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CAPÍTULO 6. Discursos acerca da menopausa na Maria

2. Campos discursivos em torno da menopausa

2.6. Menopausa e procriação

2.6.1. O fim da produtividade feminina

A associação entre a menopausa e o término da capacidade de reprodução da mulher, por valorização do papel social da reprodução e maternidade, e sua consequente

170 desvalorização no período da menopausa, pode ser observada na resposta a uma carta de leitora intitulada Duas Palavras:

A palavra menopausa significa fim das menstruações: é comummente usada no caso da última menstruação.Período esse o qual a mulher sofre grandes mudanças físicas e psicológicas. Durante esse período verificam-se também importantes mudanças hormonais. As hormonas são substâncias especiais produzidas pelas glândulas do organismo; são transportadas pelo sangue e chegam aos vários órgãos, sobre os quais exercem a sua acção. Durante o climatério diminuem progressivamente os estrogéneos (necessários à ovulação) até que esta última não se pode dar e a mulher deixa de poder conceber. (Maria, nº 62 de 16-22 Jan/80, Fich 8B)

Presente como discurso de desvalorização da condição feminina, encontramos a expressão a mulher deixa de poder conceber. Esta surge, aqui, como um facto irreversível e real, que a retórica pró-produtividade feminina/―menofobia‖19 apresenta. À semelhança do que tem vindo a ser exposto, a palavra sofre reforça aqui o discurso negativista e fóbico das mudanças físicas e psicológicas visíveis ocorridas na menopausa.

A expressão importantes mudanças, atribuída às mudanças hormonais descritas e consideradas como alterações fisiológicas não visíveis, mas responsáveis por todas as outras alterações físicas e psicológicas visíveis, assumem o carácter de mistério. Isto porque, quando não se conhece muito bem, ou o seu mecanismo não é controlável (Joaquim, 1983), é-lhe atribuída essa categoria. E como todos os mistérios, há que tratar a menopausa com o devido respeito, daí a classificação subjectiva de importante como tradutora de um sentimento de impotência e sobrelevação de algo que não controlamos.

E porque a ausência de menstruação é um sinal visível da perda de capacidade de procriação, podemos observar o seguinte excerto:

A menopausa, ou seja, o fim da actividade funcional dos ovários, com consequente desaparecimento da menstruação (…) A altura da menopausa é uma fase difícil para muitas mulheres (…) o filhos já estão crescidos, não necessitam tanto dela (sente-se menos útil) (Maria, Nº 431 de 11-17 Fev/87, Fich 12B)

19―Menofobia‖ é uma construção nossa, emergente da percepção, ao longo dos excertos já analisados, de que existe uma fobia social e da mulher pela menopausa, à semelhança do que afirma Laznik (2004). A criação de um termo abrangente e denunciador do ―medo patológico‖ em falar, assumir e enfrentar a menopausa, fazendo a junção de meno- e fobia, parece- nos interessante e necessário. Apesar de estarmos conscientes de que meno significa “mês‖, a sua adopção para a construção do vocábulo menopausa está enraizada na linguagem científica e social, daí que estamos conscientes da possibilidade de, futuramente, desenvolver um estudo mais aprofundado para desenvolver como conceito esta palavra composta.

171 Realçamos a expressão fim da actividade funcional dos ovários, porque nos remete, mais uma vez, para o fim da produtividade feminina, no sentido de a produtividade das mulheres estar apenas ligada à reprodução biológica. Igualmente, a expressão fase difícil vem como corolário desta construção social da vida das mulheres agora sem produção biológica, e ainda de sofrimento, com eternas dificuldades e obstáculos que fazem a mulher a sentir-se menos útil.

Todos estes pontos se inserem no discurso hegemónico e normativo sobre as mulheres, cujo sofrimento é fulcral e permanente nas suas vidas, sendo a procriação e maternidade os seus papéis sociais principais.

Já um discurso convencional e normativo acerca do peso da idade na produtividade feminina (procriação) pode ser encontrado nesta carta de leitora:

Qual a relação entre a idade em que a menstruação se inicia e aquela em que começa a menopausa? Tenho 39 anos e gostaria muito de ter um filho. Acontece que estou muito receosa, devido à idade que já tenho e ao facto de ter feito dois abortos anteriormente. Será que estes dois aspectos podem trazer-me problemas se engravidar?

Anónima (Maria, Nº 482 de 03-09 Fev/88, Fich 26A)

Demonstrando preocupação com o factor idade, por sentir que poderá ser um entrave à concretização de um objectivo relacionado com a produtividade feminina –engravidar –, a leitora questiona sobre a relação entre menstruação se inicia (como indicativo do período fértil) e começa a menopausa (como indicativo do término do período fértil). É na expressão ter um filho que encontramos a concretização objectiva da sua pretensão, e o motivo da sua preocupação emerge da associação de muito receosa a devido à idade, assumindo o medo do ―fim da produtividade feminina‖.

Igualmente o substantivo problemas vem reforçar o sentido das dificuldades em engravidar face à idade avançada (Tenho 39 anos), mas deixa antever a preocupação sentida quanto a possíveis intercorrências, caso a gravidez ocorra. É de ressaltar aqui a intertextualidade da maternidade/feminilidade por extensão à procriação, e a assimilação do discurso médico em torno da gravidez tardia como factor de risco. Todo o texto se pauta por regularidades em relação ao receio sentido, à problematização da dificuldade em engravidar e ao risco acrescido se existir uma gravidez tardia.

172 A delimitação de todo o período fértil e produtivo com o recurso ao seu balizamento – início: menarca, e fim: menopausa – é elucidativa da construção social em torno do primeiro como período fértil e da proximidade do segundo como infértil, quando na realidade a gravidez pode ocorrer no período da pré-menopausa (Sánchez, 2003).

Uma dimensão que não se encontra convenientemente explorada, e na qual pode residir a preocupação da leitora, relaciona-se com o ciclo procriativo alterado, inserido no que se considera ser a idade fértil. Esta seria uma outra dimensão do problema procriativo feminino, o da mulher ―seca‖ e não produtiva, ou até o de julgar-se ou sentir-se como não mulher e não feminina. Mas o aborto como problemática da infertilidade, dentro do intervalo de tempo em que se insere a fertilidade feminina, está quase ausente deste discurso.

Assume-se, desta forma, a naturalidade da função feminina, que no ponto seguinte é muito mais evidente.

O fim da função feminina mais “natural”, o começo da não- produtividade

No contexto de um discurso hegemónico de atribuição à mulher de uma função exclusiva e quase única – a maternidade – encontramos esta notícia reveladora:

A menopausa é um fenómeno natural (…), exclusivamente feminino, e que põe fim à sua função ―natural‖, que é a maternidade, a conservação da espécie.

É claro que na sociedade, a mulher desempenha muitas outras funções; nenhuma porém é naturalmente específica. Desde a mulher simplesmente decorativa ou instrumento de prazer, até à que desempenha altos cargos de Estado, a nenhuma a Natureza concedeu outra função específica senão esta: dar filhos ao Mundo. Tudo o mais vem por acréscimo e pode ser-lhe negado sem que por isso deixe de ser mulher.

(…) Em relação à menopausa, se quiséssemos considerar a Natureza como uma entidade dotada de raciocínio, consciência e objectivos, poderíamos atribuir-lhe uma decisão como esta: «Por volta dos 40 anos a mulher já não é necessária à conservação da espécie; já não precisa de ter filhos; precisa é de não ter mais filhos; portanto, destrua-se nela o mecanismo principal da gestação. Que o seus ovários deixem de funcionar.» (Maria, nº 439 de 08-14 Abr/87, Fich 15B)

Após a sua leitura, destacamos os pontos nodais põe fim, destrua-se nela e deixem de

funcionar, como associação ao fim da produtividade feminina que advém da menopausa.

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gestação, o autor revela a construção social fortemente ligada à função biológica

reprodutiva e à maternidade, sendo este o papel principal da mulher, que, por associação aos pontos nodais função “natural”, função específica e naturalmente específica, orientam o discurso para a ideação da única e legítima função da mulher: procriar.

Como contraponto à sua função ―natural‖, destaca-se a mulher simplesmente

decorativa ou instrumento de prazer como função secundária, e ainda aceitável, pela e para

a sociedade masculina, patriarcal e hegemónica. Existem ainda funções especiais, uma espécie de benesse, quando lhe é permitido o desempenho de altos cargos de Estado, mas que vem por acréscimo, podendo até ser-lhe negado pelo homem ou pela sociedade, sem

que por isso deixe de ser mulher.

Ora, com este tipo de discurso, deixa-se antever que, como pessoa, passa a ser não

necessária, não precisa, subentendendo-se estarmos perante um ―despedimento, por justa

causa‖ que a própria natureza faz. Logo, socialmente, a mulher pode também ficar destituída de qualquer tipo de função.

Neste excerto, pautado por uma escrita irónica, acutilante e agressiva, não é possível ser-se mais castrador e ―humilhante‖ em relação às mulheres e às suas funções na sociedade do que o que está descrito. A facilidade com que a mulher é destituída, pela sociedade (que se subentende masculina), de todas as suas ―brilhantes‖ funções – desde ser simplesmente

decorativa ou instrumento de prazer, até à que desempenha altos cargos de Estado – ainda

tem como acréscimo aquilo que a natureza lhe retira quando já não é necessária à

conservação da espécie; já não precisa de ter filhos; precisa é de não ter mais filhos; portanto, destrua-se nela o mecanismo principal da gestação. Que o seus ovários deixem de funcionar.

Isto é a tradução directa da concepção da mulher como unicamente produtiva e com função social apenas enquanto tem a sua função reprodutora operacional e desempenha o seu papel maternal. Com a menopausa, deixa de ter qualquer interesse social, a não ser que lhe seja concedido o benefício de desempenhar outras funções. Assume indirectamente que o homem domina e controla a mulher e que a natureza também faz o mesmo.

A atribuição da feminilidade à função biológica reprodutiva, sendo as restantes funções concessões masculinas – Desde a mulher simplesmente decorativa ou instrumento de

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outra função específica, senão esta: dar filhos ao Mundo. Tudo o mais vem por acréscimo

e pode ser-lhe negado sem que por isso deixe de ser mulher. (sublinhado nosso) –,

permite-nos concluir que existe um reforço da hegemonia masculina no contínuo controlo exercido sobre a mulher, na constante atribuição da maternidade à mulher como papel natural e social e no discurso desvalorizante e depreciativo da mesma, em qualquer que seja a sua fase da vida. Pode ainda concluir-se que existe uma clara exclusão do seu papel social na menopausa, deixando de ser importante para a sociedade. Este é, de todos os artigos, o mais expressivo em considerar a menopausa como o ―fim da produtividade feminina‖ e como tal merecedor de destaque.

Existem ainda outras práticas discursivas orientadas para o sentido da maternidade como papel fulcral da mulher e em que a menopausa é vista como a responsável pela sua destituição. Será o que verificaremos no ponto seguinte.