crenças que organizam as condutas dos indivíduos, estabelecendo uma ordem moral que separa o profano do sagrado, tendo como objetivo básico a busca por redenção. Para Weber, nas sociedades tradicionais há um domínio da esfera religiosa sobre as demais. Com o processo de racionalização e desencantamento do mundo característico da modernidade, essa supremacia se desfaz, conferindo autonomia às demais esferas (WEBER, 1982, 2006).

A esfera econômica é um dos espaços no qual a racionalidade moderna prepondera. Nesse espaço, a dinâmica é regulada pela ação voltada à fins, prevalecendo o cálculo racional entre custos e benefícios com o objetivo final do lucro. A esfera política também é estruturada pela ação racional voltada a fins, porém o objetivo final não é o lucro, e sim a conquista e manutenção do poder. A forma de organização estatal é típica desse espaço.

A esfera estética é o locus de criação dos critérios normativos que regulam as práticas artísticas (WEBER, 1982, 2006). Para Weber, a ação social característica do mundo artístico é a afetiva, visto que o julgamento de valor do que é belo não está vinculado à racionalidade da vida cotidiana. A esfera da arte é autônoma, pois se trata de uma estilização da vida. Outra esfera de caráter extracotidiano é a erótica. Nesse espaço, ações são orientadas pela afetividade visando à satisfação dos desejos pessoais (WEBER, 1982, 2006).

A esfera intelectual ou científica é regida tanto pela ação racional voltada a fins como pela orientada por valores. Ela é referenciada por fins, pois envolve a obtenção da posse do conhecimento para ascensão na carreira científica. No entanto, também envolve valores, já que a missão da ciência é a busca pela “verdade”, considerada por Weber como um valor. A autonomia da esfera científica é explorada por Weber na obra Ciência e Política: duas vocações, na qual ele evidencia as diferenças e aponta incompatibilidades entre essas esferas.

Esse breve panorama acerca das esferas weberianas evidencia que a ideia de espaços sociais limitados com uma dinâmica de operação específica já estava presente nos clássicos da Sociologia. A abordagem de Weber considera que, em cada uma dessas esferas há algo diferente em jogo e um sentido distinto de ação. Portanto, a interpretação dos fenômenos ocorridos nesses espaços somente pode ser feita a partir de suas particularidades. Contudo, apesar da existência dessas esferas, Weber não considerava sua autonomia absoluta. Para o autor, a relação entre as esferas é historicamente construída e não pode ser negligenciada pela análise sociológica.

2.1.2 Lewin e os campos psicossociais

Apesar das raízes na teoria sociológica clássica, o uso explícito da metáfora dos campos nas Ciências Humanas foi adotado pioneiramente pela Psicologia Social com a escola Gestalt (MARTIN, 2003). Em oposição à corrente behaviorista, a Psicologia da Gestalt introduziu uma visão holística a respeito da resposta do indivíduo a estímulos. Enquanto os seguidores do behaviorismo estudavam a reação de indivíduos isolados a reforços positivos e negativos, os adeptos da Gestalt argumentavam que o reflexo aos estímulos não pode ser analisado sem incorporar as variáveis ambientais nas quais a unidade de estudo está inserida. As bases da Psicologia da Gestalt foram lançadas em 1912 por Max Wertheimer. O autor argumentava que, em um contexto social, a totalidade é diferente das somas das partes e, portanto, deve-se rejeitar qualquer forma de elementarismo (COLMAN, 2003). A avaliação das condições psicológicas de um indivíduo deve considerar a configuração de relações das quais ele é parte. A importância da totalidade na construção de significados para um indivíduo orientou a sequência do desenvolvimento da Psicologia da Gestalt.

A ideia de totalidade perceptual foi desenvolvida por autores como Wolfgang Köhler e Kurt Koffka, mas foi com Kurt Lewin que o conceito de campo foi mobilizado para explicar o modo como a cognição era construída em relação com o ambiente. Para Lewin, era necessário um maior rigor metodológico para a Psicologia da Gestalt. Com esse objetivo, o autor foi buscar inspiração nas Ciências Exatas. Amparado pelas teorias da Física, o autor define campo como “a totalidade dos fatos coexistentes que são concebidos como mutualmente dependentes” (LEWIN, 1951 apud MOHR, 2005, p. 11). A teoria de Lewin tem como pressuposto que qualquer animal está inserido em um mundo fenomenológico. Por essa razão, a aparência da realidade que o cerca é imprescindível para a compreensão de motivações e comportamentos.

Ao abordar a concepção de campo para Lewin, Martin (2003) identifica seus principais pontos de sustentação. (1) A aparência que o mundo possui para uma pessoa é construída no seu campo de atuação. Com base nessa percepção, o indivíduo concebe quais são os estímulos positivos e negativos, perseguindo aquele e evitando este. (2) O sujeito possui liberdade para circular no campo. Nesse sentido, a percepção e a trajetória se influenciam mutuamente: busca- se um caminho desejável concebido pela percepção que se tem do ambiente, que, por sua vez, é construída no decorrer da trajetória. (3) As percepções dos indivíduos não são estáticas. Possíveis mudanças podem ser desencadeadas por modificações na composição do campo.

Ao importar o conceito de campo da Física, Lewin não se limitou à adoção da metáfora, tentando também formalizar uma metodologia para análise desses espaços. Nessa empreitada,

o autor adotou a noção de valências oriunda da Física para caracterizar as forças psíquicas que movem os atores nos campos, aliada à construção de uma topologia do campo, isto é, uma formulação matemática capaz de descrever o posicionamento dos indivíduos nas diferentes regiões no campo. No entanto, não havia a pretensão de elaborar medidas. O modelo topológico permitiria “falar em precisão matemática de igualdade e diferenças de direção, e de mudança de distância sem pressupor a mensuração de ângulos, direções, distâncias, o que usualmente não é possível em um campo sociopsicológico”. (LEWIN, 1951, p. 150-151, apud MOHR, 2005, p. 12, tradução nossa).

A elaboração metodológica de Lewin é um dos aspectos mais criticados em sua obra. A combinação de postulados da Física com noções de topologia que embasou a construção dos seus instrumentos metodológicos se mostrou incompatível, tornando sua operacionalização inviável. Além disso, o conceito de valências restringe o campo a um mecanismo psicológico, desprezando a sua dimensão central: a social (MARTIN, 2003; KLUTTZ; FLIGSTEIN, 2016). Apesar das restrições à teoria dos campos psicológicos de Lewin, a obra desse autor foi essencial para o surgimento das formulações sociológicas sobre esses espaços. Lewin foi pioneiro no uso explícito da metáfora dos campos para abordar fenômenos humanos. Ademais, sua perspectiva de constituição mútua de indivíduo e campo foi o ponto de partida para o aprofundamento realizado por sociólogos como Bourdieu, DiMaggio e Powell, Fligstein e McAdam (MARTIN, 2003; KLUTTZ; FLIGSTEIN, 2016).