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A sociedade patriarcal e a formação da desigualdade urbana brasileira

A formação da desigualdade socioespacial em Fortaleza

1.3 A sociedade patriarcal e a formação da desigualdade urbana brasileira

consequentemente, sua consolidação como importante núcleo residencial da população brasileira e das principais atividades econômicas, ocorreu essencialmente durante o século XX, e as cidades reproduzem a história social do campo.

Por um lado, as relações sociais se replicaram nas cidades, pois como houve continuidade das relações patriarcais dos séculos anteriores, e isso se rebateu na formação do Estado brasileiro, replica- se também nas relações de produção do espaço urbano e no planejamento urbano. Por outro lado, a mercantilização da terra promoveu a valorização da terra em geral, aumentando o seu preço e excluindo grande parte da população das condições de acesso a ela.

A propriedade privada da terra urbana, no Brasil, foi pouco (ou nada) regulada pelo Estado durante todo o século XX. A mercantilização da terra possibilitou transações comerciais sem interferência do Estado. Assim, os altos preços selecionaram quem poderia fazer parte do mercado de terras, promovendo, desde o início, forte segregação espacial. A apropriação das terras vazias, conforme comentado anteriormente, ocorreu com pouco controle do Estado; além disso, as delimitações não eram precisas, permitindo que maiores porções de terra fossem tomadas. Dessa forma, proprietários privados foram progressivamente, apossando-se de terras irregulares. E assim, após a apropriação das terras, a garantia dos direitos de propriedade permaneceram intocáveis durante todo aquele século. Os principais meio para o Estado intervir no direito de propriedade vieram com a aprovação do Estatuto da Cidade, no século XXI. Ademais, não havia interesse, visto que na sociedade patrimonialista brasileira o Estado representa os interesses de grupos privilegiados.

A legislação urbana também contribuiu para que a produção do espaço urbano, durante grande parte do século XX, fosse protagonizada pela iniciativa privada. Até 1979, quando da aprovação da Lei nº 6.766, não havia legislação no Brasil que tratasse da transformação de grandes glebas em lotes nos quais se poderia construir. O controle desse processo deveria ser de responsabilidade dos municípios, através dos planos diretores ou dos códigos de obras e posturas, mas não acontecia efetivamente, e a iniciativa privada transformava esses espaços conforme seus interesses.

A transformação de terra rural em urbana também não era regulamentada nacionalmente; ainda hoje ocorre de acordo com o perímetro urbano estabelecido pelos municípios. Dessa forma, os municípios cresceram de território segundo o interesse dos proprietários de terra, que decidiam transformar suas terras agrícolas em terras na cidade, cujo preço é mais elevado e o poder de construção, maior.

Todo esse processo de transformação da terra nas cidades, junto ao lados dos investimentos públicos, foram conformando as localizações, valorizando determinadas áreas e expulsando para longe delas a população de baixa renda, promovendo a segregação socioespacial.

Os investimentos públicos seguiam as áreas de valorização das cidades; quando não, os investimentos privados os previam, através de informações privilegiadas, e terminavam seguindo o mesmo

direcionamento. Havia, portanto, um casamento entre investimentos públicos e privados. Dessa forma, as cidades foram se expandindo, independente dos planos diretores. Como bem afirmam Villaça (2004) e Maricato (2014), os planos muitas vezes serviam mais de discurso ideológico para satisfazer às demandas do povo do que de reais orientadores do crescimento urbano.

Aparentemente a política urbana é resultado da soma de obras descomprometidas com o processo de planejamento. Os planos cumpriram o papel do discurso mas não orientaram os investimentos (MARICATO, 2014).

Além disso, o planejamento urbano, durante grande parte do século XX, não levou em conta a cidade como um todo. As áreas de moradia da população de baixa renda, por exemplo, não eram consideradas, ou não havia propostas concretas para elas. A temática central era, na maioria das vezes, a infraestrutura – principalmente a rodoviária –, e representava os interesses de pequena parcela da sociedade concentrada em poucas áreas.

Dessa forma, as cidades foram se construindo à revelia da lei, e até independente dela, o que conformou a enorme irregularidade e ilegalidade observadas nas cidades brasileiras até hoje. Essa irregularidade, entretanto, não é responsabilidade somente das classes de baixa renda, mas também das mais altas, que se utilizam dos seus privilégios adequando as decisões públicas às suas necessidades. Assim, segundo Maricato (2014), “a ilegalidade da propriedade da terra urbana não diz respeito só aos pobres”.

Dessa forma, grande parte das cidades brasileiras foi sendo construída de acordo com os interesses de pequenos grupos, apoiados pelo Estado por meio dos investimentos públicos e do planejamento urbano. O problema não foi a falta de leis, ou de planos, mas sim a falta de comprometimento desses instrumentos com a realidade urbana, o caráter patrimonialista da sociedade brasileira e, consequentemente, o privilégio de determinados grupos em detrimento da maioria da população pelo Estado brasileiro.

[...] dentro das contradições que caracterizam o “ornitorrinco” brasileiro, dentro da lógica que permite um avanço nas aparências para garantir a continuidade do atraso, não é por falta de leis que uma ocupação mais democrática da terra não ocorre (MARICATO, 2014, grifos da autora).

Todo esse processo provocou um tipo de ocupação característico do Brasil: uma ocupação desigual da terra urbana nas grandes cidades brasileiras, excludente, não contínua e espaçada, o que tornou a terra escassa e a localização uma mercadoria de alto preço. A segregação urbana tornou-se presente em todas essas cidades, e os pobres pagam atualmente um alto custo por não conseguirem morar oficialmente em boas localizações. O preço caro do deslocamento casa-trabalho, quando moram nas periferias, ou a insegurança de permanência no local de origem, quando moram em áreas mais centrais, são parte do dia a dia das classes de renda mais baixa, consequência da não regularização

dos assentamentos ilegais.

A irregularidade desses assentamentos permanece ao longo do tempo devido a duas questões principais, discutidas ao longo dos próximos capítulos: a terra que ocupam não pertence a eles, e este é um dos mais importantes conflitos existentes nas cidades brasileiras; as construções desses assentamentos não conseguem adequar-se à legislação urbanística existente, padrão para todas as cidades brasileiras, pensada somente para a porção produzida pelo mercado imobiliário. A legislação brasileira não considera a diversidade de construções existentes nas cidades das diferentes regiões do país.

CAPITULO 2.