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As ideias fora do lugar

1 Ato ou efeito de revolver (o que estava sereno) 2 Ação ou efeito de

4.2 Primeiro ciclo: o início do debate

Os debates acerca da Reforma Urbana no Brasil têm início na década de 1960, a partir da compreensão da realidade brasileira apresentada durante o governo de João Goulart (1960-1964), quando o déficit habitacional do país já estava contabilizado em 8 milhões de moradias e identificou-se grande necessidade de infraestrutura urbana, principalmente nas grandes cidades. Esse panorama foi resultado do crescimento acelerado das cidades brasileiras no início do século XX, causado principalmente pela migração campo-cidade, o que não foi acompanhado pelo planejamento urbano, nem pelo provimento de infraestrutura. Era necessário, portanto, uma reforma estrutural, baseada em diversas temáticas, entre elas a questão urbana. O debate sobre a Reforma Urbana era novo no Brasil, uma vez que a problemática urbana era também razoavelmente nova; entretanto, ele se pautou nas discussões já existentes, e fortes, no país sobre a Reforma Agrária.

Contribuiu para a consolidação desse cenário de reflexões o envolvimento de técnicos e profissionais da temática urbana na discussão sobre as problemáticas da cidade. Em 1963, foi realizado o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU), organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e com apoio do governo através do Instituto de Aposentadorias e Pensão dos Servidores do Estado (IPASE). O evento dividiu-se em duas fases: a primeira, no Rio de Janeiro, no Hotel Quitandinha, e a segunda, em São Paulo, na sede do IAB (BONDUKI; KOURY, 2010).

outras áreas, técnicos e políticos, que produziram ao final um “documento público em defesa do amplo acesso à moradia e por maior justiça social nas cidades brasileiras” (PAIVA; FROTA; OLIVEIRA, 2015, p. 14). Esse documento definiu Reforma Urbana como

o conjunto de medidas estatais, visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e ao equipamento das aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as famílias. (PAIVA; FROTA; OLIVEIRA, 2015, p. 14, grifo nosso).

Essa definição foi utilizada posteriormente para embasar a discussão quando da Constituinte, com vista à aprovação da Constituição Federal em 1988, mas de forma ampliada, devido à incorporação dos movimentos sociais ao debate.

Àquela época, arquitetos e urbanistas já defendiam a necessidade de transformar a habitação em responsabilidade do Estado, o que só foi concretizado em forma de direito social na Constituição Federal (através da Emenda Constitucional no 26, de 2000).

Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à

maternidade e à infância, a assistência dos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 2000, grifo nosso).

Além disso, os arquitetos também discutiam acerca do espaço urbano e como este estava se conformando. As transformações, de acordo com eles, eram consequências das inúmeras incorporações de novas terras às cidades e da produção de novas localizações pela iniciativa privada, sem planejamento prévio por parte do Estado. Portanto, esses profissionais defendiam que era necessário compreender o que estava acontecendo: “Compreendemos que o que nos deve aglutinar é a vigilância constante sobre os fatos que decorrem da transformação brasileira” (ARQUITETURA. S.HRU apud RIBEIRO e PONTUAL, 2009).

Conforme exposto no capítulo 2, acerca de Fortaleza, o planejamento urbano até a década de 1960 foi ineficiente e não tratou, por exemplo, do parcelamento do solo de forma ampla e considerando a realidade das cidades brasileiras. Têm-se, como resultado desse período, grandes glebas de terras sob especulação imobiliária e, consequentemente, a indução da necessidade de expansão da infraestrutura urbana e a construção de altos índices de informalidade urbana e habitacional.

essas cidades foram crescendo por adição sucessiva de novas áreas sem que alguém cuidasse de pensar nelas como um todo orgânico cuja fórmula de evolução não pode ser o simples crescimento periférico. Desrespeitada a dinâmica própria dos organismos – embora organismo social – as anomalias se tornam fatais e arrastam às consequências inevitáveis. O espaço urbano se distribui mal entre as diversas funções a que se destinam, as condições locais mais favoráveis deixam de ser aproveitadas, os equipamentos fundamentais se tornam insuficientes e não mais atendem satisfatoriamente à população (BALTAR apud RIBEIRO; PONTUAL, 2009).

no conceito de Reforma Urbana estabelecido a partir daquele seminário, era algo iminente e que aparece em outras falas, como na do arquiteto Wilheim (apud RIBEIRO; PONTUAL, 2009, p. 05):

Quando se referiu à RU [Reforma Urbana] no Brasil, Wilheim também destacou que ela poderia assumir diferentes formas, mas mesmo assumindo aspectos diversos, deveria seguir objetivos comuns, como o planejamento urbano em longo prazo, o estabelecimento de prioridades, a utilização de terrenos abandonados que aguardam especulativamente sua valorização e uma melhor distribuição dos recursos financeiros.

A terra urbana e sua condição de propriedade privada foi definida como raiz da problemática urbana, e esse entrave deveria ser rompido. A terra deveria ser utilizada para benefício da coletividade. Segundo Wilheim (apud RIBEIRO; PONTUAL, 2009, p. 05),

A Reforma deve ser feita na origem. Na terra onde vamos construir a cidade. Para tanto, é necessário disciplinar o seu uso e a sua posse. A propriedade da unidade residencial, em si, é o que menos importa, dentro de uma estrutura urbana sadia. Tê-la como propriedade privada ou tê-la como usufruto permanente, que diferença representa para aquele que, na casa, busca apenas construir um lar, ou a sua morada? Esta diferença pode significar muito, para aquele que visa na necessidade humana de morar, a oportunidade de especular.

Dessa forma, o documento de resultado do SHRU apresentou como propostas, entre outras:

- a habitação é um direito, fundamental para o padrão de vida e que constitui

uma responsabilidade do estado para enfrentar o problema para além de uma ação assistencial;

- [...]

- o direito à habitação exige uma reforma urbana, ou seja, limites ao direito de

propriedade e ao uso do solo;

- a consciência popular do problema habitacional e a participação do povo

em programas de desenvolvimento de comunidades é de grande importância; plano nacional de ordenamento territorial e de habitação,

contemplando as demandas presentes e futuras é necessário para orientar a política habitacional, corrigindo deficiências quantitativas e qualitativas de moradias e equipamentos sociais (BONDUKI; KOURY, 2010, grifos nossos).

Para os arquitetos, portanto, era necessário investir em planejamento urbano a longo prazo, instituindo uma política nacional de planejamento urbano e estabelecendo um “sistema de pressão” a partir da população, que deveria ser esclarecida em relação às questões urbanas (RIBEIRO; PONTUAL, 2009). Somente assim seria possível reverter a problemática urbana, apresentada a partir do déficit habitacional e de infraestrutura, considerando a especulação imobiliária e a valorização produzida pelas novas localizações. Essa discussão, entretanto, foi silenciada pelo golpe militar aplicado no Brasil em 31 de março de 1964, que encerrou o primeiro ciclo de luta pela Reforma Urbana.