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3 A TEORIA DOS CAMPOS DE AÇÃO ESTRATÉGICA E A PRODUÇÃO

3.2 RELACIONAMENTO ENTRE CAMPOS E A NOÇÃO DE ESTADO

A TCAE não se limita ao delineamento da perspectiva de ação que norteia as dinâmicas internas dos campos de ação estratégica. Os autores também se dedicam a explorar os macrofatores ambientais que podem afetar os processos de emergência, estabilização, transformação e extinção de ordens sociais de nível meso. Tal posicionamento teórico diverge de teorias dos campos mais consagradas, como é o caso da formulação de Pierre Bourdieu, caracterizadas por Fligstein e McAdam como “campocêntricas”, isto é, possuidoras de um viés teórico que atribui quase exclusivamente a fatores internos o poder causal de formatação de um campo. Um dos elementos fundamentais do novo posicionamento proposto pela TCAE é a relação entre campos. Sem desconhecer a autonomia e a dinâmica interna dessas arenas, os autores argumentam que os campos estão inseridos em uma rede complexa de outros campos e que, para entender o seu funcionamento, é necessário considerar suas conexões com esse ambiente mais amplo. O contexto no qual o campo está imerso afeta inclusive as possibilidades de estabilidade ou transformação nesses espaços (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

A relação entre campos se estabelece com membros desses campos que constituem contatos entre si. Esse vínculo pode estar motivado por inúmeros fatores, dentre os quais estão a dependência de recursos, a aliança entre seus componentes, o compartilhamento de poder, os

fluxos de informação e a legitimidade. As relações também variam de acordo com a sua natureza, podendo ser dependentes, quando campos menores estão inseridos em campos maiores; interdependentes, quando os campos compartilham relações sem haver pertencimento; e desconectadas, quando não há nenhuma interação entre as ordens sociais (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

As relações dependentes podem ser ilustradas pela metáfora da boneca russa: um campo maior comporta outros campos menores. Por exemplo, tanto uma empresa como seus departamentos podem ser considerados campos. Nesse caso, a empresa seria o campo maior e os departamentos seriam campos menores inseridos no campo mais amplo. A relação de dependência é marcada pela hierarquia formalizada. Normalmente, o campo mais amplo é legitimado como detentor de autoridade sobre os demais. No exemplo da empresa, a diretoria- geral exerce autoridade sobre os departamentos. Cabe ressaltar que, mesmo havendo relação hierárquica de dependência, cada campo possui uma dinâmica própria e uma relativa autonomia que varia em função das particularidades do contexto no qual ele está inserido (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

Já nas relações interdependentes não há a inserção de um campo em outro, embora os campos estejam conectados. O fato de a conexão entre campos ser interdependente não significa que não haja hierarquia e assimetria de poder entre eles (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012). Para esclarecer esse tipo de fenômeno, os autores recorrem ao caso da Organização das Nações Unidas (ONU), espaço em que inúmeros países estabelecem uma rede de vínculos cooperativos. Não há relação de pertencimento entre os países, uma vez que são nações que gozam de independência. No entanto, a ausência de dependência não implica na inexistência de hierarquia. Nações como Estados Unidos, China e Alemanha possuem maior capacidade de influência em comparação com países de menor poderio econômico e militar. Portanto, há uma evidente assimetria de poder entre os países membros da ONU, que exemplifica a hierarquia imbricada nas relações interdependentes entre campos.8

O estudo da mudança em campos de ação estratégica necessita considerar o conjunto de relações às quais esses espaços estão submetidos. Para isso, deve-se considerar tanto a quantidade como a natureza e o conteúdo dos vínculos. Ao contrário do que uma aproximação precipitada possa concluir, nem sempre o campo com maior número de conexões está mais sujeito a instabilidades. Por vezes, o grau de dependência entre os campos é mais relevante do

8 Apesar de não haver referência direta por parte dos autores, as noções de rede interdependente de campos e de balança de poder relacional remetem ao conceito de figuração elaborado por Norbert Elias (1970; 1994) e explanada no primeiro capítulo desta tese.

que o número de ligações. Um campo que possua apenas uma relação de dependência de recursos com outro campo certamente será afetado quando houver alguma instabilidade na arena da qual ele depende. Porém, se a dependência de recursos for repartida com outros campos, modificações em apenas um deles pouco abalaria as estruturas do campo dependente, pois seriam compensadas pelas demais conexões. Nesse caso, o maior número de vínculos é fonte de estabilidade para o campo (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

Um aspecto não abordado pelos teóricos da TCAE no detalhamento da dimensão macroestrutural de sua perspectiva é o relacionamento entre campos por meio da circulação de indivíduos por distintas arenas. O multipertencimento de atores a diversos campos é um fator essencial para análise não apenas das interconexões entre essas ordens sociais, mas também da relação entre Estado e sociedade. A TCAE falha ao não comportar uma interação mais fluida entre as duas esferas. O modo de conceituar o Estado de maneira apartada dos campos societais, mesmo que seja considerada a relação entre eles, corrobora com uma visão dualista que estabelece fronteiras rígidas entre Estado e sociedade e que ignora a complexidade da circulação de atores por ambos. Para superar essa limitação incorporamos à perspectiva o conceito de permeabilidade.

Com o conceito de permeabilidade, entende-se que as esferas estatais e não estatais não se constituem de maneira autorreferente, sem vínculos com atores, processos e elementos de outras esferas. Ao contrário, permeabilidade pressupõe que as “fronteiras” entre estas esferas são, em maior ou menor grau, diluídas por vínculos entre atores com distintas inserções institucionais, gerando um processo recíproco e contínuo de influências e dependências (MÜLLER et al., 2012, p. 114).

O conceito de permeabilidade do estado é elaborado por Eduardo Marques (1999, 2006), que utiliza a análise de redes com o objetivo de caracterizar padrões de relação entre os âmbitos privado e estatal na construção de políticas públicas. Essa noção vem sendo adotada pelos estudos de movimentos sociais com a finalidade de compreender a estratégia de inserção estatal adotada por alguns movimentos como forma de concretização de suas demandas. A incorporação dessa perspectiva enfrenta o essencialismo que ignora as relações fluidas entre as esferas estatal e societal e foge de perspectivas valorativas, que tratavam a penetração de atores de movimentos sociais em espaços do Estado nos termos de “cooptação”.

Os conceitos utilizados para caracterizar os atores coletivos nos processos de políticas públicas incorporam a ideia de permeabilidade como pressuposto. Comunidades de políticas, comunidades epistêmicas e coalizões de defesa salientam que esses atores podem ser compostos por indivíduos localizados em espaços estatais, societais e de mercado e que essas posições podem variar no decorrer do tempo. No entanto, o que é perene é a defesa por parte desses

indivíduos das crenças norteadoras do ator coletivo ao qual se vinculam. Ou seja, independente do posto circunstancial ocupado por um indivíduo, sua atuação será pautada pelo conjunto de ideais que ele defende e pelas estratégias concebidas por ele e seus aliados. Assim sendo, para analisar a relação entre campos – em especial, entre campos estatais e societais – é preciso incorporar a circulação de atores como uma fonte de intercâmbio entre campos.

O entendimento de Estado defendido pela TCAE também é caracterizado pela ausência de uma perspectiva mais fluida na relação deste com o ambiente societal. Para Fligstein e McAdam (2012), o Estado é um sistema de campos ao qual as formulações gerais da teoria podem ser aplicadas. A principal diferença entre campos estatais e não estatais está na autoridade que o Estado possui para definir as regras de interação pública. Devido à capacidade de formular e impor normas, os campos estatais podem moldar mudanças e estabilidades em campos não estatais. Contudo, isso não significa que campos não estatais não possuem influência sobre a estrutura de campos que conforma o Estado. A partir das diversas formas de relação entre Estado e sociedade, atores societais podem pressionar por redefinições na forma de organização estatal, acarretando na possível constituição de novos campos nessa esfera. Transformações na sociedade podem obrigar o Estado a reestruturar seus campos para regular os novos aspectos da vida social. Portanto, para compreensão do surgimento de novos campos do Estado, deve-se considerar, além da relação entre os campos estatais existentes, a interação com os campos não estatais (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).

A criação de campos estatais também pode decorrer da extensão de novos direitos ou de novas legislações.

Um conjunto de novos campos estatais emerge como um produto indireto da expansão da regulação legal para novas arenas e grupos da sociedade. A conferência de novos direitos e proteções legais é inevitavelmente acompanhada por conflitos e disputas e pela criação de um novo campo estatal para salvaguardar os ganhos atingidos. (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012, p. 69).

Em circunstâncias como essa, a compreensão sobre o processo de surgimento de um novo campo estatal depende do mapeamento da demanda por um novo direito. Deve-se, portanto, evitar a armadilha do pluralismo ingênuo que coloca na sociedade o ponto de partida de qualquer demanda e a atuação estatal como mero resultado das pressões sociais. A TCAE não descarta a possibilidade de um processo de expansão de direitos ter origem no âmbito social. No entanto, é preciso estar atento à complexidade da relação entre campos estatais e não estatais. Esse aspecto é de especial importância para a presente pesquisa, já que o surgimento do campo da política de assistência social no Estado brasileiro foi desencadeado a partir da

elaboração de um novo regramento legislativo que atribuiu novos direitos e redefiniu o modo como o setor da política de assistência social era tratado pelo Estado brasileiro.

Ao analisarmos a definição de Estado para a TCAE é importante atentar para o fato de que não há espaço para a sobreposição de Estado e sociedade dentro de um mesmo campo, encarando de maneira essencialista a divisão entre as duas esferas. O construto teórico oferecido se limita a avaliar as possibilidades de interação entre campos exclusivamente estatais ou societais. Essa fixidez conceitual limita a capacidade explicativa dessa teoria, pois não comporta a fluidez existente entre os dois âmbitos encontrada, por exemplo, em processos de políticas públicas, que envolvem uma ampla gama de atores oriundos de diversos espaços sociais engajados em uma mesma arena, que é efetivamente caracterizado pela literatura que aborda a produção setorializada de políticas públicas. Nesse sentido, com a finalidade de superar a lacuna deixada pela TCAE, tendo como referência interpretações mais relacionais acerca do processo de produção de políticas públicas, adotamos o termo campo de políticas públicas para conceituar os espaços de nível meso, cujo objeto de disputa são políticas públicas sobre uma determinada área ou temática. Campos de políticas públicas são espaços construídos por relações sociais que não respeitam as fronteiras entre sociedade e Estado, mas que tem como elemento central de interação as ações estatais em um âmbito específico – no caso concreto em análise, a assistência social.

Apesar da insuficiência de suas ferramentas de interpretação da relação entre Estado e sociedade, a noção do Estado como um complexo de campo da TCAE se aproxima de alguns modelos de análise de políticas públicas ao atentar para a produção das ações estatais por esferas setorializadas com relativa autonomia e dinâmica própria. Com o crescimento da organização do Estado e da complexidade da sociedade, a construção das decisões políticas não ocorre mais em lugares centrais tradicionalmente definidos, como o parlamento e os partidos políticos, mas sim em subsistemas descentralizados que reúnem uma miríade de atores interessados em influenciar as políticas públicas de um determinado setor (JOHN, 1999). Um processo semelhante a esse é denominado por Jordan (1990) de subgoverno: os centros de atividades nos quais atores especializados e com interesses em uma área operam em um processo complexo, devido ao mosaico de grupos envolvidos, e informal, pois se distingue dos espaços tradicionais da política.

A difusão dessa perspectiva na análise de políticas públicas é tão grande que abundam definições teóricas para caracterizar esse fenômeno. Ao tratar desse aspecto, Borzel (1998) alerta para os problemas evocados pela “babilônia” de conceitos voltados para análise da produção setorializada de políticas públicas, especialmente pela grande quantidade de

denominações para o mesmo fenômeno e pela conceitualização de fenômenos distintos pela mesma categoria. Tanto as noções de subsistema vinculadas às perspectivas da coalizão de defesa, do equilíbrio pontuado, como os conceitos de comunidades de políticas e comunidades epistêmicas, mais próximos aos modelos de redes de políticas, estão ancorados no pressuposto de fragmentação temática do processo de políticas públicas. No entanto, apesar de à primeira vista as noções de subsistema e redes de política parecerem intercambiáveis, é importante considerar que esses dois conceitos são oriundos de matrizes ontológicas distintas. A noção de subsistema remete ao estrutural-funcionalismo parsoniano e à teoria dos sistemas de Niklas Luhman.9 Isso implica no entendimento de que o setor no qual são produzidas as políticas públicas tendem à estabilidade. Esse aspecto está presente tanto no modelo do equilíbrio pontuado, em que o subsistema é caracterizado por longos períodos de reprodução interrompidos por períodos curtos de transformação provocados por circunstância não corriqueira, como na teoria das coalizões de defesa, que também salienta as conjunturas particulares na qual a estabilidade pode ser quebrada. Já a perspectiva de redes de políticas públicas está vinculada à ontologia relacional. Nesse caso, o enfoque recai sobre como a estrutura de relações estabelecidas pelos atores e o fluxo de informação e recursos que circulam por essas relações formatam os fenômenos sociais em análise.

A diversidade de matrizes ontológicas não significa que essas perspectivas são incompatíveis. Pelo contrário, o objetivo em comum de compreender a formulação de políticas públicas em ambientes setoriais proporciona um contexto favorável ao intercâmbio entre as diferentes correntes de análise. Contudo, essa ressalva é indispensável para o exercício teórico de construção de pontes entre a TCAE e diversos modelos de análise de políticas públicas. A importação conceitual deve sempre considerar as raízes epistemológicas e ontológicas das categorias mobilizadas, sob pena de construção de um modelo analítico incoerente que reúna concepções incompatíveis.

3.3 QUEBRA DE ESTABILIDADE E MUDANÇA NOS CAMPOS DE AÇÃO