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A produção do espaço urbano e das localizações nas cidades brasileiras

A formação da desigualdade socioespacial em Fortaleza

1.1 A produção do espaço urbano e das localizações nas cidades brasileiras

Durante o século XX, a produção do espaço urbano no Brasil foi marcada pela desigualdade do acesso à terra e pela valorização desigual de porções de seu território. Dois fatores são importantes para condicionar esses acontecimentos: a) a terra enquanto mercadoria de alto preço e propriedade privada e b) o planejamento urbano que não atendeu às cidades de forma integrada, considerando todo o território e todos aqueles que o ocupam. O principal resultado disso foi a exclusão de grande parte da população do acesso à moradia digna e aos serviços oferecidos pelas cidades, gerando uma grande precariedade nelas.

A terra transforma-se em mercadoria a partir do momento em que só se pode acessá-la por meio da compra e venda; consequentemente, ela passa a ter um preço, cada vez mais elevado nas cidades contemporâneas. Esse preço, entretanto, não está relacionado simplesmente à existência, ou aos atributos naturais da terra, mas principalmente ao processo social de transformação, que acontece a partir da produção do espaço, que tem como produto a localização.

Localização é a diferenciação do espaço, a partir da ação da sociedade, tornando a terra urbana única. Esse caráter é consequência do que acontece ao seu redor, ou seja: infraestrutura existente, proximidade com outras atividades ou equipamentos urbanos e permissividade de construção imobiliária em seu espaço. Por causa desse conjunto de elementos, não é possível a existência de duas localizações iguais. Também não é possível reproduzi-la, o que a torna exclusiva. Essa característica singular é tratada por Déak (2001) como “localização” e por Villaça (1985) como “terra- localização”. Como a localização resulta de um conjunto de elementos e características do que existe ao seu redor, cada interferência no espaço urbano faz com que ela seja alterada, de modo que são produzidas novas localizações. Dessa forma, o produto da produção do espaço são localizações, e não localização, visto que uma interfere diretamente nas outras (VILLAÇA, 1985).

Déak (2001, p. 77) define, portanto, que o preço da terra é resultado do que é pago por sua localização: “[...] o preço da terra, [...] [é] a forma predominante em que o pagamento por localização se materializa no capitalismo contemporâneo”.

Esse preço não é determinado somente pela localização, mas também pelo mercado de terras ditado pelos proprietários fundiários. O controle da oferta, em relação à demanda, que também interfere nesse preço, é controlado pelos proprietários, que disponibilizam, ou especulam, de acordo com seus interesses. No Brasil, como não há regulação desse mercado, bem como do mercado imobiliário, pelo Estado, o preço das terras é definido pelos proprietários.

Entretanto, o Estado é o agente mais importante na produção de localizações, tanto como produtor direto quanto como regulador, interferindo diretamente no preço daquelas. Como produtor, a sua interferência ocorre uma vez que a provisão de infraestrutura urbana e de equipamentos públicos é fator condicionante do preço de uma localização. Enquanto regulador, é o Estado quem define o que pode ser construído em determinada área e o quanto pode ser construído, fatores que estabelecem o potencial de transformação de um terreno em produto imobiliário, o que também aumenta o seu preço. Dessa forma, a produção do espaço urbano, a partir do conjunto de investimentos do Estado, e dos setores privados, tem como resultado localizações diferenciadas, com preços diversos, mais ou menos altos, o que dita onde estarão situadas as atividades e as classes sociais. Esse processo provoca uma competição pelas localizações, vencendo aqueles que podem pagar mais caro, o que condiciona quem e o que vai ocupá-las.

O planejamento urbano é o principal instrumento do Estado para interferir nesse processo, antevendo as valorizações da cidade, determinando a distribuição espacial de atividades e equipamentos públicos e, principalmente, garantindo às classes sociais o compartilhamento do território.

No planejamento urbano, os instrumentos urbanísticos têm o importante papel de redistribuir e compensar os ganhos privados a partir da produção das localizações. Eles possibilitam ao Estado regular a produção do espaço, permitindo que todos tenham acesso a localizações adequadas e evitando valorizações discrepantes do espaço urbano. Essa regulação deve ter como objetivo final a democratização do espaço urbano e das localizações.

A capacidade de regulação irá diferenciar-se dependendo da natureza do Estado. No caso dos Estados-Providência, esses instrumentos têm sido mais eficazes na redistribuição dos ganhos na cidade do que nos Estados Liberais, compensando investimentos públicos e privados, conforme exposto no capítulo 3, com o exemplo da França.

No âmbito urbano, é para “reequilibrar” a eventual heterogeneidade dos investimentos em infraestrutura (que são, por sua natureza, caros e de difícil implementação), que buscou-se no contexto dos Estados-Providência e das políticas keynesianas, dar ao Estado “instrumentos” capazes de fazer essa regulação urbanística. São os instrumentos urbanísticos, cuja função é redistribuir, por meio de taxas e compensações, esses desequilíbrios de infraestrutura (FERREIRA, 2013, p. 68, grifos do autor).

No Brasil, ao longo de todo o século XX, o Estado tem priorizado os interesses das classes dominantes em detrimento dos interesses coletivos, devido ao caráter patrimonialista dessa sociedade. O planejamento urbano não tem cumprido seu papel de redistribuir os ganhos ou equilibrar os investimentos; pelo contrário, a maior parte dos grandes investimentos públicos tem reforçado a desigualdade do espaço urbano. Não há regulação das localizações, o que, consequentemente, tem ampliado a desigualdade de acesso aos serviços da cidade.

Os instrumentos urbanísticos, propostos no final do século XX no Brasil, têm o intuito de reverter essa lógica. Entretanto, eles são utilizados por aquele mesmo Estado que representa interesses patrimonialistas e, portanto, não têm tido os resultados a que se propõem.