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3.2 TERRITÓRIOS DA PESQUISA

3.2.2 A Unidade Pernambucana de Atendimento Especializado

Em diálogo com a secretaria municipal de saúde de Caruaru, identificamos que existiam duas unidades de saúde de referência para as crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus na região. O Hospital Mestre Vitalino seria a referência para atendimentos em neurologia e para eventuais internamentos e a Unidade Pernambucana de Atenção Especializada (UPAE) de Caru- aru a referência para as terapias realizadas com as crianças. Como buscávamos acompanhar um processo sistemático com as crianças, optamos pela UPAE como a unidade em que realizaríamos a observação participante.

A UPAE foi inaugurada em dezembro de 2013, dentro de uma estratégia do governo do estado de Pernambuco em descentralizar serviços especializados e que tradicionalmente lotavam as unidades de Recife. Visava atender 31municipios que integram a IV Regional de Saúde (G1 CARUARU, 2013). Foi idealizada para atender pacientes em regime ambulatorial e realizava também cirurgias3. Até o surgimento da epidemia de Zika a unidade não atendia crianças no setor de fisioterapia, sendo o setor adaptado para receber as crianças com síndrome congênita do Zika Vírus em 2015.

3 A UPAE atende as seguintes especialidades: Alergologia, Anestesista, Angiologia, Cardiologia, Cirurgia Geral, Dermatologia, Endocrinologia, Fisioterapia, Gastrenterologia, Infectologia, Hematologia, Mastologia, Nefro- logia, Neurologia, Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Pneumologia, Proctologia, Reumatologia, Urologia, Radiologia, Endoscopista e Ultrassonografista.

Figura 18 – Setor de reabilitação infantil UPAE Caruaru

Fonte: Imagem produzida pelo próprio autor da tese

Em fevereiro de 2018, encaminhei um pedido de anuência para a Secretaria Estadual de Saúde, o setor de educação em saúde é o responsável pelo encaminhamento dos pedidos de pesquisa após a autorização dos setores responsáveis pelos serviços. No mesmo mês o meu pedido foi indeferido pelo setor de vigilância em saúde que argumentava que os serviços de referência eram de incumbência municipal e não estadual. Argumentei que a pesquisa não se referia a vigilância e sim da assistência em saúde, na primeira quinzena de março. Recebi, finalmente, a anuência para a realizar a pesquisa na UPAE.

De posse da carta de anuência pude encaminhar o projeto para o comitê de ética em pesquisa da UFPE, que aprovou o projeto em maio de 20184, mês que oficialmente pudemos inciar as entrevistas e a observação participante. As visitas foram autorizadas a partir de junho de 2018.

A recepção na UPAE, foi bem positiva, sendo destacado que esta seria a primeira pesquisa realizada no setor. Havia uma expectativa na equipe de terapeutas já que essa iniciativa poderia “abrir as portas” para outras pesquisas no setor, alguns profissionais tinham histórico como

pesquisadores ou eram professores universitários.

Atualmente a Unidade atende 28 crianças com SCZ, já foram mais, contudo, com o tempo, outros serviços foram implantados o que diminuiu o fluxo. A UPAE atende cidades de toda IV Geres. Uma parte da demanda, por exemplo, passou a ser atendida pela UPAE de Belo Jardim. Em Caruaru as crianças também são atendidas pela APAE e pela clínica escola da faculdade de fisioterapia da ASCES (Diário de campo, 13 de junho de 2018).

A chegada na UPAE confirmava uma suspeita e que geraria uma nova mudança nas definições do Campo, Caruaru não seria a unidade de referência, mas o agreste pernambucano abrangido pela IV Gerência Regional de Saúde (GERES)5. Apesar de algumas famílias recorre- rem aos serviços de saúde da capital é no Agreste que elas viviam e realizavam parte significativa dos tratamentos. O Agreste é o território, algo que é maior que o local de morada. O Agreste é o cenário que ajuda na construção das pessoas, ou nas palavras de Milton Santos, sobre o território, “ele é muito importante, ele é o quadro da vida de todos nós, na sua dimensão global, na sua dimensão nacional, nas suas dimensões intermediárias e na sua dimensão local” (SANTOS, 1999).

Figura 19 – Pernambuco: Regionais de Saúde

Fonte: Secretaria de saúde de Pernambuco - ivgeres.com.br

Em 2015, a Unidade foi escolhida como referência para IV GERES para as crianças em tratamento e reabilitação decorrentes da SCZV. Uma rápida adaptação foi feita no ginásio de fisioterapia que já existia para adultos com a instalação de biombos, tatames, alguns equipamentos para fisioterapia respiratória e motora. Outros profissionais foram contratados e a equipe passou a contar co três fisioterapeutas, um Terapeuta Ocupacional, uma fonoaudióloga, um psicólogo, uma nutricionista e uma assistente social, sendo que os três últimos dividiam suas atividades com o restante da unidade.

5 Com a missão de gerenciar a política regional de saúde, a partir do conhecimento do município, do território e da região, a IV Geres regula, monitora e avalia as metas estabelecidas. Outra atribuição é coordenar a construção da Rede de Atenção Regional, garantindo o acesso da população aos serviços de saúde.

A IV Geres engloba os seguintes municípios: Agrestina, Alagoinha, Altinho, Barra de Guabiraba, Belo Jardim, Bezerros, Bonito, Brejo da Madre de Deus, Cachoeirinha, Camocim de São Félix, Caruaru (Sede), Cupira, Frei Miguelinho, Gravatá, Ibirajuba, Jataúba, Jurema, Panelas, Pesqueira, Poção, Riacho das Almas, Sairé, Sanharó, Santa Cruz do Capibaribe, Santa Maria do Cambucá, São Bento do Una, São Caetano, São Joaquim do Monte, Tacaimbó, Taquaritinga do Norte, Toritama, Vertentes.

Figura 20 – Municípios que integram a IV Regional de Saúde

Fonte: Secretaria de Saúde de Pernambuco

A UPAE não foi originalmente projetada para o atendimento multiprofissional de pe- diatria, mas já contava com um setor de fisioterapia consolidado no atendimento de adultos. O público era composto, em sua maioria, por pessoas que se recuperavam de traumas e cirurgia ou que sofriam de doenças degenerativas que comprometiam o movimento (ou que causavam dor). A unidade era também referência regional para oftalmologia e pequenas cirurgias, o que também facilitou o encaminhamento das crianças para outros tratamentos dentro da unidade.

No final de 2015 que começou o boom da microcefalia, mas até aí, não vinha nada para cá, tinha uns burburinhos de que viria, de que a UPAE ia sediar micro (. . . ) como no início ainda era pouquinho, começou com muito pouco paciente, eu ainda acho que eu tenho até um cronograma de data, idade de quando todos eles chegaram aqui e ai eles foram chegando aos poucos e fomos fazendo ginástica aqui para atender adultos e crianças e tinha os treinamentos, os treinamentos sempre foram assim ou eram videoconferências que às vezes eram repetidas (Fernanda, Terapeuta, 30 anos).

No momento da entrada questionei a direção sobre quais seriam as regras de conduta para transitar pelos espaços de tratamento das crianças. A resposta dizia respeito a regras básicas de biossegurança e na utilização de jaleco e crachá da UFPE. Esses últimos elementos produziram uma “marca” na percepção da minha identidade dentro da unidade, eu seria em alguns momentos mais um psicólogo ou o professor de medicina.

Andressa responde que seria o crachá da UFPE, jaleco e sapato fechado. Penso agora nas aulas que tive com antropólogos sobre o lugar “em aberto do antropólogo” uma pergunta sobre o que faz o antropólogo e que não se aplicaria no meu caso, o lugar

do psicólogo fazia parte dessa entrada e também o lugar da UFPE e da faculdade de medicina. Todos esses crivos estavam impregnados em meu crachá (Registro de Diário de Campo, 13 de junho de 2018).

Carla chega com um embrulho, me vê e me entrega e diz:: “Ricardo, leia tudo, eu guardo tudo que é dela” e me entrega vários exames, laudos, receitas e encaminhamentos. Me chama atenção como mesmo nos documentos médicos o termo microcefalia é utilizado em detrimento da síndrome do Zika Vírus. Carla reafirma “é para você saber tudo sobre ela” (Registro de Diário de Campo, 02 de agosto de 2018).

Tinha a expectativa de que seria um campo de observação e conversas informais em sala de espera, mas, na prática, foram abertos todos os espaços terapêuticos. A minha presença se dava nos setores de fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, serviço social e terapia ocupacional, onde acompanhava e interagia nos momentos de atendimento.

Às vezes a sala de espera era o local de conversas informais que duravam o tempo da espera do atendimento. Outra opção era “escolher” uma família e acompanhar uma sequência de atendimentos que envolviam de três a quatro especialidades (fisioterapia motora, fisiotera- pia respiratória, terapia ocupacional, fonoaudiologia e nutrição), os atendimentos de serviço social geralmente aconteciam no final do turno quando o responsável pela criança solicitava alguma declaração para apresentar a secretaria de saúde de seu município de origem. Essas declarações serviam para tratar de questões relativas ao transporte até à unidade ou no acesso a insumos como fórmulas lácteas especiais, ou medicamentos. Por razões obvias, não acompanhei as sessões de atendimento psicoterápico.

A minha identidade de psicólogo passou com o tempo a suplantar a figura ambígua do pesquisador, era constantemente solicitado a emitir posicionamentos sobre os casos nas reuniões de equipe. Pessoalmente, não acredito na figura de um pesquisador neutro e acredito que a relação do pesquisador é uma relação humana, que precisa de vínculos, confiança e um certo grau de mutualidade. A minha história profissional faz parte de quem sou, de forma que cuidadosamente, não me furtei a me posicionar quando era solicitado.

A reafirmação do lugar de psicólogo também servia para lidar com outro lugar de confusão que era o de “professor de medicina”, também carregado de esteriótipos e expectativas, não sendo raros os momentos em que precisavam relembrar que eu não era médico e que compartilhava do estranhamento sobre a interpretação de ressonâncias e tomografias computadorizadas e que não poderia dar uma opinião técnica se o Depakene6era um anticonvulsivante mais eficaz do que o Keppra7.