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Menopausa como porta aberta para os distúrbios psicológicos

CAPÍTULO 6. Discursos acerca da menopausa na Maria

2. Campos discursivos em torno da menopausa

2.4. A construção social da menopausa como um problema de saúde

2.4.3. Menopausa como porta aberta para os distúrbios psicológicos

Os distúrbios psicológicos são frequentemente abordados como característicos das mulheres, fundamentados num discurso médico secular de atribuição dos histerismos, irritabilidades e labilidades emocionais às mulheres (Barbre, 2003; Le Goff, 1985). Na análise de discurso efectuada aos números da revista Maria, encontramos uma associação entre menopausa e a ―quase ligação directa‖ à panóplia de problemas psicológicos, como podemos perscrutar neste excerto retirado da resposta a uma carta de leitora, cujo título tão simplesmente é Estrógenos [sic]:

Segundo as mais recentes pesquisas neste campo, uma terapia à base de estrogénos pode não só prevenir os distúrbios psicológicos da mulher mas também, em certos casos, melhorá-los mesmo se estes já se fizerem sentir. A terapia deve começar logo que a mulher começa a sentir os primeiros sintomas climatéricos. Uma pesquisa neste campo foi realizada em Estocolmo com testes psicológicos a mulheres na menopausa, antes e depois do tratamento com estrógenos. O resultado demonstra que a maior parte das mulheres apresenta tendência para a depressão e para as nevroses antes da administração dos estrogénos, tendência que vai diminuindo com o início e continuação do tratamento à base de hormonas. Notou- se uma grande melhoria no caso dos distúrbios psicossomáticos como ansiedade, inquietação e sensação de mal-estar. (Maria, nº 18, 14-20 Mar/79, Fich 2B)

Neste texto, a associação da menopausa aos distúrbios psicológicos ou psicossomáticos faz-se pelo recurso a palavras como nevrose, depressão, ansiedade, inquietação, mal-estar como caracterizadoras destes distúrbios. Este é um campo discursivo muito presente na construção social do conceito da menopausa, que, em primeiro lugar, surge como um problema de saúde e, em segundo lugar, associado a alterações do foro psicológico.

O mesmo discurso pode ser observado num outro número da revista, editada em 1980, onde um artigo de três páginas, com o título 40 anos, uma idade perigosa surge da seguinte forma:

148 Até que ponto se pode considerar os 40 anos uma idade perigosa? É verdade que a

partir dos 40 a mulher se torna mais vulnerável, que corre mais riscos de sofrer uma depressão?

Realmente é um período em que a mulher está mais sujeita a esgotar o potencial nervoso do seu sistema e, consequentemente, a sofrer um esgotamento. Não se deve ocultar a verdade, uma vez que, neste caso ―mulher prevenida vale por duas‖. Contudo, o que mais preocupa os médicos não são as consequências dos 40 em si, mas o facto de muitas senhoras pré-estabelecerem que a partir dessa idade serão umas neuróticas, vítimas inocentes da menopausa, cordeiros imolados no altar da mudança de idade. Para as que assim pensam, talvez lhes alivie ter conhecimento de que, na sociedade do séc. XX, mais de 60 por cento das mulheres estão tão sujeitas a crises nervosas, independentemente da idade, como à gripe ou à enxaqueca.

Em qualquer dos casos, a prevenção é melhor e mais eficaz do que a cura. Mas qual prevenção? Auto-auxílio! Não é tão difícil quanto parece, é uma predisposição psíquico-fisica, controlada e dominada pelo individuo, qualquer individuo medianamente inteligente. (…)

Todas nós, de uma forma ou de outra somos neuróticas, mais ainda, muitas vezes, a neurose é acompanhada de elevadas qualidades artísticas e intelectuais. (…) Como reconhecer o mal?

Através de um estudo cuidado, auto-análise pessoal. Basta conhecer-se a si mesma para detectar o pequeno demónio que principia a espicaçar-lhe os nervos. (Maria, nº 63 de 23-29 Jan/80, Fich 9A)

Na maioria das mulheres, a menopausa principia entre os 38 anos e os 45 anos e, nalguns casos, anda de braço dado com a depressão moderada.

Para uma mulher calma, inteligente como você, nenhum destes factores a assustará. Mas, nem só as que atravessam a menopausa estão sujeitas a uma crise de nervos. Todo o ser humano, principalmente o indivíduo que vive integrado nas civilizações modernas, e mais precisamente os que habitam as grandes metrópoles, tendem mais tarde ou mais cedo, a sofrerem um pequeno abalo de nervos.

Na maioria das senhoras casadas, a neurose está ligada com as relações sexuais que, em muitos casos, são causadas pela ignorância e imaturidade do casal. (…) Para uma viúva, divorciada ou uma solteira que vivam sós, os 40 anos, de certo modo, constituem um belíssimo alvo para as setas da depressão neurótica. (…) Mas a mulher do séc. XX não é obrigada a ser solitária, inscreva-se em qualquer tipo de organização social, politica, caritativa (…) dedique-se a algo que lhe ocupe o espírito e viva feliz. (…) Ria-se abertamente, confiante no futuro, ainda que o presente seja negro. (…) Se não obtiver resultados tente consultar um bom psiquiatra.

Pelo Dr. Frank Caprio (Maria, nº 63 de 23-29 Jan/80, Fich 9B)

Convenientemente assinada por Dr. (remetemo-nos para o desenvolvimento dos pontos 1.2. e 2.4.1.), o primeiro excerto centra-se nos pontos nodais depressão moderada, crise de

nervos, pequeno abalo de nervos, neurose, depressão neurótica, para justificar a

perigosidade dos 40 anos. E, com a junção ao vocábulo sofrer, emerge mais um reforço da negatividade atribuída à menopausa. A articulação da construção social menopausa-doença

149 e, por sua vez, a articulação desta com o conceito de mulher eterna-doente-sofredora constituem intertextualidades por nós percepcionadas.

Da conjugação entre prevenção, mais eficaz e cura, emerge, mais uma vez, um discurso derrotista para a mulher. Pois, se a prevenção é mais eficaz que a cura, significa que a cura pode não o ser, o que implicitamente adverte para a não-cura, apesar de existirem possibilidades de tratamento. Resta, entretanto, saber se é possível prevenir, uma vez que o articulista afirma: mais de 60 por cento das mulheres estão tão sujeitas a crises

nervosas, independentemente da idade, como à gripe ou à enxaqueca. Ora, a prevenção de

uma gripe ou de uma enxaqueca é particularmente difícil ou quase impossível.

A presença de um discurso hegemónico transparece na descrição das mulheres como portadoras de uma instabilidade que se assume como característica tipicamente feminina, bem como detentoras de uma debilidade não apenas física, mas também psicológica. Esta fragilidade e personalidade influenciáveis são o veículo facilitador para o desenvolvimento dos distúrbios nervosos. Preocupantes são os dados estatísticos relativos às crises nervosas, que dão uma maioria absoluta (60%) para as mulheres eternas-doentes-sofredoras.

Esta emergência de um discurso normativo de vitimização da mulher por presença, ao longo do texto, da palavra sofrer e pela existência da construção frásica vítimas inocentes

da menopausa, cordeiros imolados no altar da mudança de idade, remete-nos, mais uma

vez, para o discurso fatalista da mulher essencialmente sofredora. O uso das metáforas

cordeiros imolados e altar direcciona para a influência do discurso católico, da presença do

sacrifício pessoal e da projecção da mulher à semelhança da imagem da Virgem Maria, mãe e sofredora, no discurso praticado pelos media.

Consideramos que está também presente, ainda que de forma não explícita, a eterna discussão da emoção e fragilidade feminina versus a razão e inteligência masculina. Esta alusão está patente em quase todo o excerto da Ficha 9, sobretudo quando, a partir da frase

qualquer indivíduo medianamente inteligente, é possível fazer o seguinte raciocínio: se a

mulher não consegue ter a dita predisposição psíquico-física, controlada e dominada pelo

indivíduo, dado que todo o texto classifica a mulher de psiquicamente descontrolada, para

150 Percebemos, no segundo artigo, que há uma tentativa de dissociação [d]A grande

depressão16 em relação à menopausa, através da aplicação das expressões nalguns casos, nem só e todo o ser humano, mas este propósito dilui-se, ao longo do texto, e perde força,

não se consumando o turn over discursivo.

O mesmo acontece quanto à tentativa de generalização a homens e mulheres nas crises

nervosas, visualizando-se uma contradição na extensão da depressão ao indivíduo que vive integrado nas civilizações modernas, e mais precisamente os que habitam as grandes metrópoles quando, na sequência do texto, se faz a alusão a todo o ser humano incluir as senhoras casadas, viúva, divorciada ou uma solteira que vivam sós. Estas são as únicas

contempladas, já que senhores casados, viúvos, divorciados ou um solteiro que vivam sós estão excluídos desta generalização.

Nesta nomeação das mulheres com maior probabilidade para ter depressão – atente-se – estão todas as mulheres! Ou seja, são as casadas, as viúvas, as divorciadas e as solteiras (e os homens estão excluídos), cujas justificações são: as mulheres casadas porque têm dificuldades na relação conjugal, e as restantes pela ausência de relação conjugal e consequente solidão. Ou seja: ―Quem tem filhos, tem cadilhos. Quem não tem, cadilhos tem‖.

Fazendo, neste ponto, a articulação com a primeira parte do artigo analisado (Ficha 9A) surge, mais uma vez, um desacordo quando se coloca a mulher como capaz de prevenir a depressão, dando até dicas para a prática dessa prevenção, e, depois, se finaliza com um

se não obtiver resultados tente consultar um bom psiquiatra. Ora, tente é um ponto nodal

que nos remete para a não garantia de resolução ou cura das neuroses e, ao conjugar-se com

bom psiquiatra, oculta uma verdade, a de que é melhor resignar-se ao facto de não ter cura.

Com o título O papel do marido na menopausa feminina, a presença de distúrbios psicológicos assume uma mudança abrupta da personalidade:

Mulheres seguras, activas, alegres, auto-confiantes transformam-se repentinamente em neuróticas, nervosas, pessoas constantemente exaustas, infelizes, introvertidas, piegas e até hipocondríacas. (…) Muitas sentem-se a tal ponto confusas ante nova personalidade que desenvolveram que sofrem um choque, então refugiam-se, ou no tabaco, no álcool, ou em psicoses estranhas. (Maria, nº 75 de 16-22 Abr/80, Fich 11C)

16Subtítulo que encabeça todo o texto transcrito.

151 Se atentarmos bem neste recorte, a transfiguração psicológica pode ser tão devastadora a ponto de a mulher deixar de ser o que era, e inclusive obter uma nova personalidade. Convém destacar que esta notícia surge nos anos 80, altura em que, em termos científicos e teóricos, a identidade era ainda considerada como fixa e imutável, e, claro, pensada para o masculino. Só na pós-modernidade, algumas/ns autoras/es desenvolveram teorizações em torno de uma identidade não fixa e não imutável. Butler desafia mesmo o pressuposto quando afirma que ―o próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes‖ (2003: 18).

No entanto, dado o contexto em análise, não é neste sentido que são expressas as alterações identitárias femininas, sendo que, aqui, isso remete não apenas para um processo de mudança na identidade, própria do amadurecimento e do envelhecimento de cada um/a, mas denuncia uma mudança abrupta, radical e global da pessoa, remetida para um momento do ciclo de vida, conduzindo a mulher para o estado de choque ou para comportamentos aditivos/dependentes, confirmando a patogenicidade desta fase.

Já a expressão psicoses estranhas leva-nos a recordar a obra de Teresa Joaquim (1983),

Dar à Luz, onde a investigadora mostra como a construção social das vidas das mulheres se

associa a mistério e estranheza, ao que não é controlável nem previsível. Apesar de a sua investigação se referir às crenças populares sobre a maternidade, gravidez, parto e puerpério, podemos constatar a presença de discursos médicos semelhantes, veiculados acerca do mundo feminino, mesmo em fase não reprodutiva.

Podemos, ainda, visualizar referências a perturbações do foro cognitivo, e distúrbios psicológicos assente no seguinte fragmento:

A menopausa faz com que as mulheres percam a memória, ou mantém-se inalterada? Paula Cristina

Além destes distúrbios fisiológicos, existem os de natureza psicológica que, por vezes, são os mais importantes. Estes distúrbios são caracterizados por crises de irritabilidade e depressão. (…)

Resumindo, penso que não é a menopausa em si que poderá fazer alterações de memória, mas sim os problemas psicológicos inerentes à menopausa.

Dra. Rosa Ferreira (Maria, nº 431 de 11-17 Fev/87 Fich 12 A)

Em relação à interpelação, é de realçar o tempo verbal percam como presente e revelador de uma inclusão transversal a todo o discurso praticado sobre a menopausa, e

152 presente numa grande parte das notícias editadas pela revista. Este sentimento de perda associa-se a um conjunto de predicados como: juventude, beleza, produtividade e, claro,

memória e capacidade cognitiva.

Já na resposta, ressaltamos a expressão por vezes, que acentua a valorização dos distúrbios psicológicos face aos distúrbios fisiológicos, e onde mais importantes vem reforçar a estreita relação entre menopausa e distúrbios psicológicos, valorizando a psicologia da menopausa, em resultado de, nos anos 80, se viver um período em que a psicologia estava em ascensão como ciência, à semelhança de outras ciências em Portugal (ver capítulo sobre as mulheres e a ciência). Com o ponto nodal inerentes faz-se, mais uma vez, a colagem e o reforço da menopausa aos problemas psicológicos.

Este artigo vem no seguimento da representação da mulher como ser frágil, física e mentalmente, logo propensa a crises de irritabilidade e depressão, que lhe são inerentes por ser mulher e, ainda, por se encontrar neste ponto do ciclo de vida, em que os desequilíbrios fisiológicos (hormonais), inevitáveis, comandam os desequilíbrios físicos e psicológicos. Apenas um momento de desacordo ou contradição discursiva surge quando a

Dra. Rosa Ferreira afirma que não é a menopausa em si a causadora das alterações de memória, são os problemas psicológicos os verdadeiros responsáveis. Mas se os problemas psicológicos são inerentes à menopausa, tal só poderá significar que a menopausa é a

responsável por alterações da memória.

Fazendo a articulação com a Ficha 12C (ponto 2.2.2.), é possível perceber que, para além de culpabilizar a menopausa pelas faltas de memória, acresce-se-lhe a clássica associação da perda de memória a um estado mais avançado do processo de envelhecimento, que é a velhice (Zimerman, 2000). Logo, menopausa e velhice assumem-se, implicitamente, como fortemente associadas.

Podemos igualmente observar neste excerto:

O nervosismo é frequente. Se a mulher já é de si «nervosa» verá agravar-se esta situação. Se já tendia a exagerar o valor de acontecimentos banais da sua vida, passa a fazer do nada um bicho de sete cabeças; perde as estribeiras à menor contrariedade; tem crises de choro absolutamente injustificadas ou cai em depressão. Um tal descontrolo depende muito da personalidade da mulher, da sua educação, do seu nível cultural e da existência ou não de «antecedentes» de desequilíbrios propícios ao «disparate». (Maria, Nº 439 de 08-14 Abr/87, Fich 15E)

153 Tomando todo o parágrafo como nodal, cujo repertório interpretativo assume claramente o eterno posicionamento da mulher frágil, doente e psicótica, expressa em pequenos excertos como: O nervosismo é frequente; Se a mulher já é de si “nervosa” verá

agravar-se esta situação; Se já tendia a exagerar o valor de acontecimentos banais da sua vida, passa a fazer do nada um bicho de sete cabeças; perde as estribeiras à menor contrariedade; tem crises de choro absolutamente injustificadas ou cai em depressão,

observamos que, efectivamente, a mulher é uma doente permanente.

Resumindo, constatamos que, independentemente dos anos analisados, a prática discursiva é conducente a uma concepção da menopausa como porta aberta para os distúrbios psicológicos ou como potenciadora dos mesmos, quando presentes, e tão característicos da feminilidade, introduzindo-se aqui a ponte para a ―fase crítica‖ que suporta todo o discurso em torno desta temática.