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Construção das feminilidades, o feminino e o ser-se mulher

5. A construção social numa perspectiva de género

5.2. Construção das feminilidades, o feminino e o ser-se mulher

Diversas/os autoras/es feministas e do campo dos Estudos sobre as Mulheres têm desenvolvido esta problemática acerca da construção social das feminilidades. Nestes estudos, aparece com evidência, nomeadamente a partir dos anos 90, a reflexão sobre a influência dos diversos media de divulgação de informação, o que, para esta dissertação, é particularmente relevante, na medida em que incidimos a nossa análise sobre os artigos de uma revista feminina muito popular no nosso país, a Maria.

Desde sempre, das mulheres eram esperados comportamentos entendidos como evidenciadores da sua feminilidade e cumpridores do seu papel social. Isto implicava ser socialmente invisível, naturalmente produtora, ou ―produtora de filhos‖ e ―produtora doméstica‖ (Barreno, 1976, ver também Barbosa, 1998), psicologicamente frágil e instável, dependente e submissa, graciosamente jovem e bela, e assumidamente afectiva. Estas atribuições, de oposição binária ao masculino (Amâncio, 1994), com base no determinismo biológico, diferenciam homens e mulheres, colocando-as como inferiores física, psíquica e intelectualmente.

A maternidade e a existência do instinto maternal estariam na base do comportamento dócil e afectivo. A produtividade feminina e ―a interiorização do modo de ser feminino como uma natureza‖ (Amâncio, 1994: 181), bem como a existência de uma ―essência

41 feminina‖, são construções que mais uma vez reforçam o entendimento da feminilidade, que, segundo Beauvoir, é uma categoria em oposição à masculinidade (Silveirinha, 2004).

Outra associação à feminilidade, exclusiva da mulher e mais uma vez por oposição ao homem, é a presença da menstruação, uma identidade feminina bem visível, tal como expõe Laznik (2004), que assinala também a fecundidade, que garante o poder materno, apesar de na realidade não ser bem assim.

Este posicionamento de menoridade social, em consonância com o estatuto de submissão e estereotipia do feminino, e de oposição ao masculino, constituem-se como obstáculos à construção da mulher como ―mulher-indivíduo‖ (Torres, 2000).

Assim, tal como afirma Amâncio, ―o facto do modelo feminino socialmente valorizado só se aplicar às próprias mulheres e implicar a invisibilidade individual dos membros dessa categoria reflecte-se na sua dificuldade em construir uma representação de si‖ (1994: 177- 178). Da mesma forma, Amâncio (1994) denuncia uma definição social binária e assimétrica entre o que é ser-se homem e ser-se mulher, em que o feminino é exclusivo, colectivo e com fronteiras contextuais referentes apenas às mulheres, por oposição à referência universal e descontextualizada do masculino.

Do exposto entendemos que, nas representações de género, toda a identidade feminina e a imagem das mulheres evocam a construção do socialmente importante na reprodução e do atractivo sexual (heterossexualidade) aos olhares masculinos. Com o passar do tempo, a mulher perderá esses atributos, numa fase em que sentimentos de inutilidade, desvalorização dos seus papéis sociais e diminuição da sua auto-estima assumem-se como uma “crise de identidade” (Mendonça, 2004). Esta visão estigmatizante da mulher deixar de o ser, perdendo a feminilidade e a sua identidade feminina quando cessa a menstruação (Laznik, 2004), torna as mulheres socialmente ainda mais invisíveis do que já são e contribui para a perpetuação do conceito de perniciosidade da menopausa.

Contudo, é importante perceber que as mulheres podem ser invisíveis para os homens e para sociedade, sendo reprovável que as próprias mulheres ignorem as mulheres maduras e, ainda mais grave, que as mulheres maduras se invisualizem. Pouco se sabe sobre estas mulheres, e estas procuram não abordar abertamente a menopausa. O seu comportamento ora pende para a frequente recusa da fase que estão a atravessar, ostentando uma juventude

42 aparente, ora pende para as próprias como produtoras de imagens negativas e actores dessa produção (Greer, 1993).

Esta tentativa de manutenção da juventude e denegação do seu corpo e das mudanças que vão ocorrendo é veiculada também pelos media e imprensa. Naomi Wolf refere mesmo:

Dalma Heyen, editora de duas revistas femininas, confirma que diminuir à idade da cara das mulheres é um procedimento de rotina. As revistas femininas ―ignoram as mulheres maduras, ou fingem que elas não existem. Evitam colocar fotografias deste tipo de mulheres, e quando aparecem mulheres famosas com mais de 60 anos, os ‗artistas do retoque‘ conspiram na tarefa de ‗ajudar‘ as belas mulheres a serem-no ainda mais, quer dizer, a terem menos idade.‖ (…) As leitoras com 60 anos que não têm esse aspecto, olham-se ao espelho e acreditam que parecem demasiado velhas… (1994: 105 e 106)

Este é o resultado da construção social da imagem de uma mulher perfeita, torna-se uma ―dama de ferro‖6, ou seja, em sentido figurado, a mulher real encarcera-se na figura de uma bela mulher à custa de ―retoques‖, controlando-se a presença das ―marcas‖ deixadas pela idade. Esta adulteração promove sentimentos de insegurança e autocensura nas mulheres comuns, apesar de ―retirar idade do rosto de uma mulher é retirar a sua identidade, o seu poder e a sua história‖ (Wolf, 1994: 106).

Em 1987, Vicente descreve que, ao analisar cartas escritas por mulheres portuguesas, enviadas à Comissão da Condição Feminina e à Crónica Feminina entre o período de 1978 a 1981, era notória a presença do sexismo absoluto e da interiorização da autoridade masculina e institucional hegemónica, com inculcação da inferioridade feminina e dos ideais socais da mulher como doméstica, materna e cuidadora. A escolaridade mínima e deficiente (apenas a suficiente para desempenhar o seu papel social de mãe, mulher e esposa, e com capacidade para transmitir os valores morais) destas mulheres, para as quais a obediência e o seguimento dos bons costumes eram os valores máximos e socialmente exigidos às mulheres, transpareceram nessas cartas, não sendo contudo possível extrapolar e generalizar a todas as outras mulheres.

6 Trata-se da imagem de uma linda mulher gravada numa estrutura de ferro que encarcerava as mulheres, prática antiga, feita na Alemanha.

43 Neste mesmo estudo, Vicente (1987) percepcionou a presença da valorização do sofrimento, inexplicável, mas bastante enraizado, pressupondo conter um misto de prazer e justificação para a existência como mulher, sendo um reforço do entendimento da mulher como inferior, insegura, dependente e passível de menorização social. Estas apreensões, sobretudo em relação ao sofrimento, foram mais evidenciadas nas mulheres que pretendiam esclarecer dúvidas, ou apenas comunicar, acerca da menopausa.

Mas no entendimento de ser mulher, Sousa argumenta que ―é melhor ser mulher hoje em dia do que foi durante muitos e muitos anos‖ (2005: 13), e apesar de a história ter sido construída com ocultação das mulheres, ―votadas ao silêncio da reprodução materna e da vida doméstica. Elas viveram na sombra da domesticidade, que nem mereceu ser quantificada e narrada por quem tinha a responsabilidade de escrever a História.‖ (Sousa, 2005: 25).

Apesar de as mulheres terem vivido comprimidas e amordaçadas; apesar de lhes ter sido negado o poder; ―apesar dos pesares‖, a emancipação é uma realidade, as mulheres estão incluídas no sufrágio, existe igualdade social, económica e política, participam activamente na sociedade, controlam o seu corpo, a sua sexualidade. Porém, persistem os estereótipos de serem delicadas, instintivas, emocionais, com maior tendência para as línguas e artes; persistem desigualdades sociais, laborais e de exercício do poder; são alvo de violência; têm duplas ou até mesmo triplas jornadas de trabalho, pois o papel maternal é-lhes imputado pelo determinismo biológico e a conciliação com o trabalho doméstico e cuidados da família está sempre presente.

Pese embora toda esta contextualização, atrevemo-nos a acrescentar ainda que nem sempre é fácil ser mulher com mais de 40 anos, e ao peso da ―idade‖ acresce-lhe, ainda, os problemas relacionados com o facto de ser mulher. Contudo, e retomando a expressão de Sousa (2005), continua a ser ―melhor ser mulher [com mais de 40 anos] hoje em dia do que foi durante muitos e muitos anos‖.

Isto porque, o início do século XX, em Portugal, pautou-se por um grande desequilíbrio social, motivado por vários acontecimentos políticos como a Instauração da República, a participação na Primeira Guerra Mundial, a instauração de uma ditadura salazarista, e por outros como a epidemia pneumónica, grande o êxodo populacional para o

44 estrangeiro, etc. Logo, se as condições eram precárias para os homens, muito mais o foram para as mulheres, sobretudo durante o curso da ditadura.

Apesar de algumas alterações sociais e politicas, logo no inicio do século, saírem em favor das mulheres, como é o caso do acesso das mulheres a trabalhos no domínio da administração pública e a permissão das mulheres nas universidades, como são exemplos Carolina Michaëlis e Amália Vaz de Carvalho, e de tantas outras que se seguiram, a verdade é que, tal como afirma Vicente, ―…ficou aquém do prometido e do esperado ou não foi aplicado com equidade e justiça.‖ (2001: 198)

Embora muitas mulheres tenham assumido uma postura reivindicativa de direitos, com papéis importantes para o desenvolvimento do feminismo português, como Adelaide Cabete, Virgínia de Castro e Almeida, Teresa Leitão de Barros, Florbela Espanca, Irene Lisboa, Shophia de Mello Breyner Andersen, Natália Correia, Maria Velho da Costa, etc, a travessia das mulheres pelo Estado Novo não foi fácil e, na sua generalidade, mantiveram uma postura submissa, de esposas e donas de casa, com pouca escolaridade e pouca capacidade reivindicativa. Os direitos que lhes eram conferidos socialmente, bem como, os papeis sociais que lhes eram atribuídos orientavam-se sempre para as tarefas que desenvolviam no seio da família.

O mito da mulher que sabe governar a sua casa tal como Salazar queria governar o seu país era o modelo a imitar. A retórica salazarista também declararia: ―defendemos que o trabalho da mulher casada e geralmente até o da mulher solteira, integrada na família e sem a responsabilidade da mesma, não deve ser fomentado: nunca houve nenhuma dona de casa que não tivesse imenso que fazer.‖ (Vicente, 2001: 204)

Esta ―triste sorte das mulheres portuguesas‖ (Fox, 1937, apud Vicente, 2001: 211) de manutenção de estereótipos femininos como o baixo nível educacional, a valorização do recato e isenção de desejo sexual da mulher, a protecção da sua virgindade até ao casamento e ser guardiã/transmissora da moral e dos bons costumes, destituía a mulher do exercício do poder e da presença na esfera pública.

Só após o 25 de Abril de 1974, paulatinamente, se resgatam e reivindicam as capacidades perdidas e iniciam-se crescentes empoderamentos femininos que, segundo Vicente (2001), ainda são assimétricos, sobretudo: na conciliação da vida privada e

45 profissional, que para as mulheres é mais complexa e pesada em comparação com a dos homens, pois a domesticidade ainda está muito atribuída ao papel feminino e o papel masculino assume a posição de ―colaborador doméstico‖; na superioridade numérica, dos homens face às mulheres, em relação à ocupação de cargos de topo e de poder de decisão, políticos, religiosos e administrativos; na superioridade numérica, das mulheres em relação aos homens, que sofrem vários tipos de violência.

Persiste uma ambiguidade social e religiosa que impede assumir-se homens e mulheres como iguais. A construção social do feminino e do masculino, posiciona a mulher longe do poder, a igreja ainda a classifica como frágil, o subdesenvolvimento de Portugal para além de consequência também é causa da falta de empoderamento das mulheres (Vicente, 2001). E o determinismo biológico ainda remete a mulher para o papel da maternidade e da sexualidade comprometida.

E é no seguimento de um desenvolvimento mais aprofundado sobre a sexualidade que se insere a temática do próximo capítulo.

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