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As ideias fora do lugar

1 Ato ou efeito de revolver (o que estava sereno) 2 Ação ou efeito de

4.3 Segundo ciclo: o Movimento Nacional de Reforma Urbana

4.3.2 O Estatuto da Cidade e as ZEIS

Após a aprovação da Constituição Federal, diversas foram as tentativas de regulamentação do capítulo da política urbana e de aprovação dos instrumentos e temas que haviam ficado de fora daquele capítulo. Isso se concretizou somente em 2001, com o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001).

Essa lei teve origem no Projeto de Lei no 775, de 1983, chamada Lei de Desenvolvimento Urbano (LDU), que previa a adoção de instrumentos de controle da especulação imobiliária e foi desenvolvida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano. Entretanto, nunca chegou a ser votada, pois ia de encontro aos interesses hegemônicos (PAIVA; FROTA; OLIVEIRA, 2015).

O Estatuto da Cidade regulamenta o capítulo da política urbana da Constituição Federal e traz novos instrumentos, como os de participação popular, os de financiamento da política urbana e os de regularização fundiária urbana, o que significou grande avanço na legislação. Entretanto, de todos esses instrumentos, somente os de regularização fundiária são autoaplicáveis, por estarem previstos em leis federais. Os demais deveriam ser regulamentados nas legislações municipais, através dos planos diretores, principais instrumentos da politica urbana desde a aprovação da Constituição Federal de 1988.

Os planos diretores tornaram-se, portanto, obrigatórios para diversos tipos de municípios, principalmente a partir do Estatuto da Cidade68, e não mais somente para aqueles com mais de 20 mil habitantes, como previa a Constituição Federal.

O Estatuto da Cidade consolida, então, o direito à cidade, defendido pelo MNRU, bem como a função social da propriedade, e regulamenta os instrumentos de participação popular como importante meio para que isso aconteça.

O direito à cidade defendido por aquela lei, segundo Saule (apud PAIVA; FROTA; OLIVEIRA, 2015, p. 27), “é o direito de todos os habitantes de ter uma cidade com qualidade de vida e com condições de garantir as funções essenciais de todos os habitantes numa perspectiva coletiva”.

68 Deverão desenvolver planos diretores, obrigatoriamente, os seguintes municípios, além dos que têm mais de 20.000

habitantes (BRASIL, 2001):

- integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

- onde o poder público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;

- integrantes de áreas de especial interesse turístico;

- inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional;

- incluídas no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.

Os instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade regulariam o uso da propriedade urbana em prol do bem comum, em detrimento da especulação imobiliária da terra urbana e da valorização da localização a partir de investimentos privados. Além disso, os instrumentos de participação popular garantiriam a construção coletiva da cidade, recriando-a de acordo com o desejo das pessoas, garantindo também o lugar de todos nas cidades brasileiras.

Diversos foram, portanto, os instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade. Nesta tese, focaliza-se aquele que reúne todos os princípios em um só instrumento, as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). As ZEIS garantem o direito à cidade para as pessoas de baixa renda que moram lá, o cumprimento da função social da propriedade e a participação popular através da consolidação do Conselho Gestor da ZEIS, exigido por lei.

As ZEIS foram propostas em consequência da necessidade de se tratar as ocupações irregulares, ilegais e precárias nas cidades brasileiras, que já eram numerosas no início da década de 2000, não mais somente nas grandes cidades. Era importante tanto a regularização fundiária quanto a melhoria das condições habitacionais e a provisão de infraestrutura e equipamentos urbanos coletivos. A luta dos movimentos sociais durante a década de 1990 comprovam isso.

Os instrumentos de regularização fundiária ganhariam nova importância a partir do reconhecimento das ZEIS, que serviriam tanto como garantia de permanência das comunidades nos locais onde moram, a favor da luta pela não remoção, quanto pela possibilidade de fazer as terras vazias cumprirem sua função social. Além disso, a importância da participação popular cresceria, pois passaria a ser essencial às intervenções previstas para essas áreas, através dos Conselhos Gestores das ZEIS. A proposta das ZEIS naquele momento não foi uma novidade no Brasil. Já existiam experiências registradas em alguns municípios desde a década de 1980 (como a experiência do Recife com o Plano de Regularização das ZEIS – PREZEIS), mas às vezes utilizando outros nomes, como Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), por exemplo. O Estatuto da Cidade somente regulamentou a sua utilização enquanto lei federal, determinando que os municípios fizessem a previsão destas em seus planos diretores.

4.3.3 As ZEIS

As ZEIS buscam garantir a regulamentação dos assentamentos precários através de sua urbanização e regularização fundiária, contrariamente à sua remoção, a partir de um plano, que utilize um padrão urbanístico próprio de cada assentamento, sempre acompanhado pelo Conselho Gestor da ZEIS.

A concepção básica do instrumento das ZEIS é incluir, no zoneamento da cidade, uma categoria que permita, mediante um plano específico de urbanização, o estabelecimento de um padrão urbanístico próprio para o assentamento.

A possibilidade legal de se estabelecer um plano próprio, adequado às especificidades locais, reforça a ideia de que as ZEIS compõem um universo diversificado de assentamentos urbanos, passíveis de tratamentos diferenciados. Tal interpretação agrega uma referência de qualidade ambiental para a requalificação do espaço habitado das favelas, argumento distinto da antiga postura de homogeneização, baseada rigidamente em índices reguladores (BRASIL, 2001, p. 156).

As ZEIS, portanto, seriam a oportunidade de efetivação dos avanços nos direitos garantidos pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade, para a população de baixa renda, enfrentando a problemática fundiária, habitacional e de infraestrutura.

A premissa prioritária das ZEIS é a regularização fundiária, o que garantiria o enfrentamento da disputa desigual pela localização nas cidades brasileiras. Evitaria também a expansão indefinida da cidade a partir do deslocamento dessas comunidades para a periferia.

Além disso, uma outra premissa, o zoneamento urbano especial, com provisão habitacional e de infraestrutura, possibilitaria o pensamento conjunto entre a política urbana e a política habitacional nas cidades, promovendo investimentos nas áreas mais prioritárias, em detrimento dos investimentos que favorecem somente as suas áreas mais valorizadas.

As ZEIS deveriam, portanto, garantir uma distribuição mais justa do espaço urbano, através da produção de localizações distribuídas mais igualitariamente na cidade, e o acesso mais democrático à elas.

Entretanto, na maioria dos municípios brasileiros, esse instrumento só foi previsto depois da exigência feita pelo Estatuto da Cidade. No período, entre 2001 e 2009, de acordo com uma pesquisa do Observatório das Metrópoles (SANTOS JR.; MONTANDON, 2011, p. 31), houve um crescimento expressivo na quantidade de municípios que previram as ZEIS em seus planos diretores. O aumento foi maior a partir de 2005, o que se associa às campanhas e atuação do Ministério das Cidades. Mesmo com essa realidade, poucos municípios efetivaram as ZEIS, por exemplo, bem como outros instrumentos de cumprimento da função social da propriedade. Dessa forma, a inserção desses instrumentos nos planos diretores foi uma vitória, mas não foi suficiente para garantir os direitos conquistados; isso porque a autoaplicabilidade do instrumento não é definida, como é o caso de Fortaleza, remetendo à legislação específica posterior, ou mesmo nem remetendo a essa legislação, e em alguns planos, apesar de previstas, não há delimitação espacial do instrumento.

A pesquisa evidenciou uma generalizada inadequação da regulamentação dos instrumentos nos Planos Diretores no que se refere à autoaplicabilidade ou efetividade dos mesmos, principalmente no caso dos instrumentos relacionados à indução do desenvolvimento urbano. Tal inadequação gera uma insuficiência no que se refere à definição de conceitos e parâmetros urbanísticos, à demarcação dos instrumentos no território e à definição de prazos para implementação e operacionalização de procedimentos administrativos entre outros aspectos. Mesmo que alguns instrumentos requeiram regulamentação específica ou que suponham

detalhamento de seu modo de operar em regulamento próprio, aquilo que cabe ao Plano Diretor definir, especialmente a incidência dos instrumentos no território, de um modo geral está precariamente disposto nos Planos Diretores. (SANTOS JR.; MONTANDON, 2011, p. 34).

As conquistas do segundo ciclo, portanto, não se efetivaram em reais ganhos nas cidades brasileiras.