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3 A TEORIA DOS CAMPOS DE AÇÃO ESTRATÉGICA E A PRODUÇÃO

3.1 HABILIDADE SOCIAL E AÇÃO COLETIVA

3.1.3 Ideias, atores coletivos e políticas públicas

Tanto na TCAE como nos modelos que utilizam os conceitos de comunidade de políticas e comunidades epistêmicas, as dimensões simbólica e cognitiva estão no cerne da fabricação da ação coletiva. Fligstein e McAdam recorrem aos estudos de movimentos sociais para caracterizar teoricamente a construção de interações cooperativas coordenadas entre um conjunto de atores. O conceito de quadros interpretativos tem origem no interacionismo simbólico de Irving Goffman (1986) e denota esquemas de interpretação que possibilitam a indivíduos e a grupos localizar, identificar, perceber e rotular os fenômenos com os quais se deparam durante a vida social. Os quadros interpretativos são lentes que fornecem uma visão específica da realidade e intermedeiam a interação entre os atores sociais e o mundo que os cerca.

O conceito de quadros interpretativos foi importado para a análise de movimentos sociais com a finalidade de se contrapor às abordagens dominantes na segunda metade do século XX que se restringiam ao aspecto racional e estratégico da ação. O objetivo era incorporar a dimensão interpretativa-cultural nos processos de ação coletiva contestatória. O uso dos quadros interpretativos nos estudos de movimentos sociais foi popularizado pelos trabalhos de David Snow e Robert Benford (SNOW et al, 1986; BENFORD; SNOW, 2000), que destacam um conjunto de mecanismos fundamentais que compõe o processo de enquadramento. Os autores partem do pressuposto de que na base da ação coletiva está o alinhamento de quadros, isto é, a confluência entre os quadros interpretativos dos indivíduos e da organização coletiva. Dessa forma, os movimentos garantem a manutenção de seus integrantes, angariam um maior número de apoiadores e ampliam as possibilidades de sucesso de suas demandas. Esse alinhamento é resultado da agência de empreendedores de movimentos sociais.

Em seu conteúdo, os quadros interpretativos da ação coletiva são compostos por três dimensões básicas: o diagnóstico, o prognóstico e a motivação. O enquadramento de diagnóstico oferece uma interpretação específica da realidade. Por meio dele, se identificam problemas sociais a serem enfrentados, suas causas e culpados e o mapeamento de inimigos e

aliados. No enquadramento de prognóstico são definidas as soluções para os problemas sociais contra os quais se luta e as melhores estratégias e ferramentas para a sua superação. O enquadramento motivacional tem como finalidade a construção de mensagens que estimulem o engajamento por parte do integrante do grupo (SNOW et al, 1986; BENFORD; SNOW, 2000).

De modo geral, os quadros interpretativos fornecem elementos simbólicos para a organização de interesses e identidades que viabilizam a formação de coalizões entre indivíduos. Nesse sentido, as elaborações de Snow e Benford vão ao encontro do entendimento da TCAE a respeito da relevância da dimensão simbólica na dinâmica social e da função de atores habilidosos na articulação de ações coletivas. Os quadros interpretativos são o veículo pelo qual atores habilidosos agregam um conjunto de indivíduos que compartilham um conjunto de elementos normativos e cognitivos. Ao fabricar e disseminar esses quadros, os atores habilidosos viabilizam que indivíduos atuem de maneira coordenada, orientados por princípios e objetivos em comum, conformando, assim, atores coletivos.

Um movimento semelhante de valorização das dimensões simbólicas da ação em oposição às teorias amparadas exclusivamente na racionalidade utilitária também ocorreu na análise de políticas públicas. A partir da década de 1980, emergiram um conjunto de modelos analíticos que valorizavam o papel das ideias na construção das explicações acerca do processo de políticas públicas. Essas perspectivas rejeitavam as abordagens que entendiam as políticas públicas como o resultado da busca pela solução “mais eficiente”, fruto de um cálculo racional de seus formuladores e as perspectivas que se restringiam às disputas de poder e à motivação do autointeresse por parte dos atores envolvidos no processo. A incorporação da dimensão ideacional tem como objetivo demonstrar como aspectos culturais e simbólicos possuem poder causal na produção de outcomes políticos. Mais uma vez podemos identificar um ponto de aproximação com a TCAE. O modelo de indivíduo apresentado por Fligstein e McAdam (2012) está ancorado na produção simbólica coletiva como marca distintiva da humanidade em contraposição ao modelo de homo economicus das teorias da escolha racional. Logo, ignorar o componente simbólico de qualquer processo social implica em deixar de lado a característica fundante do comportamento humano. Esse pressuposto é compartilhado com as abordagens ideacionais de políticas públicas.

Apesar da contribuição analítica oferecida pelos modelos que incorporam aspectos ideacionais, usualmente a noção de ideia foi apresentada de maneira amorfa ou com definições insuficientes. Ao realizar um balanço dessas abordagens, John (1999) destaca que ideias podem ser tratadas como concepções de mundo, formas de conhecimento, crenças e normas. Os

modelos teóricos que incorporam a dimensão ideacional como um elemento central na produção de suas explicações que foram mais disseminados são aqueles que, de alguma forma, combinam a importância das ideias com outros aspectos valorizados por teorias mais consolidadas na área temática. Faria (2003), ao realizar um rescaldo dessas vertentes analíticas, destaca algumas abordagens que guardam proximidade com a TCAE. Encaixam-se nessa perspectiva os modelos de coalização de defesa e fluxos múltiplos e da noção comunidades epistêmicas.

A primeira delas, o modelo das coalizões de defesa, supracitado neste capítulo, considera o compartilhamento de um sistema de crenças como o catalizador para a formação de uma coalizão. Esses sistemas de crença forneceriam instrumentos simbólicos e discursivos para formulação de leituras de conjuntura, construção de objetivos e instrumentos para a concretização de suas metas. Os sistemas de crença se estruturam em três camadas: núcleo de crenças profundas, o núcleo de crenças da política e o núcleo instrumental. Na camada das crenças profundas, localizam-se concepções amplas a respeito do funcionamento da realidade social para além dos limites temáticos do subsistema. O núcleo intermediário agrega as crenças gerais conectadas às disputas do subsistema. Na camada instrumental situam-se métodos e ferramentas para a implementação das ações e concretização dos objetivos estabelecidos no nível intermediário. Os autores destacam que, via de regra, há um encadeamento coerente entre as três camadas. No entanto, não descartam a possibilidade de contradições entre os níveis em casos circunstanciais (SABATIER; WEIBLE, 2007).

O segundo modelo destacado por Faria (2003) é o dos fluxos múltiplos. Essa abordagem – também já explorada neste capítulo – considera a relevância das ideias no ciclo das políticas públicas, com destaque para os procedimentos de definição de agenda. As ideias ocupam duas funções básicas. A primeira é a possibilidade de persuasão. Kingdon (1995) salienta as circunstâncias ambíguas, limitadoras da racionalidade, em que são produzidas as políticas públicas. Nesse contexto, o convencimento é mais relevante do que a suposta eficiência de alternativas em pauta. Os componentes ideacionais também são utilizados como guias de percepção e ação para os atores envolvidos. Por meio das ideias, indivíduos e grupos conferem ordem a um ambiente caótico e dão sentido às suas estratégias. Sendo assim, os empreendedores de política trabalham tanto na construção simbólica de problemas, soluções, leituras de contexto e estratégias de ação como no convencimento dos demais para aderir à determinada perspectiva defendida. Dessa forma, quando do surgimento de um contexto favorável, o alinhamento de dos fluxos de problema, solução e disputa política será facilitado.

Faria (2003) também reconhece na discussão sobre comunidades epistêmicas uma perspectiva teórica que valoriza a dimensão simbólica e cognitiva de maneira articulada com

outros modelos de análise de políticas públicas mais reconhecidos como, por exemplo, a abordagem das redes de políticas públicas. Comunidades epistêmicas são redes de especialistas que se aglutinam a partir do compartilhamento de noções cognitivas oriundas do seu domínio de conhecimento e noções normativas sobre o que deve ser a política pública em questão (HAAS, 1992). Em síntese, as ideais compartilhadas por comunidades epistêmicas são caracterizadas da seguinte forma:

(a) um conjunto de crenças normativas e principled, que fornece uma racionalidade baseada em valores (value-based rationale) para a ação social dos membros da comunidade; (b) determinadas crenças acerca de relações causa-efeito específicas, derivadas de suas análises de práticas que contribuem para a solução de um “conjunto central de problemas em sua área e que servem como base para a elucidação dos múltiplos vínculos entre políticas e ações possíveis e os resultados desejados”; (c) noções de validade, ou seja, critérios definidos internamente e de maneira intersubjetiva para a avaliação e a validação do conhecimento no domínio de sua especialidade; e (d) “um policy enterprise comum, ou seja, um conjunto de práticas compartilhadas associadas a um conjunto de problemas para os quais a sua competência profissional é dirigida, presumivelmente com base na convicção de que, como uma consequência, o bem-estar humano será promovido” (FARIA, 2003, p. 27).

Conforme explicitamos anteriormente, comunidades de políticas também são atores coletivos que participam das redes temáticas buscando influenciar a formulação das políticas e de seus resultados, a partir dos interesses, normas e crenças que compartilham. Nesta pesquisa, recorremos à noção de paradigma de políticas com o objetivo de incorporar à análise o compartilhamento de um conjunto de concepções normativas e cognitivas por comunidades de política. Os quadros cognitivos pelos quais os atores interpretam sua realidade são fundamentais para o entendimento de ação de indivíduos e grupos. Os atores carregam consigo modelos cognitivos sobre a realidade e, a partir deles, constituem seus interesses materiais e ideacionais.

Em suma, um paradigma de políticas é um modelo de realidade que guia os participantes do processo de formulação de políticas públicas, podendo ser compartidos e contestados por indivíduos ou grupos. Assim como o paradigma científico de Thomas Kuhn (1998) fornece elementos para que se determinem quais são os problemas relevantes para ciência, os paradigmas de políticas são fundamentais para que os atores engajados numa rede temática de políticas públicas definam, a partir do arcabouço conceitual fornecido, o que é considerado um problema social passível de ser alvo de política pública. De acordo com Carson et al. (2009, p. 17),

[...] um paradigma de políticas representa um quadro conceitual compartilhado pelo qual os adeptos visualizam como as coisas devem ser, como o mundo funciona, e como são definidos os tipos de questões que devem ser considerados como problemas sociais. Esse quadro conceitual ajuda a impor a ordem em um ambiente caótico em que os atores envolvidos em fazer ou influenciar as políticas públicas são frequentemente obrigados a tomar decisões com conhecimento limitado, informações

inadequadas ou contraditórias, e muitas vezes em um período de tempo relativamente curto.

Para a operacionalização desse conceito, adotamos a concepção de Campbell (1998), que distribui as ideias de um paradigma em dois níveis: o cognitivo – que se refere às concepções sobre o funcionamento do mundo como ele é – e o normativo – que agrega julgamentos valorativos de como o mundo deveria ser. A partir desses dois níveis são concebidos problemas sociais e instrumentos de resolução que orientam atores no decorrer do processo de políticas públicas. A opção pelo conceito de paradigmas de políticas para englobar os aspectos ideacionais relevantes para a análise proposta ocorre pela possibilidade de explicitar os elementos conceituais e as noções de resoluções de problemas que podem ser corporificadas por arranjos institucionais.

Após considerar como a concepção de agência coletiva advogada pela TCAE pode se articular com os modelos de análise de políticas públicas, realizaremos uma digressão semelhante com o objetivo de demonstrar que o mesmo pode ser operacionalizado com as dimensões macroestruturais da teoria de Filgstein e McAdam.