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A sexualidade e as mulheres, entre a domesticidade e a beleza

CAPÍTULO 2. A Sexualidade e o Prazer

1. Representações em torno da sexualidade

1.2. A sexualidade e as mulheres, entre a domesticidade e a beleza

Em Portugal, uma abordagem feita por José Pacheco (2000) sobre a evolução da sexualidade ao longo da história portuguesa, desde o século VIII até à actualidade, leva-nos

49 a uma interessante viagem pel‘O Sexo por Cá. Neste interessante livro, a abordagem do papel social e sexual da mulher vai-se desenhando, ao longo dos séculos, e pouco ou nada vai mudando, exceptuando na actualidade.

Ao longo dos séculos VIII-IX e X-XI, as mulheres tinham um papel social importante na transmissão de heranças. Neste contexto, preparavam-se para o casamento, não por opção, mas por obrigação e imposição familiar, com o único e exclusivo objectivo de manter a integridade das heranças familiares, ou se possível incrementá-las. Além disso, a sua função de esposas dedicadas e mães de família exemplares, cuja capacidade de reprodução era de suma importância para a perpetuação das famílias e, consequentemente, para a continuidade das gerações, colocava a mulher numa relativa importância social naquela época.

A partir do século XII, com a instituição da sucessão do primeiro filho homem (varão) na herança, com a discriminação dos segundos filhos e das mulheres, para evitar a divisão do espólio familiar, a mulher foi destituída desta importante manutenção dos bens económicos das famílias nobres, e passou ter um papel único e exclusivo, o da procriação. Segundo o autor, a mulher ―limitava-se a constituir um ‗instrumento‘ de perpetuação, por via reprodutiva, das estratégias concebidas no sentido de aumentar e preservar, através de alianças e de disputas, o poder económico, político e simbólico‖ (Pacheco, 2000: 11).

No século XIX e por altura do Estado Novo, a família assume uma vital importância no sentido de ser a base da harmonia social, sendo a transmissão e manutenção dos bons costumes da responsabilidade da mulher. A mulher era a responsável pela harmonia familiar, sendo o sagrado papel da maternidade e da educação dos filhos para o Bem o seu grande papel social. Tal missão era incompatível com a presença da mulher no ciclo social e com a sua integração em postos de trabalho (Pacheco, 2000; Torres, 2000).

Daqui facilmente se depreende que a sexualidade da mulher só teria sentido com o casamento e com a procriação. O comportamento feminino deveria ser exemplar, gracioso e recatado, e não poderia existir intenção de desejo ou prazer pelo sexo oposto, mesmo que fosse pelo seu marido. Os critérios de beleza física não eram valorizados, já que a beleza passava pela virgindade e pelo recato como atributos femininos, contrariamente, aos homens era incentivado que demonstrassem a sua virilidade e potência, já as ―mulheres

50 luxuriosas, desavergonhadas, adulterinas, perdidas‖ (Pacheco, 2000: 37) deveriam ser preteridas se se quisesse um casamento harmonioso.

Até aos anos 60, o casamento tradicional proliferou em Portugal, mais ou menos nos moldes da fidelidade, compreensão feminina, abnegação e dedicação, como constituição da solidez familiar e manutenção da capacidade procriativa. Contudo, a mulher começa a escolher o seu parceiro em função de dois critérios – beleza e força, e o homem de acordo com o aspecto físico, as qualidades morais e o despertar dos seus desejos sexuais pelo sexo oposto (Pacheco, 2000).

Só nos finais da década de 1970 é que surge a verdadeira mudança na relação homem/mulher, no que diz respeito ao domínio do primeiro sobre a segunda. A mulher deixou de depender económica e socialmente do homem, deixando de se exercer o poder absoluto deste último sobre a mulher. A gestão doméstica deixou de ser exclusivamente tarefa feminina, pois o homem passou a intervir mais activamente neste plano.

O amor, o desejo sexual e a sensualidade passam a ser importantes na relação do casal. As dicotomias homem activo/mulher passiva passam a ser relativas, quer na escolha do parceiro, quer na tomada de iniciativa de um relacionamento. A liberalização de todas as formas de conjugalidade passou a fazer parte da sociedade portuguesa.

A beleza feminina e a juventude como ícones da sexualidade

Tal como Naomi Wolf (1994) afirma, o mito da beleza veio substituir, em parte, o conceito da domesticidade da mulher, que vigorou com grande força no pós-guerra. Numa visão muito actual, a mulher irrompeu pela esfera pública e libertou-se, conquistando direitos legais, sociais e de educação, controlando a sua fertilidade/maternidade, conseguindo a sua independência económica, ocupando lugares em profissões outrora interditas às mulheres e alterando o seu posicionamento na sociedade. Mas esta liberdade está condicionada, porque, tal como argumenta Wolf (1994), a par das alterações legais a favor da igualdade, tudo parece indicar que as imagens da beleza feminina ainda são mais cruéis e opressivas e, portanto, inatingíveis.

Este condicionalismo de beleza, da construção social do corpo firme e perfeito, da visão da mulher sensual e objecto de desejo, da moda feminina, da aceitação social do seu sucesso profissional em função da sua apresentação física espectacular, faz renascer o

51 controlo social do papel da mulher e coloca as mulheres em posições de absoluto terror em envelhecer, por medo de perder o controlo da sua vida pessoal, profissional e social. Os conceitos de beleza criados como ―universais e objectivos‖ (Wolf, 1994: 14), não o são na realidade, mas são transmitidos como se o fossem, nesta sociedade ocidental, para que permaneça a dominação masculina sobre o feminino. Surge, então, uma nova forma de repressão sexual.

Já não se associa a mulher à esfera privada e à domesticidade, já não se valoriza a mulher pelo seu desempenho no cuidar da casa, dos filhos e da família, mas sim pela sua exposição social, como objecto de desejo, de sensualidade e de perfeição física, aliada também à inteligência, educação e capacidade de ser independente, liberal e de se tornar numa linda super-mulher. Encontramos a perspectiva do: sempre à procura do inatingível…e algo mais.

A identidade feminina passa a estar associada à beleza física, o que fragiliza ainda mais a visão social da mulher, uma vez que interfere directamente com uma das mais poderosas formas de equilíbrio do indivíduo – o amor-próprio (Wolf, 1994). A sexualidade centraliza- se no corpo, como objecto de desejo e como discurso (Macedo e Amaral, 2005; Marques, 2001).

Controlar o conceito de beleza implica interferir com o amor-próprio de cada um/a, com a construção de uma imagem positiva ou negativa de si mesmo/a em função do que os outros julgam, constitui uma forma de repressão sexual e de subjugação da mulher e, consequentemente, de um controle da liberdade feminina que foi sendo conquistada ao longo de décadas e décadas.

Apesar de tomar contornos distintos de outras formas de repressão sexual da mulher, o mito e culto da beleza tem uma base e uma mesma finalidade: a economia do consumo. Isto é, o actual conceito de beleza, de corpo perfeito e eternamente jovem, abre as portas a inúmeras indústrias, como a dietética, a cosmética, a cirurgia plástica, a pornografia, os ginásios, os spas, os produtos alternativos às plásticas, a moda, etc. Os apelos ao consumismo em massa, para a aquisição de determinados produtos de manutenção ou prolongamento da beleza, nos diferentes ciclos da vida feminina, poderão suportar as condutas sociais de valorização da beleza feminina, na sociedade ocidental, de acordo com Wolf:

52 Quando o valor social básico da mulher deixou de ser a realização da

domesticidade virtuosa, o mito da beleza fez com que o novo valor principal fosse a consecução da beleza virtuosa. O objectivo era introduzir um novo imperativo consumista e uma nova justificação para a injustiça económica no trabalho, onde os anteriores viam perdido o seu domínio sobre as mulheres recentemente libertadas. (1994: 23)

Da instabilidade pessoal nasce a necessidade de as mulheres investirem em si próprias; ao investir estão a consumir; ao consumir move-se o motor da economia. É assim que se vive em sociedade e se é diariamente aliciado para ser e estar em sociedade. Esta condução em massa é o princípio básico de actuação da publicidade feita pelas diferentes indústrias em geral, e pelas indústrias farmacêuticas e de cosméticos, clínicas de beleza e de nutrição, entre outros, em particular.

Assim, a sociedade continua a moderar e controlar o impulso sexual das mulheres (Wolf, 1994). Deixaram-se para trás os estereótipos baseados na diferença entre os sexos e passamos a ter os estereótipos associados aos atributos físicos, mantendo-se os juízos e os valores masculinos em relação às mulheres. O reforço da mulher que serve o homem, não devendo obter daí nenhum prazer sexual pois é pecado, foi efectivamente da responsabilidade da Igreja, que sempre sustentou a imagem da mulher como imaculada, casta, subserviente e sofredora. A mulher ideal não deveria ter sexualidade, seria um ser assexuado, não devia deixar-se cair em tentação, caso contrário seria considerada como uma depravada, pecadora e ―mulher-diabo‖. Este interesse, desde há muitos séculos, em destruir a sexualidade feminina, ou em acreditar que a mulher é um ser assexuado, cujo objectivo único se prende com a procriação e maternidade, sendo esse o seu papel em sociedade. A inculcação da culpa e da vergonha do próprio corpo e da sua sexualidade, que foi contrariado com as lutas feministas, renasce na actualidade com o culto da beleza, embora de forma diferente.

Ao ver publicadas imagens de mulheres belas, de corpos perfeitos desnudados e em posições sensuais, a leitora comum de uma qualquer revista deste género deseja ser e sentir-se assim. Quer ter um aspecto semelhante e assim cultiva a insegurança e repulsa pelo seu próprio corpo, deixando de ter poder sobre si mesma. A beleza castra a sexualidade feminina livre e diminui a auto-estima da mulher. Ou seja, a obsessão pela beleza sexual e pelo corpo perfeito destrói a sexualidade saudável, autêntica e individual de

53 cada mulher. A vergonha apodera-se das mulheres e estas não conseguem assumir o corpo e a imagem como naturalmente diferentes e simultaneamente belas. Segundo Márcia Germaine Hutchinson, citada por Wolf (1994), 65% das mulheres não gostam do seu corpo e têm uma auto-estima diminuída.

Logo, se a estrutura do Poder se apoia na divulgação de imagens carregadas de simbolismo sexual violento, adultera a representação social do desejo feminino e das relações entre ambos os sexos, pois ―segue sendo evidente que há um duplo critério de avaliação em relação à nudez de homens e mulheres na cultura geral onde se reforçam as desigualdades do poder‖ (Wolf, 1994: 179), então a associação da beleza e do seu culto à pornografia não explícita, com exploração da sensualidade e do desejo, quando se colocam imagens de lindas mulheres seminuas em poses provocantes, surge para promover os mais variados produtos e técnicas de beleza. E a publicação de imagens sugestivas de sadomasoquismo reforça, ainda que subtilmente, a divulgação da ideia de dominação do masculino sobre o feminino, reforçam a desigualdade do poder entre homens e mulheres.

É aquilo que Wolf define como alienação heterossexual. A individualidade sexual, a construção e o direito à sexualidade ficam ameaçadas por esta alienação heterossexual, contrariando-se os movimentos de auto-afirmação e emancipação da mulher (Susan G. Gole, apud Wolf, 1994), aumentando o gap entre homens e mulheres. Inicialmente, este afastamento foi motivado pela construção social baseada no determinismo biológico, pela criação de leis desiguais, pela imposição religiosa e pela dependência económica, que actualmente tem pouca influência.

A ―imagem‖ é clara e pode ter duas facetas. Existe uma que corresponde à manipulação das mulheres para a condicionar e reconduzir o seu papel social, e existe outra ―imagem‖ da mulher que assume esse controlo, que tem poder, mas que é readaptada para desempenhar e actuar como os homens.

Nos anos 60, e em Portugal após os anos 80, as mulheres ocuparam lugares de poder, aumentaram a massa laboral, controlavam o seu corpo, abriam-se as portas para uma sexualidade feminina expressiva e intimista. Mas rapidamente esta sexualidade passou a ser exposta, com o aparecimento de uma moda que expunha o corpo. As imagens das mulheres nos media eram mais desnudadas, com corpos mais despidos, o que reabilitou a ―armadura sexual das mulheres‖ (Wolf, 1994: 173).

54 Seria necessária uma desconstrução social da dominação masculina para que as mulheres renascessem em igualdade de relações para com os outros. Este radicalismo destruiria a sociedade tal como ela se apresenta hoje, significaria um novo começo para a história da humanidade, uma nova história poderia ser escrita, mas isso significaria a destruição económica e política, pois, segundo Wolf (1994), uma satisfação sexual permanente diminui radicalmente o consumismo desenfreado. Isto significa que a promoção da insegurança sexual através da fomentação da desigualdade sexual, da insatisfação com o corpo, da efemeridade das relações, é a chave para a manutenção da economia de consumo e da estrutura do poder actual.

Depois desta abordagem da problemática da sexualidade, consideramos importante focarmo-nos especificamente na repressão sexual, já que esta dimensão constituiu um traço dominante da construção social da sexualidade, ainda mais acentuada para as mulheres.