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Segundo período: a ideologia dos planos diretores

_A formação das localizações em Fortaleza e o planejamento urbano excludente

2.1 O espaço urbano desigual em Fortaleza: a produção das localizações frente a (não) consolidação do planejamento urbano

2.1.2 Segundo período: a ideologia dos planos diretores

O crescimento populacional acelerado, o início da apropriação privada da terra urbana e as mudanças ocasionadas por esses processos, tudo isso aliado ao planejamento urbano ainda muito centrado no melhoramento e embelezamento, contribuíram para a formação de muitos problemas nas cidades brasileiras até o início do século XX. Novas intervenções tornaram-se, então, necessárias, visto que as obras previstas pelos planos do período anterior já não eram suficientes.

Entretanto, o objetivo principal desse período não era solucionar aqueles problemas, ao contrário, era possibilitar a reprodução do capital e dar as bases para a consolidação do mercado imobiliário em formação, o que iria demandar obras viárias e de saneamento básico, por exemplo, em detrimento de obras de habitação, essenciais, mas que não dão retorno necessário aos investidores urbanos.

O segundo período caracteriza-se, então, pela ideologia10 dos problemas urbanos, ou seja, a sua naturalização, segundo Villaça (2004). De acordo com a ideologia desse período, o crescimento das cidades causa espontaneamente esse tipo de problema, ou seja, ele é natural da transformação urbana, e para solucioná-lo são necessários técnicas e métodos bem definidos. Para o desenvolvimento de técnicas e métodos há a necessidade de profissionais especializados. Os planos passaram, portanto, a ser tecnicistas, o que facilitou a dominação.

[os planos] foram estratagemas dos quais as classes dominantes lançaram mão para renovar a ideologia dominante e com isso contrabalançar a tendência de enfraquecimento de sua hegemonia, contribuindo assim para sua manutenção no poder e para o exercício da dominação (VILLAÇA, 2004, p. 182).

10 Acrescenta-se ao conceito de ideologia, já tratado no capítulo 1, a seguinte reflexão de Villaça (2004): “conjunto de ideias

fundamentais desenvolvidas pela classe dominante visando facilitar a dominação, ocultando-a. E é assim que as classes dominantes e o Estado desenvolvem os planos para efetivar seus interesses”.

Foi durante esse período que se difundiu no Brasil o Plano Diretor, disseminando-se com esse nome a partir de 1940, mas também utilizando diversos outros semelhantes até a década de 1980. Os nomes modificavam-se de acordo com os interesses do Estado (VILLAÇA, 2004). Em Fortaleza, o primeiro Plano Diretor foi o desenvolvido por Hélio Modesto em 1963, e é o que aborda uma maior diversidade de temáticas, nesse período.

Não há, nesses planos, a exatidão entre planejamento e ação do Estado, como no período anterior. Algumas de suas propostas até foram cumpridas, como por exemplo as de intervenção viária, mas não se comparam à implementação dos planos de melhoramento e embelezamento, que eram praticamente planos de ação.

Durante o período dos governos militares, principalmente durante a década de 1970, os planos serviram para legitimar a ação do Estado; entretanto, devido ao desprestígio do termo Plano Diretor, em consequência da não realização de suas propostas, começou-se a utilizar o nome Plano de Desenvolvimento Integrado. Esse nome também fazia referência à integração entre as instâncias de poder, visto que eram governos centralizadores, a integração vinha de cima para baixo, até chegar aos governos municipais. A tecnocracia do período, defendendo a importância do caráter técnico dos planos, representou a ausência da legitimação popular, marca dos governos militares.

Durante esse período, houve também um aumento das temáticas abordadas pelos planos, incluindo- se, entre outros assuntos, os estudos econômicos. Eles se tornaram interdisciplinares, passando a ser tratados por diversos profissionais de diferentes áreas.

A consciência social cresceu, com a formação dos movimentos sociais no Brasil. Surgiram as primeiras sementes do Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU) e as exigências tornaram-se mais diversas e consistentes. A ação do Estado começou a ser questionada em relação às obras de infraestrutura, principalmente aquelas que favoreciam somente o setor imobiliário. Tornou-se complicado para o Estado não representar essas exigências nos planos, o que fez com que eles não pudessem ser cumpridos, pois iam de encontro aos interesses hegemônicos. Os planos começaram a se configurar mais como discurso ideológico do que como plano de ação. Portanto, o Estado não assumia esses planos e muitos deles, ou a maior parte de seus textos, ficaram “engavetados”. Muitas e grandes obras de infraestrutura, principalmente, foram feitas nesse período, mas elas independeram dos planos, atendendo aos interesses das classes dominantes.

Os planos desse período foram desenvolvidos fora das prefeituras, por escritórios privados, representando a tecnocracia e a ideologia da técnica e da ciência. Houve, portanto, um grande distanciamento entre os planejadores – que tomavam as decisões –, os técnicos da prefeitura, o executivo municipal e a população (VILLAÇA, 2004).

“não há como anunciar obras de interesse popular, pois estas não serão feitas, e não há como anunciar as obras que serão feitas, porque estas não são de interesse popular”. De acordo com o autor, esse período consolidou-se como o do “plano-discurso”, sendo este o plano que se “satisfaz com sua própria ‘verdade’ e não se preocupa com sua operacionalização e sua exequibilidade. Sua ‘verdade’ bastaria” (VILLAÇA, 2004, p. 204). Esse momento é, então, marcado pelos planos desvinculados das políticas públicas e da ação do Estado. O autor faz, desse modo, uma grande diferenciação entre a prática do planejamento e o discurso do planejamento.

Além dos planos, uma lei de grande importância para a organização do espaço urbano foi aprovada nesse período, a Lei de Parcelamento do Solo (Lei nº 6.766, de 1979). Essa lei não é um plano urbano, pois não regula a ocupação do espaço, mas tem caráter estritamente espacial e interfere tanto na formação do espaço urbano quanto na legalização desse espaço. Ela deve orientar os planos diretores em relação ao parcelamento do solo urbano. Entretanto, é importante destacar que grande parte das áreas dos municípios brasileiros já passava por um intenso processo de parcelamento do solo, como era o caso de Fortaleza, regulado somente pelos Códigos de Obras, ou mesmo sem regulamentação. A lei, por ter uma abrangência nacional, não atentou para as especificidades dos municípios, não considerando a realidade existente quando de sua aprovação; ela padronizou a regulamentação do parcelamento do solo, desconsiderando, portanto, grande parte do que estava sendo produzido nas cidades. A lei estabeleceu um tamanho mínimo para os lotes urbanos11, que é muito maior do que o que já existia nas favelas e loteamentos irregulares no país. Dessa forma, a lei fortaleceu a ilegalidade urbana de grande parte dos lotes das cidades brasileiras.

Em Fortaleza, entre fins do século XIX e a década de 1930 não foi desenvolvido nenhum plano, fato atribuído à descontinuidade política decorrente das sucessivas trocas de governantes. Esses trinta anos são tratados como um período de ausência de planejamento urbano. Mas apesar da falta de planos, essas décadas foram de grandes mudanças na cidade, resultantes, dos avanços tecnológicos e da implantação de infraestrutura. A chegada do automóvel, por exemplo, possibilitou a saída da população de alta renda da área central e a expansão urbana da cidade, que tem início principalmente a partir de 1930, com os novos loteamentos (BRASIL et al., 2012, p. 232). O automóvel demandou, entretanto, sistema viário, que começou a ser ampliado.

Somente em 1933 um novo plano foi proposto para a cidade, mas ele não foi aprovado pela Câmara Municipal. Em 1947, Sabóia Ribeiro desenvolveu o Plano de Remodelação e Extensão de Fortaleza, que apresentou como principal característica

11 A lei define, por exemplo, 125 m2 como a área mínima do lote, com 5 m de testada mínima e 25 m de profundidade, para

a percepção de que a necessidade de intervenções na área central torna indispensável o ordenamento do restante da cidade. Desta forma, a proposta objetiva articular as novas áreas da cidade com sua área já planejada (no século XIX) e revalorizar o centro, mantendo seu traçado original, mas alterando principalmente suas dimensões a fim de atender às novas demandas. (BRASIL et

al., 2012, p. 232).

O plano, entretanto, não foi implementado integralmente, servindo mais como legado de ideias do que como planejador, regulador e ordenador do crescimento urbano e do espaço existente (BRASIL et al., 2012, p. 232).

Na época do desenvolvimento desse plano, Fortaleza já havia se transformado consideravelmente em consequência dos investimentos públicos e privados. A infraestrutura urbana e viária e o parcelamento do solo, resultante do processo de mercantilização da terra e de sua valorização, foram os principais investimentos na cidade.

A partir da década de 1930, o parcelamento do solo tornou-se prática comum em Fortaleza, sendo o período marcado por intenso processo de produção de novos loteamentos12, independente dos planos desenvolvidos, visto que eles não regulamentavam essa ação. Esse processo significou a intensificação dos investimentos privados na produção do espaço dessa cidade e a consolidação da especulação imobiliária, assim como a incorporação de grande parte do território municipal que hoje configura Fortaleza. Esse foi o início efetivo da produção das localizações na cidade, o que culminou no espaço urbano atual.

Os Códigos de Obras e Posturas13 regulamentavam o parcelamento do solo no início do século XX, visto que nas três primeiras décadas não havia planos, os posteriores não tratavam desse tema e ainda não havia sido criada a lei de parcelamento. Apesar dessa tentativa de regulamentação, identifica-se que já em meados do século XIX essa prática existia. Os loteamentos começaram a se intensificar e ampliar sua área de intervenção a partir de 1930, incorporando grande quantidade de terrenos rurais à área urbana da cidade.

12 É importante destacar, também, que esses loteamentos representam os oficiais constantes nos registros da prefeitura e disponibilizados para esta pesquisa; isso não significa que são todos os existentes e produzidos nas décadas destacadas, mas sim os que possuem registro. Alguns estão marcados sem informação da data de registro.

13 Segundo Santos (2012, p. 125), até a década de 1962 a implantação dos loteamentos era aprovada com base nos

Códigos de Posturas, datados dos anos 1893, 1932 e 1948. “Posteriormente, a regulamentação dos loteamentos passou a

ser prevista pelas Leis de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (lei 4.486 de 1975, e lei 5.122-A de 1979, que vigora até hoje com relação ao parcelamento do solo, com algumas modificações introduzidas pelos planos diretores posteriores)”.