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5. A construção social numa perspectiva de género

5.1. Construindo e desconstruindo masculinidades

Outrora, a masculinidade era considerada como um conceito permanente e universal do ser homem em qualquer faixa etária, em qualquer lugar e qualquer período social, mas que tinha de ser constantemente provada e exibida. O X e o Y, que constituíam a masculinidade geneticamente, determinavam o ―ser homem‖ e ser homem implicava ser forte, ser viril, e demonstrar e conquistar essa mesma força e virilidade. O mesmo não era requisito necessário para ―ser mulher‖, porque a sociedade entendia, e ainda entende, que ser mulher é algo natural e passivo da condição de quem nasce com uma carga genética XX (Badinter, 1993).

É como se X e Y necessitassem de estar em permanente luta para se manterem no seu estatuto masculino, e X e X se aceitassem mutuamente como aquilo a que dão origem e constituem: a mulher. Badinter (1993), no entanto, vai um pouco mais longe e defende que os homens se comportam assim porque são inseguros em relação à sua identidade sexual e, por esse motivo, têm de provar e mostrar que são verdadeiramente machos. Já as mulheres

38 naturalmente se tornam mulheres quando surge a menstruação, não tendo por isso que provar ou mostrar o que condicionalmente são.

Assim, questionar a identidade masculina estaria fora de questão, movimentos de masculinidade não eram necessários porque existia apenas uma só masculinidade, não havia diferenciação masculina. Só a partir da década de 1970 é que surgem os primeiros trabalhos científicos sobre o tema e, a partir dos anos 80, também os homens admitiram ser um mistério e serem eles também possuidores de masculinidades, no plural, assim corroborado por Badinter, ao argumentar: ―O que faz a sua essência, a sua virilidade, vê, por outro lado, a sua unidade posta em causa. A classe, a idade, a raça ou a preferência sexual tornaram-se factores de diferenciação masculina.‖ (1993: 18)

Pelo facto de, historicamente, o homem ser o representante da humanidade, a história ser escrita no masculino e por homens, o próprio corpo da mulher ter chegado a ser considerado como uma cópia do corpo do homem (descrição feita por Diderot no século XVIII, que posicionava internamente os órgãos sexuais da mulher e externamente os do homem, mas idênticos entre si) e até o modelo anatómico de Leonardo da Vinci, o Homem Vitruviano, ser uma figura masculina, tal significa que vivíamos, e ainda vivemos, a atribuição generalizada do conceito masculino, pretensamente neutra. Este ―falso neutro‖, característico da sociedade androcêntrica, é o responsável pela invisibilidade da mulher social, da domesticidade como trabalho e da duplicação de esforços para as mulheres serem valorizadas no mundo do trabalho (Vicente, 2001).

Porém, se nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, as diferenças sexuais biológicas foram comprovadas e a diferenciação biológica considerada como responsável pelos diferentes comportamentos entre homens e mulheres, dando lugar ao determinismo biológico na atribuição dos diferentes papéis sociais, em que ―a heterogeneidade dos sexos comanda destinos e direitos diferentes‖ (Badinter, 1993: 22), foi a supremacia masculina face à feminina, amplamente cultivada e difundida ao longo dos últimos séculos até ao final do séc. XX, quem promoveu a atribuição de papéis sociais sem questionamento, como base cultural e social, transmitida de geração em geração, de acordo com a determinação da ―biologia‖.

Só na actualidade, e após décadas e décadas de lutas das mulheres pelos seus direitos à igualdade e à diferença, todos estes ―pressupostos‖ passam a ser questionados.

39 Só após a criação dos Women‟s Studies é que se busca e envereda pelos Men‟s Studies. São os movimentos contra a invisibilidade da mulher que incitam aos questionamentos sobre a invisibilidade do género masculino (Ghaill, 1996; Michael Kimmel, 1984, apud Badinter, 1993). Esta nova demanda, segundo Badinter (1993), foi promovida pelos movimentos feministas, quando se questionaram e refutaram a diferenciação de papéis, o domínio dos homens sobre as mulheres e os ―a mais‖5 atribuídos pelo patriarcado aos homens.

Tolson (1983), ao expor a masculinidade como a assumpção da competência masculina, que se exterioriza e impõem socialmente na forma de falar, agir, pensar e até mesmo andar, enumera os códigos de conduta masculina como: a autoridade, o vigor e a força física, a competitividade, a performance, a confiança (autoconfiança), a atitude destemida, características tidas como necessárias para o exercício do poder e o perfil perfeito de líder. Contudo, entende a virilidade masculina e o exercício do poder sobre os outros como presentemente irreais e impensáveis, pois não existe masculinidade, mas sim masculinidades multifacetadas, oscilantes e flexíveis.

Aceitar e repensar a masculinidade à luz de outros conceitos que não a virilidade, a força e a dominação, ainda não é uma realidade concreta e universalmente aceite. Desponta em alguns países, onde grupos restritos de estudiosos desconstroem e constroem novas imagens e defendem novas masculinidades.

Resta saber se a sociedade em geral, e a comunidade científica, em particular, irão aceitar novos conceitos que põem em causa a ancestralidade dominadora dos homens e o eterno incremento da instabilidade das relações entre homens e mulheres, que promovem a dominação entre classes, ―raças‖, sexo e género, e são constituintes de peso no motor económico e político da actualidade.

Numa posição de abertura e confiança, Ghaill (1996) entende haver uma evolução do conceito de masculinidade. Ou seja, actualmente, a masculinidade é plural, subjectiva face ao contexto social e em constante inovação, recusando a estanquicidade do conceito. Os papéis sexuais femininos e masculinos tendem a não ser linearmente atribuídos, de acordo com o entendido como permitido ou proibido para ambos os sexos, mas confundindo-se,

5 Lista que Badinter descreve sobre os ―a mais‖: ―Desde o nascimento do patriarcado, o homem sempre se definiu como ser humano privilegiado, dotado de qualquer coisa a mais, ignorada pelas mulheres. Julga-se o mais forte, mais inteligente, mais corajoso, mais responsável, mais criador, ou mais racional. E este mais justifica a sua relação hierárquica com as mulheres.‖ (1993: 19)

40 alternando-se e modificando-se, de acordo com as necessidades familiares e as mudanças operadas na sociedade.

Hoje, verifica-se a entrada dos homens na esfera doméstica, na partilha de tarefas e do cuidar (sobretudo dos filhos), é ―permitido‖ ao homem chorar, usam-se modelos unissexo, aceitam-se comportamentos considerados como menos masculinos, mas ainda se verifica a socialização do masculino nas escolas, no trabalho, na família, pelos media, a diferenciação de papéis e a heterossexualidade das relações, transmitindo-se a masculinidade ao que é de menino, rapaz e homem e a feminilidade ao que é de menina, rapariga e mulher.

E porque a polarização dos sexos, a significação do feminino e do masculino e a presença de masculinidades e feminilidades influenciam o comportamento e as relações interpessoais e estão sempre presentes no quotidiano, passaremos a desenvolver um pouco mais sobre as feminilidades, o feminino e o ser-se mulher.