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4 A POSIÇÃO DAS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA NA TRAJETÓRIA DA

4.2 AS BASES DA FILANTROPIA BRASILEIRA

A constituição da cidadania brasileira iniciada a partir da declaração de independência, em 1822, se deu de maneira truncada. Sob o prisma dos direitos civis, a escravidão se constituía como principal obstáculo para a generalização dos requisitos mínimos de liberdade individual necessários para a consagração de direitos dessa natureza. Pelo contrário, a condição de escravo impunha a uma considerável parcela da população brasileira aquilo que Carvalho (2011) denominou cidadania em negativo. No que concerne os direitos políticos, nota-se um movimento semelhante: consideráveis setores da população estavam excluídos da vida política nacional, especialmente pela adoção do voto censitário, a proibição da participação de analfabetos e as recorrentes práticas fraudulentas durante o processo eleitoral.

Assim como as demais formas, os direitos sociais também se estruturavam de maneira precária. Legislações de proteção ao trabalho eram praticamente inexistentes. As incipientes iniciativas previdenciárias ficavam a cargo de instituições privadas, como as sociedades de auxílios mútuos, antecessoras dos sindicatos modernos. A proteção aos setores mais carentes da população era realizada a partir de ações privadas filantrópicas, que dependiam da iniciativa de setores mais abastados da sociedade, motivados pelo sentimento de caridade e de ajuda ao próximo. O Estado ocupava um papel secundário, subsidiando de maneira residual algumas dessas obras sociais, sem que houvesse qualquer sistematização na distribuição ou intenção de extensão dessas ações para toda a população (CARVALHO, 2011).

A caridade cristã como norteadora de ações benemerentes – elemento estruturante das políticas de assistência social no Brasil – é uma herança deixada pela colonização portuguesa. Gandelman (2005) apresenta alguns elementos característicos da moral cristã portuguesa que impulsionaram a criação de instituições de caridade naquele país e em suas colônias. O fundamento dessa visão de mundo está na preocupação com a “boa morte”, isto é, o destino que alma teria após o perecimento da vida corpórea. Consolidou-se a ideia de que ações na terra influenciariam na salvação da alma. Nesse sentido, as noções de caridade e misericórdia ganham importância.

Duas noções vitais para essa economia da salvação eram a misericórdia e a caridade. Essas noções nos ajudarão a compreender como a fé podia ser expressa em obras. D. Raphael Bluteau definiu o termo “misericórdia”, no início do século XVIII, em seu Vocabulário Português e Latino, como sendo uma “pena d’alma”, uma virtude e um

ânimo de aliviar a miséria alheia. Acompanhada da misericórdia estaria a caridade “virtude teologal, com a qual amamos a Deus por amor dele e ao próximo por amor de Deus”. A noção de misericórdia compreendia, portanto, nas palavras da historiadora Isabel dos Guimarães Sá, “dois usos da ideia de compaixão: a da compaixão pelo semelhante numa situação de sofrimento e a da compaixão-perdão dos pecados que deveria interceder a favor das almas no momento do Juízo Final”. (GANDELMANN, 2005, p. 28).

Tendo como ponto de partida os Evangelhos, foram estabelecidas sete obras espirituais e sete obras corporais que se convencionaram como obras de Misericórdia. São elas: ensinar os ignorantes; dar bom conselho; punir os transgressores, com compreensão; consolar os infelizes; perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e mortos; resgatar cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; e sepultar os defuntos (GANDELMAN, 2005).

As Santas Casas de Misericórdia são instituições que exemplificam a moral cristã lusitana em ação. Criada em 1498, em Lisboa, sob a tutela da família real portuguesa, a Santa Casa de Misericórdia refletiu um momento de modernização das organizações benemerentes do período medieval. Desde a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica, iniciou-se um movimento de reconceitualização da caridade. Questionou-se especialmente a definição do público-alvo das ações benemerentes, criando-se categorias de pobres merecedores e não merecedores. Além disso, buscou-se uma maior racionalização do uso dos recursos dessas instituições, o que resultou em uma maior burocratização da estrutura administrativa e na incorporação de autoridades civis na gestão dessas entidades (FRANCO, 2014; GANDELMAN, 2005). Desde a criação da Santa Casa de Lisboa, a coroa portuguesa concedeu um conjunto de incentivos, além da recomendação expressa do Rei às câmaras das cidades, com o objetivo de proliferar essa instituição no país. Como resultado, a organização se disseminou, tornando-se presente em boa parte do território português. Embora cada Santa Casa tivesse autonomia administrativa, havia influência do poder régio que direcionava para a padronização da atuação dessas organizações.

As Misericórdias também tiveram um papel importante na expansão do império português, fato que foi fundamental para a importação da perspectiva lusitana de caridade para o Brasil. Assim como ocorria em Portugal, a Coroa era ativa na promoção dessas instituições em suas colônias, concedendo privilégios e incentivos fiscais. Boxer (1969, p. 282) coloca as Santas Casas ao lado das Câmaras Coloniais como integrantes do binômio de sustentação administrativa e cultural das colônias portuguesas.

De maneiras diferentes, a Câmara e a Misericórdia forneceram uma forma de representação e de refúgio para todas as classes da sociedade portuguesa. Um estudo destas duas instituições mostra que o bem que fizeram compensou de longe as ocasionais imperfeições de seus membros. As maneiras como o Conselho Municipal e a Santa Casa da Misericórdia se adaptaram a meios tão variados e exóticos desde o Brasil ao Japão, mantendo laços tão estreitos com a suas origens medievais europeias, exemplifica bem o conservantismo, a capacidade de recuperação e a tenacidade dos Portugueses no ultramar.

No Brasil, as primeiras Misericórdias foram fundadas em Olinda (1539) e em Santos (1545). Ao final do século XVI, haviam sido fundadas sete instituições. No século XVII foram criadas mais duas Santas Casas. No decorrer do domínio português, o número de Misericórdias foi sendo elevado paulatinamente, chegando a 25 em 1822 – ano da independência brasileira. A ruptura com a metrópole portuguesa não foi acompanhada de uma transformação na concepção filantrópica de ajuda aos pobres. O padrão português consolidado pelas Misericórdias foi mantido durante o período imperial, o que difere do ocorrido em países vizinhos de colonização espanhola, como a Argentina e o Uruguai, em que as instituições assistenciais foram reformadas a partir das dinâmicas da política local (TOMASCHEWSKI, 2007). No Brasil, o modelo das Misericórdias foi fortalecido, consolidando-se como o principal canal de acesso à assistência médica e material por parte dos mais necessitados. A importância que o governo imperial conferia às Santas Casas era tanta que outras instituições de caridade buscaram adquirir o status de Misericórdia para usufruir das benesses ofertadas pelo Estado (TOMASCHEWSKI, 2007).