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As ideias fora do lugar

3.3 Mixité Sociale e o direito à cidade nas ZAC e no Programme National pour la Rénovation Urbaine

3.3.2 Programme National pour la Rénovation Urbaine

A Renovação Urbana não é uma proposta nova, mas presente em diversas épocas da história, desde o século XIX com as políticas higienistas, e desenvolvida em diversos lugares do mundo. Caracterizava- se pela demolição e reconstrução de unidades habitacionais degradadas e insalubres.

Ela [Renovação Urbana] está associada à uma forma de intervenção urbana radical de demolição-reconstrução de habitação nos quartiers populares que encontramos em numerosos países do mundo, ao norte como ao sul, e em diferentes períodos da história58 (DEBOULET, AGNÈS; LELÉVRIER, CHRISTINE, 2014, p. 11, tradução nossa).

Atualmente, entretanto, houve uma reformulação conceitual e de proposta de intervenção na Renovação Urbana, que voltou a ser utilizada em diversos países europeus, como é o caso da França.

Não se trata mais de destruir as habitações degradadas e insalubres, mas de diversificar o habitat nos quartiers para introduzir uma maior diversidade social tentando combater a formação de redutos de guetos59 (DEBOULET; LELÉVRIER, 2014, p. 11, tradução nossa).

Na França, em 2003, foi criado um programa nacional específico para tratar da Renovação Urbana, o

Programme National pour la Rénovation Urbaine (PNRU), que tem o objetivo de tratar os Quartiers Sensibles, antigas ZUS, estabelecidos pela geografia prioritária. Conforme comentado anteriormente,

essas áreas são caracterizadas pela pauperização, marginalização, concentração de grandes conjuntos habitacionais, monofuncionalidade e pouca, ou nenhuma, mistura social, além da degradação física dos edifícios e dos ambientes. Elas foram produzidas durantes os anos 1950 e 1960 a partir de uma lógica modernista de pensar a habitação social.

A Agence Nationale pour la Rénovation Urbaine – ANRU (Agência Nacional pela Renovação Urbana), também criada em 2003, é a responsável pela implementação e gestão do PNRU.

Até o início dos anos 2000 não houve nenhuma renovação daqueles espaços, mesmo que as críticas a eles tenham começado na década de 1970. A criação do PNRU objetiva, portanto renovar aquelas áreas através de intervenções físicas que promovam a diversidade a partir da inserção de mixité

sociale e fonctionnelle.

O urbanismo dos quartiers sensibles é assim apresentado como uma das principais causas das dificuldades encontradas pelas populações que vivem neles. Por isso,

58"Elle [Rénovation Urbaine] est associée à une forme d’intervention urbaine radicale de démolition-reconstruction de

logements dans des quartiers populaires que l’on retrouve dans de nombreux pays du monde, au nord comme au sud et à différentes périodes de l’histoire" (DEBOULET, AGNÈS; LELÉVRIER, CHRISTINE, 2014, p. 11).

59 “Il ne s’agit plus tant de détruire des logements dégradés et insalubres, que de « diversifier »l’habitat dans ces quartiers

pour introduire une plus grande mixité sociale en tentant de contrecarrer la formation redoutée de « ghettos »" (DEBOULET, AGNÈS; LELÉVRIER, CHRISTINE, 2014, p. 11).

os esforços se concentram sobre a reabilitação dos imóveis degradados mas também, mais estruturalmente, sobre a organização espacial dos quartiers.60

As ações do PNRU, portanto, agem diretamente sobre o espaço físico, tanto urbano quanto da edificação, inserindo novos tipos de habitação para reduzir a proporção de habitação social, equipamentos urbanos e outros usos como comércio e serviço, no intuito de alcançar a mixité sociale determinada pela SRU. Os edifícios existentes também passam por uma requalificação física. A intervenção, entretanto, deverá conseguir alcançar um equilíbrio, trazendo novas classes sociais, mas sem promover a gentrificação61.

A diversidade promovida pelo PNRU prevê também a questão morfológica, ou seja, produzir novas unidades com arquitetura diferenciada e tipologias habitacionais diversas. Além, é claro, de arquiteturas variadas para os novos equipamentos.

As áreas foco do programa são constituídas de grands ensembles, remanescentes das décadas de 1960 e 1970, principais representantes da política habitacional daquele período. São, portanto, áreas densamente construídas, mas com pouca população, com poucos terrenos livres, o que impossibilitaria a construção de novas unidades habitacionais e dos equipamentos e serviços públicos.

O PNRU se concretiza, portanto, a partir de ações de Demolição-Construção e relocação. Nesse processo, os antigos grands ensembles são destruídos, e novas edificações são construídas no lugar, seja para novos tipos de habitação, seja para equipamentos, e constrói-se também outros tipos de habitação social em outras áreas da cidade, onde serão relocadas as famílias dos imóveis demolidos, de preferência fora de ZUS (Figura 36).

60 “L’urbanisme des quartiers sensibles est ainsi présenté comme une des principales causes des difficultés rencontrées par

les populations qui y vivent. Aussi, les efforts se sont-ils concentrés sur la réhabilitation des immeubles dégradés mais aussi, plus structurellement, sur l’organisation spatiale des quartiers” (Disponível em: <http://www.vie-publique.fr/politiques- publiques/politique-ville/renovation-urbaine/>).

61 As propostas de Renovação Urbana atualmente na França têm o objetivo de inserir outras classes sociais em áreas onde

atualmente vivem somente classes de baixa renda. Buscam incorporar à áreas exclusivas de habitação social a habitação de mercado. O objetivo é promover a diversidade social. Essa lógica se opõe à logica das ZEIS no Brasil, por exemplo, visto que estas têm o objetivo de garantir a permanência de uma determinada classe social, a de baixa renda, no lugar. As ZEIS podem promover guetos, se não forem devidamente tratadas para se integrar à cidade formal e dialogar com outras classes sociais.

FIGURA 36. Intenções do PNRU

Fonte: Epstein (2013, p. 85). Modificado pela autora

A demolição dos edifícios possui um objetivo duplo: “apagar os principais estigmas dos grands

ensembles e liberar terreno nos quartiers para gerir e diversificar o habitat”62 (BOURDON et al., 2012, p. 10, tradução nossa). O trabalho desenvolvido a partir das demolições dos edifícios existentes, portanto, permite também modificar a densidade da área, aumentando-a ou diminuindo-a de acordo com cada caso específico.

A diversificação da oferta habitacional inclui diversos tipos: para ascensão social à propriedade, para ascensão livre à propriedade, locação social para famílias de rendas médias (visto que para as de rendas baixas já existe no local) e locação livre para funcionários de empresas (para Association

Foncière Logement – AFL).

Os edifícios que não são demolidos passam por uma requalificação para se adequar às normas técnicas, ao conforto das habitações ou à adaptação às normas energéticas (EPSTEIN, 2013, p. 13, tradução nossa).

A diferença fundamental entre as operações de Rénovation Urbaine do PNRU, e as de Renouvellement

Urbain, que eram feitas anteriormente, é que as novas incluem atores privados em sua execução,

desenvolvendo-se parcerias, onde antigamente só o Estado agia. A elaboração da operação é desenvolvida, portanto, a partir de um acordo que precisa ser negociado e atender aos interesses dos atores, resultando em um compromisso. Estabelecem-se, dessa forma, esses interesses:

A coletividade: que destaca as restrições urbanas (especificações), as intenções do povo (ofertas sociais e preços controlados), eventualmente os desejos em termos de alturas das habitações, enfim, as restrições operacionais e econômicas, em particular, um preço de saída acessível das habitações;

62 “Effacer les principaux stigmates des grands ensembles et libérer des terrains dans les quartiers pour aménager et

O operador privado: que cruza as restrições impostas pela cidade, o custo da operação fundiária, e sua análise de mercado.63 (BOURDON; NOYÉ et al., 2012, p. 45, tradução nossa).

O custo da operação fundiária é um dos pontos mais negociados entre os promotores privados e o Estado, visto que ele interfere diretamente no custo da operação. O Estado tem um grande controle em relação a esse custo, uma vez que é o proprietário dos terrenos, pois são áreas já ocupadas pelos

grands ensembles. Além disso, por parte das habitações sociais a serem construídas, o valor destas é

controlado pelo Estado, conforme vimos anteriormente, e devem prever a sustentabilidade econômica de um período de 40 a 50 anos.

Por esses motivos, e para que se possa fazer um repasse de custo ao usuário final que seja adequado ao mercado de imóveis, as negociações com o poder público são de grande importância. O valor do lucro do promotor privado deverá considerar os controles feitos pelo Estado e as condições de se tornar o imóvel viável e atrativo para o mercado. Dessa forma, algumas manobras são feitas para que a operação seja rentável, como o aumento da densidade e o aumento no número de unidades para o mercado, chegando à 55% desse tipo de unidade em comparação àquelas sociais.

Esse programa, em consequência de sua característica de demolição-construção, e consequentemente de substituição de classes sociais em áreas onde atuam, é bastante questionado pelos movimentos sociais. Muitos moradores não ficam satisfeitos com a demolição de suas atuais residências para serem construídas outras. Também gera insatisfação o fato de alguns habitantes originais terem que se mudar da área para outra, para ceder lugar para habitação de mercado, por exemplo. O fato de existirem muitos imigrantes árabes e africanos nesses grands ensembles também faz com que a necessidade de união deles os coloque contra o rearranjo das moradias.

Apesar das resistências, atualmente, na região da Île-de-France, 126 quartiers sensibles estão inseridos no PNRU, que prevê a construção de 42 mil novas habitações sociais, frente a 38.750 demolidas (http://www.drihl.ile-de-france.developpement-durable.gouv.fr/le-programme-national-de- renovation-urbaine-1-pnru-a3603.html). A maior parte desses quartiers estão nos arredores imediatos da cidade de Paris (Figura 37), como é o caso de Balzac, localizado na cidade Vitry-sur-Seine, que será apresentado a seguir. Entretanto, é importante ressaltar que, apesar de o número de novas unidades ser maior do que a de demolidas, grande parte das que serão construídas, não se localizam no perímetro da intervenção, promovendo relocação da população.

63 “- la collectivité: qui met l’accent sur les contraintes urbains (cahier de charges), les intentions de peuplement (une offre

très sociale, des prix maîtrisés), éventuellement des souhaites en termes de tailles de logement, enfin des contraintes opérationnelles et économiques, en particulier un prix de sortie accessible des logements;

- l’opérateur: qui croise les “contraintes” imposées par la ville, le coût de la charge foncière, et son analyse du marché" (BOURDON; NOYÉ et al., 2012, p. 45)

FIGURA 37. Perímetros PNRU na Île-de-France

Fonte: <http://www.iau-idf.fr>. Modificado pela autora

3.3.2.1 Rénovation Urbaine em Balzac – Vitry-sur-Seine

A cidade de Vitry-sur-Seine teve a produção do seu espaço, desde o início do século XX, marcada pela inserção de indústrias, e consequentemente, de conjuntos habitacionais. A partir da década de 1920 foram construídos os primeiros HBM (Habitation à Bon Marché – Habitação de Bom Mercado), destinados a abrigar a população operária da cidade (DE SOUZA, 2014). A construção dos grandes conjuntos habitacionais, entretanto, não se limitou a esse período, e durante as décadas de 1950 e 1960 outros grands ensembles foram construídos na cidade, incluindo a área de Balzac, localizada na porção sudeste da cidade (Figura 38).

Balzac foi então construída entre os anos de 1964 e 1968 e compreende 1.231 habitações sociais, com as características das áreas que abrigavam os grands ensembles, com grandes edifícios em formato de barras e torres de concreto, pouca diversidade de formas urbanas, caracterizada basicamente por linhas retas e edifícios com morfologia semelhantes entre si, muitas unidades de habitação social, e pouca diversidade de uso.

FIGURA 38. Localização da Cité Balzac na cidade de Vitry-sur-Seine

Fonte: <http://www.vitry94.fr>

A proposta do PNRU para a área se concretiza através da demolição de parte dos edifícios existentes, da construção de novos edifícios promovendo uma maior diversidade e relocação de parte das famílias que habitavam nos edifícios existentes para novos locais na cidade. O espaço físico, portanto, se transformou consideravelmente e intervenções urbanas também foram inseridas na proposta (Figura 39 e 40).

FIGURA 39. Transformações na Cité Balzac em uma década

FIGURA 40. Cité Balzac antes das demolições e proposta final

Fonte: <http://www.atelier-cr.com/slider.php?id=21&menu=2&sscat=5>

Dessa forma, a proposta para a área inclui:

• Criação de uma nova malha viária, com redesenho das vias e novos estacionamentos (Figura 41 e Figura 42);

• Inserção de infraestrutura e equipamentos públicos (Figura 43);

• Demolição dos edifícios que impedem o crescimento do quartier e sua relação com o entorno e restante da cidade;

• Construção de novos quarteirões que introduzam outras tipologias de edifícios, no intuito de promover a diversidade arquitetônica, de usos e de tipos de habitação (Figura 44 e Figura 45);

• Requalificação dos edifícios que irão permanecer para adequá-los às condições climáticas, às novas normas etc. Essa requalificação inclui tanto o processo de reformas na estrutura do edifício, pinturas e redesenho de fachadas quanto ações de residencialização64 (Figura 46).

64 "Résidentialization: ce néologisme est devenu en quelques années une des recettes préférées des projets de rénovation

urbaine. La doctrine officielle est de définir un espace clôturé et avec contrôle d’accès autour de l’immeuble de logements qui permet d’organiser un certain nombre d’usages résidentiels – stationnement, gestion de déchets, espace vert ou de jeux, cheminement – entre l’entrée de l’immeuble et l’espace public. La résidentialisation implique un découpage claire entre cet espace public et l’îlot redéfini, support d’une possible mutation future" (LÉONHARDT, 2013, p. 118). “Residencialização: esse neologismo tornou-se, em alguns anos, uma das receitas preferidas dos projetos de renovação urbana. A doutrina oficial é de definir um espaço cercado e com controle de acesso em torno de um imóvel de habitação que permita organizar um certo número de usos residenciais – estacionamento, gestão de dejetos, espaço verde ou de jogos, caminhos – entre a entrada do imóvel e o espaço público. A residencialização implica um corte claro entre este espaço público e a quadra redefinida, suporte de uma possível mudança futura” (tradução nossa).

figura 41. Planta da intervenção

Fonte: Acervo próprio

FIGURA 42. Redesenho do sistema viário

Fonte: Acervo próprio

FIGURA 43. Requalificação de edifício antigo: residencialização e pintura da fachada

Fonte: Acervo próprio

Figura 44. Edifício novo: creche

Fonte: Acervo próprio

FIGURA 45. Novos edifícios de habitação

Fonte: Acervo próprio

Figura 46. Novos edifícios de uso misto, com comércio no térreo

Fonte: Acervo próprio

Em termos de números, o resultado da intervenção inclui65: • 660 habitações demolidas;

• 471 habitações reconstruídas no local, sendo: 114 habitações sociais, 197 habitações de ascensão à propriedade, 115 habitações dedicadas a 1% patronal (trabalhadores da intervenção) e 45 para locação livre;

• 849 habitações reconstruídas fora do local;

• 5 vias novas arborizadas que permitem abrir o quartier para a cidade e fazer a ligação com outros quartiers;

• Re-habilitação de todos os edifícios não demolidos;

• Equipamentos públicos suplementares equipados: uma praça pública de 5.000 m2, uma creche multiacolhedora (80 lugares), um salão para eventos da prefeitura, um novo centro social, um átrio com lugares para os comércios.

Em termos de financiamento, o custo total da intervenção é de 218 milhões de euros, e no intuito de viabilizá-la a operação prevê recursos de diversas origens, públicas e privadas66:

• 57.500.000 € (27%): ANRU;

• 93.000.000 € (44%): bailleurs sociaux; • 24.400.000 € (12%): cidade;

• 10.800.000 € (5%): conselho regional;

• 11.400.000 € (5%): conselho geral de Val de Marne (região); • 14.200.000 € (7%): outros.

Dessa forma, percebe-se a importante centralidade exercida pela ANRU e pelos bailleurs sociaux na operação. A cidade e os conselhos também foram parceiros, mas o Estado e o caráter social da intervenção têm maior relevância. Destaca-se, portanto, que há a presença da iniciativa privada, e consequentemente de habitações de mercado, o que estimula a mixité sociale, mas o foco principal é a diversificação e desconcentração da habitação social. Segundo dados da prefeitura de Vitry-sur-Seine, para cada demolição de habitação social foram construídas duas novas, seja no local, seja em outras áreas fora da ZUS. Reforça-se, portanto, o fato da necessidade de relocação de parte da população para outras áreas da cidade, o que desagrada os moradores.

A área da operação ainda está sendo ocupada e parte dos edifícios ainda estão sendo construídos, portanto é difícil concluir pelo seu sucesso ou fracasso. Entretanto, o que se destaca como importante nesse exemplo é a forma de se definir, planejar, executar e gerir uma intervenção desse porte com

foco social, e centrado na habitação social.

FIGURA 47. Demolição da última torre em Cité Balzac – antes

Fonte: <http://www.franceinter.fr/emission-interception-vitry-sur- seine-le-roman-de-balzac>

FIGURA 48. Demolição da última torre em Cité Balzac – depois

Fonte: <http://www.franceinter.fr/emission-interception-vitry-sur- seine-le-roman-de-balzac>