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3 A TEORIA DOS CAMPOS DE AÇÃO ESTRATÉGICA E A PRODUÇÃO

3.3 QUEBRA DE ESTABILIDADE E MUDANÇA NOS CAMPOS DE AÇÃO

Até este ponto, verificamos que a TCAE introduz um conjunto de inovações teóricas para análise de campos tanto no âmbito da ação, com incorporação da noção de ator habilidoso e o enfoque em atores coletivos, como no que se refere à estrutura, ao abordar o relacionamento

entre campos como um fator explicativo da variação de processos internos. Esses novos aportes oferecem acréscimos importantes em relação às perspectivas de campo de Bourdieu e da Sociologia Organizacional, direcionadas majoritariamente à análise das dinâmicas retroalimentadas pelas estruturas internas do campo.

As novidades apresentadas por Fligstein e McAdam (2012) estão a serviço de outro objetivo: a explicação dos processos de mudanças nos espaços sociais de nível meso. Enquanto as perspectivas bourdianas e dos campos organizacionais dedicam a maior parte de suas análises as forças de reprodução de campos estabilizados, a TCAE se propõe a explicar todos os momentos da existência de um campo, isto é, seu surgimento, estabilização, funcionamento em estabilidade, possíveis fontes de instabilidade e transformação. A TCAE pretende oferecer ferramentas teóricas capazes de construir explicações que considerem as particularidades de cada uma dessas etapas.

Ao caracterizar os caminhos para a estruturação de um novo campo de ação estratégica, Fligstein e McAdam (2012), atentam para as diferenças entre campos emergentes e estabilizados. A principal delas é o grau de rotinização. Enquanto um campo estável é dotado de um conjunto de rotinas de relação consolidadas, os campos emergentes estão ancorados em alguns consensos frágeis e provisórios sobre o que está em jogo, quem são os atores pertencentes àquele espaço, quais são seus papéis, quais são as regras de funcionamento e modos legítimos de ação e quais são os quadros interpretativos acerca do funcionamento do campo. Sendo assim, campos não estabilizados estão mais suscetíveis a iniciativas de reformulação por parte de seus membros e a impactos provocados por acontecimentos externos. Não é um único processo que viabiliza a estruturação de um campo. São diversos os aspectos que podem se articular de maneiras distintas, dependendo das circunstâncias concretas que podem contribuir para a emergência de ordens sociais de nível meso. Por exemplo, o grau de hierarquização de relações de um campo em emergência depende da quantidade de recursos que os atores envolvidos detêm. Quando há concentração de recursos na mão de poucos, o campo tende a ser mais hierarquizado. Em caso de recursos dissipados, a tendência é o campo ser mais colaborativo (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

Em relação à formação dos campos de ação estratégica, são destacadas quatro dinâmicas que moldam esse processo. O primeiro é a mobilização emergente de atores coletivos que interpretam oportunidades e ameaças e agem com a meta de concretizar seus ideais e interesses. A formação de novos campos demanda articulações coletivas que quebrem os quadros de estabilidade da estrutura de campo e que permita a formação de uma ordem social ainda não rotinizada. Outro ponto importante é a habilidade social na conformação da estabilidade mínima

para a constituição de um campo. A existência de uma arena delimitada está baseada em uma lógica interna compartilhada por um conjunto de indivíduos. As valências dos atores habilidosos são fundamentais para a ordenação do caos, produzindo e socializado uma lógica específica atrelada àquele espaço social. A terceira dinâmica salientada é a facilitação do Estado por meio da capacidade de imposição de regras, o que pode ser fundamental para o sucesso de um novo campo. A atuação do Estado pode variar de um patrocínio agressivo a grupos que intentam a formação de novos campos à certificação passiva após o seu surgimento. A última questão destacada é a atuação das unidades internas de governança. A criação de um órgão de regulação do campo pode ser um mecanismo relevante para consolidar uma ordem específica compartilhada que sustente o novo espaço. Normalmente, a constituição dessas unidades é protagonizada pelos atores com maior recurso com o objetivo de solidificar normas e regras que favoreçam o seu domínio (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

A relação entre campos existentes também é importante no processo de emergência de novos campos de ação estratégica. A transformação de um campo pode desencadear não só mudanças em arenas como também a criação de novos espaços. Sendo assim, não basta apenas analisar as quatro dinâmicas para entender a formatação de um campo. É preciso considerar o quadro mais amplo da estrutura de relações de campo, levando em conta possíveis instabilidades no ambiente em que ele se insere.

Para abordar o tema da estabilidade e da possibilidade de transformação dos campos, os autores partem do debate entre as perspectivas que defendem que as mudanças são desencadeadas por fatores externos e as correntes que afirmam que grandes mudanças decorrem de transformações incrementais oriundas da dinâmica interna do campo. Para os externalistas, mudanças relevantes são provocadas por momentos de crise exteriores que abalam as estruturas do campo. Em tais situações todos os elementos nos quais se baseia a estabilidade da arena são colocados em xeque, tais como regras de pertencimento, hierarquia entre os componentes, normas que legitimam as ações e os paradigmas dominantes. É um momento de oportunidade para os atores habilidosos ampliarem a sua influência e conduzirem os rumos da reconfiguração do campo. Em oposição a essa visão, estão aqueles que salientam que mudanças incrementais são constantes em um campo estável. Sendo assim, as grandes transformações não necessariamente resultam de choques exógenos, podendo ser provocadas também pelo acúmulo de pequenas alterações ocorridas em períodos maiores de tempo. A aparente estabilidade não é uma propriedade inerente do campo, mas sim um produto da permanente tensão entre desafiantes e dominantes. Esse entendimento é defendido principalmente por estudiosos que se filiam ao neoinstitucionalismo (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

Explicar a mudança institucional sempre foi um desafio para as teorias neoinstitucionalistas, que por muito tempo preferiram enfatizar a estabilidade, a permanência e o legado das instituições, relegando o tema a segundo plano (LIEBERMAN, 2002). Por essa razão, quando se tratavam de processos desse tipo, preponderavam as abordagens exógenas, que atribuíam poder causal a fatores externos. Concebia-se que essas metamorfoses somente eram viáveis pela existência de conjunturas críticas amplas capazes de desestruturar as instituições vigentes (REZENDE, 2012).

Dentre as abordagens exógenas, destaca-se o modelo do equilíbrio pontuado. Para essa corrente, um subsistema de políticas públicas é caracterizado pela estabilidade. Tentativas de inovação normalmente são desencorajadas pelo efeito de feedback negativo, decorrente de instituições consolidadas e do monopólio sobre o entendimento de política setorial reforçado pela estrutura institucional. Entretanto, esses longos períodos de estabilidade são pontuados por mudanças rápidas desencadeadas em momentos críticos. Nessas circunstâncias, as questões de uma política setorial rompem as fronteiras do subsistema e chegam ao macrossistema político. Como consequência do deslocamento do espaço de decisão, o monopólio é rompido, permitindo que novas ideias sejam incorporadas a agenda governamental e possibilitando mudanças institucionais (CAPELLA, 2007).

A importância dos choques externos como fonte de mudança nas políticas públicas também está presente no modelo das coalizões de defesa. Tais eventos têm a capacidade de alterar a agenda por atrair a atenção do público e dos tomadores de decisão para determinado aspecto da política. Ademais, grandes ocorrências exteriores ao subsistema podem acarretar na redistribuição de recursos entre os atores e, consequentemente, no câmbio na posição dominante do subsistema. Embora considere os acontecimentos exteriores como um dos desencadeadores de processos de mudança, o modelo da coalizão de defesas abre o leque de causalidades, incorporando outros aspectos que também podem suscitar fenômenos dessa natureza. As transformações podem ocorrer por meio da aprendizagem de política (policy learning), quando experiências concretas em um setor de política pública estimulam a readequação de crenças e objetivos nas coalizões de defesa (SABATIER, 1988; SABATIER; JENKINS, 1999).

Os choques externos e o aprendizado de política estiveram presentes como causadores de transformações desde as primeiras formulações do modelo de coalizões de defesa. Todavia, em uma atualização do modelo realizada em 2007, Sabatier e Weible revelaram a necessidade de incorporação de caminhos alternativos para a mudança, de modo a complementar o que já havia sido considerado pela teoria. Um desses caminhos é o choque interno: grandes eventos no âmbito do subsistema. Por exemplo, um grande derramamento de petróleo pode iniciar

transformações no subsistema da política energética ao indicar possível falhas na política e ao atrair a atenção pública para a temática. Essas ocorrências são janelas de oportunidades para coalizões desafiantes, uma vez que as estruturas de dominação do setor são colocadas em xeque. Além dos eventos internos, os acordos negociados também são identificados como um dos caminhos alternativos para mudança. Nesse caso, o desafio que se impõe é o de identificar as condições que provocaram a negociação de elementos nucleares de determinada política entre grupos concorrentes, mesmo sem haver nenhum grande evento desencadeador.

O modelo das coalizões de defesa procura complexificar a análise das dinâmicas de transformação ao combinar fatores externos e internos. Com objetivo semelhante, os neoinstitucionalistas têm ressaltado a importância de variáveis institucionais nos processos de mudança. Para os autores dessa escola, as abordagens exógenas atribuem excessivo papel a fatores externos e não consideram de maneira adequada o funcionamento das instituições (REZENDE, 2012). Para esses teóricos, as abordagens exógenas apenas identificam os processos agudos de mudanças, sem perceber a sutileza das mutações que ocorrem gradualmente (THELEN; STREECK, 2005). Para os neoinstitucionalistas, as mudanças institucionais não dependem exclusivamente de conjunturas críticas. Para a comprovação desse argumento, foram construídos modelos incrementais de mudança institucional, que demonstram que, mesmo com a ausência de bruscas rupturas, existem mecanismos que lentamente vão transformando as estruturas, podendo resultar em grandes alterações.

Thelen e Streeck (2005) estão entre os teóricos que elaboram uma explicação da mudança institucional gradual. Para eles, existe uma ampla variedade no modo como as instituições se transformam. Por falta de modelos analíticos adequados, alguns desses processos acabam não sendo percebidos. Para os autores, as mudanças iniciadas por conjunturas críticas não podem ser negligenciadas, mas é preciso ter em vista que transformações graduais não são apenas adaptativas e também podem contribuir para uma grande ruptura.

Os autores elaboram uma tipologia de quatro espécies de mudanças institucionais gradativas e transformadoras. O primeiro tipo, denominado “deslocamento”, ocorre quando dois arranjos institucionais coexistem no mesmo espaço. As ambiguidades decorrentes dessa situação podem levar ao descrédito de um dos arranjos e à sua substituição por outro. O segundo tipo recebe o nome de “sobreposição” e diz respeito às pequenas mudanças que vão se sobrepondo à estrutura institucional enraizada, sem que haja conflito entre as duas. As alterações de menor proporção são inicialmente rotuladas como ajustes, mas sua cumulatividade pode causar grandes transformações. O terceiro tipo é a “erosão”, que decorre da ausência de alterações adaptativas da instituição ao contexto socioeconômico, tornando-a

obsoleta. O quarto tipo é a “conversão” e trata do redirecionamento de um arranjo para o cumprimento de novos propósitos.

É possível notar que, na tipologia de Thelen e Streeck (2005), apesar da ênfase a aspectos institucionais, há a concomitância de elementos endógenos e exógenos. Rezende (2012) indica que a combinação de fatores é o caminho para elaboração de análises mais sofisticadas dos processos de mudança institucional. Posição semelhante é assumida pelos teóricos do campo de ação estratégica. Para Fligstein e McAdam (2012), embora internalismo e externalismo pareçam posturas inconciliáveis, a dinâmica de mudança e a estabilidade nos campos é complexa e diversa, o que implica na possibilidade de ambas perspectivas serem importantes, dependendo das características do processo em análise.

O argumento central defendido por Fligstein e McAdam (2012) é o de que diferentes tipos de mudança são desencadeados por dispositivos distintos. Para o surgimento de novos campos ou para a degeneração de campos existentes, crises externas generalizadas possuem maior relevância. A desestabilização e o questionamento das bases das estruturas intra e intercampos encorajam os desafiadores a organizarem ações estratégicas em busca de transformações. Já em campos estáveis, as mutações podem ocorrer por outra via. A TCAE incorpora o argumento neoinstitucionalista de que, mesmo nos campos estabilizados, as disputas por posições e as mudanças incrementais são uma constante e podem desencadear processos de transformação de maior porte. Em suma, os autores procuram incorporar elementos das duas correntes, destacando que cada modelo se aplica para determinadas condições e proporções, em que a estabilidade dos campos é afetada (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

3.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As conexões teóricas apresentadas nos três eixos que deram estrutura a este capítulo conformaram um arcabouço conceitual capaz de analisar as diversas dimensões relacionadas aos processos de alteração das estruturas de relação de campos de ação estratégica conectados e de emergência de novos espaços sociais dessa natureza. O objetivo do exercício teórico recém exposto foi construir um conjunto de ferramentas que possibilitasse o estudo do processo complexo, que envolveu diversos campos, atores, paradigmas e eventos de formação do campo da política de assistência social.

Na sequência, apresentaremos a realidade empírica que constituiu a base factual para o desenvolvimento do processo analisado. Com essa finalidade, exibiremos um panorama

histórico da proteção social no Brasil, com ênfase nas políticas de previdência e de assistência social e no vínculo entre esses dois setores.

4 A POSIÇÃO DAS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA NA TRAJETÓRIA DA