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CAPÍTULO 6. Discursos acerca da menopausa na Maria

2. Campos discursivos em torno da menopausa

2.6. Menopausa e procriação

2.6.3. Um discurso da não-procriação

Apesar do grande peso social que envolve a maternidade e as mulheres, posicionando a procriação e a maternidade como as funções mais naturais, este ponto expressa o sentimento da não-procriação como libertador da mulher, tal como podemos observar em algumas notícias e cartas de leitoras dos finais da década de 1980:

Tenho 42 anos e deixei de ser menstruada há um ano. Pedia o favor de me informar se poderei ter relações sexuais à vontade, ou se ainda terei possibilidades de ter filhos.

Ana Luísa‖ (Maria, nº437 de 25-31 Mar/87, Fich 14A)

A construção frásica relações sexuais à vontade orienta-nos para o facto de Ana Luísa assumir a sua sexualidade e o desejo sexual como sendo próprios e naturais do universo feminino. É na expressão possibilidades de ter filhos que a leitora orienta o discurso para a procriação. Porém, não sabemos se teria ou não algum, pois o pronome indefinido mais não está presente. Efectivamente, pode tratar-se de uma mulher que não tenha, mas também não pretenda, ter filhos, pois é a aplicação da frase poderei ter relações sexuais à vontade que nos orienta para o ―discurso da não-procriação‖.

Estamos perante um discurso claramente emancipatório, quer em relação à sua liberdade sexual, quer em relação à liberdade de escolha em não querer ter filhos. Mais ainda, evidencia-se a ligação implícita à sexualidade, às mulheres e ao desejo sexual quando questiona como pode ter relações sexuais à vontade sem engravidar, pois no ponto nodal ou se ainda denuncia-se a vontade de tal não acontecer.

Também a missiva cujo título é Reencontrei o meu antigo namorado assume o mesmo sentido:

176 Tenho 59 anos e sou viúva. Um homem, com quem namorei na juventude,

procurou-me agora dizendo que me ama. Eu também o amo. Gostaria de saber se posso ter relações sexuais com ele sem engravidar. Já não sou menstruada há dois anos.

Z.R. Com a sua idade e tendo deixado de ser menstruada já há dois anos, não poderá por certo engravidar. No entanto, pensamos que o mais aconselhável seria consultar o seu médico, ou ginecologista, colocando-lhe o problema. O risco de engravidar no período da menopausa só se verifica se a mulher ainda tem ocasionalmente hemorragias menstruais, pois pode haver ovulação. Quando estas deixam de acontecer, deixa de haver ovulação e a mulher já não pode engravidar. (Maria, nº 443 de 05-12 Maio/87, Fich 17)

À semelhança da Ficha 14A, a expressão relações sexuais com ele demonstra a preocupação que ZR tem para obter uma resposta segura sobre a prática das mesmas com a certeza de que jamais irá engravidar, pois sem engravidar traduz o desejo explícito de que não pretende engravidar, mas quer manter um relacionamento sexual activo aos 59 anos de idade.

Este discurso emancipatório sobre a sexualidade feminina é assumido pela leitora porque pretende reiniciar a sua actividade sexual, sendo a procriação algo indesejável, o que na idade dela, 59 anos, é tão lícito como impossível de acontecer, a não ser que se trate de uma menopausa tardia (é de referir que na bibliografia consultada nunca surgiu referência a tal possibilidade). Além disso, está aqui presente o desafio à concepção social de que a mulher, a partir de determinada idade, deixa de ter actividade sexual.

Sem qualquer atribuição de preconceitos ou estereótipos (frequentemente associados às mulheres, à sexualidade e à procriação), os seguintes excertos são exemplo disso:

Tenho 54 anos e uso a pílula desde os 40, data em que nasceu o último dos meus seis filhos. Li na vossa revista que a partir dos 40 anos não se deve tomar a pílula. Assim deixei também de tomá-la. Acontece que a partir dessa data não voltei a ser menstruada.

Maria Cândida É perfeitamente normal o que lhe aconteceu. A senhora não está grávida, simplesmente entrou na menopausa ao deixar de tomar a pílula. Era a pílula (com o seu preparado hormonal) que actuava sobre as células do endométrio (camada interna do útero) e lhe provoca a hemorragia quando a senhora fazia a pausa de 7 dias. Esteja descansada, pois nada de anormal lhe aconteceu. A senhora teve uma atitude correcta ao deixar de tomar a pílula. (Maria, Nº 464 de 30 Set-06 Out/87, Fich 21)

Tenho 53 anos e sou casada há 20 anos. Desde sempre tomei a pílula. Tenho lido certas coisas acerca da pílula, nomeadamente que faz mal com a minha idade.

177 Deixei de a tomar em Outubro e nunca mais me veio a menstruação. Tenho usado

os cones vaginais…

Anónima- Leiria A falta de menstruação durante estes três meses está relacionada com as irregularidades menstruais que antecedem a menopausa, ou com a menopausa propriamente dita, mas para ter a certeza terá de esperar mais uns meses.

Fez muito bem ao deixar de tomar a pílula, pois era ela que lhe estava a fazer vir a menstruação. (…)

Em relação à anticoncepção, deve esperar pelo menos mais seis meses e se não lhe voltar a menstruação deve considerar-se na menopausa. (Maria, Nº 489 de 23-29 Mar/88, Fich 28A)

Os termos normal e simplesmente são atribuições raras quando o tema em debate é a menopausa, sobretudo quando destacada como facto simplesmente simples. A expressão

não está grávida, contida no primeiro excerto, remete-nos para o discurso da

não-procriação, sendo perfeitamente adequado pelo facto de a leitora ter 54 anos. Já o

Esteja descansada finaliza um discurso, tranquilizador e informativo, acerca do fim da

capacidade produtiva e o início da menopausa.

Com a expressão nada de anormal encontramos mais um reforço da naturalização da menopausa, além de que, neste contexto, e apesar de não dito, o anormal seria estar grávida, integrando-se todo o seu conteúdo num discurso de não-procriação e numa acção libertadora do seu papel social mais natural.

Trata-se de um discurso médico, de cariz informativo, onde a menopausa é entendida como um processo normal. Existe coerência e raciocínio discursivo de bom senso, baseado nos conceitos fisiológicos. A condução discursiva da autora pretende ser simples e natural, reflectida na congratulação pela atitude tomada de suspender o uso dos ATCO e na demonstração de apoio à capacidade decisória da leitora, quando acrescenta à resposta: A

senhora teve uma atitude correcta ao deixar de tomar a pílula.

O segundo artigo mantém a mesma base de discurso praticado relacionado com a não- procriação, cuja licitude está expressa pela existência de uma idade na qual se encaixa a faixa etária da menopausa. Há, no entanto, uma ressalva contida na expressão para ter a

certeza terá de esperar mais uns meses, em relação à certificação da impossibilidade de

178 Em duas outras cartas de leitoras, intituladas Hemorragias na post-menopausa [sic] e

Menopausa e Pílula, podemos perceber uma prática discursiva que apela à recusa de

pretender engravidar, tal como podemos observar:

Tenho 51 anos, e há dois anos que não era menstruada. O mês passado, porém, apareceu-me novamente. Pergunto se ainda corro o risco de engravidar.

Costa da Caparica‖ (Maria, Nº 467 de 21-27 Out/87, fich 23A) Tenho 52 anos e não sou menstruada desde os 48 anos. Portanto, há 4 anos que deixei de tomar a pílula. Acontece que, no mês passado, tive um dia em que me apareceu uma pequena hemorragia. Fiquei assustada e voltei a tomar a pílula, pois tive medo de engravidar. Tomei 21 dias e na pausa apareceu-me a menstruação de novo, durante 3 dias. Corro o risco de engravidar? Tomo de novo a pílula?

Anónima de Gondomar‖ (Maria, Nº 476 de 23-29 Dez/87, Fich 25)

À semelhança de outras cartas anteriormente analisadas, são as construções risco de

engravidar e medo de engravidar que nos remetem para a prática discursiva da

não-procriação, suportada por uma preocupação centrada na possibilidade de engravidar. Ao abordar a menopausa na perspectiva da não-procriação, e atendendo à colocação da questão, estas expressões encerram uma preocupação maior e oculta – a dissociação entre sexualidade e reprodução e a necessidade de conduzir a prática sexual de forma mais livre e à vontade. A busca de uma resposta libertadora da amarra medo de engravidar, e consequente libertação de um dos condicionalismos sociais – o determinismo biológico e o controlo hegemónico – é a tónica deste contexto, pronunciando a vontade de elas controlarem a sua sexualidade.

É um discurso emancipatório que, atendendo às idades das leitoras e ao facto de já não serem menstruadas há mais de um ano, é justificado pela inquietação sentida, se a possibilidade de engravidar estiver presente, traduzindo-se numa recusa do seu papel social mais natural: a procriação.

Como discurso de não-procriação, encontramos ainda a seguinte a carta com a respectiva resposta:

Tenho 46 anos e fui operada a um quisto no ovário aos 36 anos. A partir daí, fiquei com os períodos irregulares. Agora, já fez dois anos em Março que não me vem a menstruação. O meu marido continua a usar o preservativo. Será que poderei ter relações sexuais à vontade sem preservativo?

Anónima A senhora já entrou na menopausa, pois há dois anos que não é menstruada.

179 Pode começar a ter relações sexuais sem qualquer protecção, pois já não corre o

perigo de engravidar. (Maria, Nº 469 de 04-11 Nov/87, Fich 24A)

A construção frásica não me vem a menstruação é entendida pela leitora como se o sinal físico classicamente associado ao período fértil – a menstruação – estivesse ausente; logo, haveria possibilidade de não engravidar. No entanto, a expressão continua a usar

preservativo, utilizado como método anticoncepcional, assume não só a dúvida sentida mas

também o firme propósito de não engravidar. Daí que a expressão ter relações sexuais sem

qualquer protecção possa ser lida como uma vontade e como a presença de uma atitude

libertadora face ao desejo sexual que, por associação a já não corre perigo de engravidar, vincula o carácter emancipatório do discurso praticado.

É com este reforço que percebemos não só a necessidade de libertação da sua condição de ―produtora de filhos‖, mas também a afirmação do direito ao prazer sexual, à semelhança dos restantes excertos entendidos como integradores de um discurso de não-procriação.

Assim, pretendemos traçar a ponte para o desenvolvimento temático seguinte, onde a sexualidade da mulher é explorada sob pontos de vista opostos – o ―mal-me-desejo‖ e o ―bem-me-desejo‖.