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3.4 TÉCNICAS E PROCEDIMENTOS

3.4.3 As conversas informais

O cotidiano de uma pesquisa que se utiliza de um processo de observação participante é prioritariamente, chegar, sentar-se ao lado de uma pessoa e iniciar ou presenciar um diálogo. No nosso caso, as conversas aconteciam na sala de espera, segurando uma sonda quando as mães preparavam uma forma láctea, ou sentado no tatame da fisioterapia quando a criança era aspirada durante uma sessão de fisioterapia respiratória.

Havia alguns momentos de tensão quando uma criança chegava mais “secretiva” e com dificuldade de respirar ou quando se abordava algum tema mais mobilizador como a necessidade 10 A TV Asa Branca é filiada a Rede Globo Nordeste e tem abrangência de sinal no Agreste Pernambucano.

de uso de uma sonda, mas no cotidiano os espaços das terapias eram cenários de todo tipo de conversa, de trocas de receitas a um novo corte de cabelo, passando por dificuldades familiares ou a possibilidade de que o marido viesse a perder o emprego porque faltou ao trabalho para levar a filha a um tratamento em Recife.

Conversar é uma das maneiras pelo meio das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações que estabelecem no cotidiano. Com base na abordagem da produção de sentidos (. . . ), podemos afirmar que as conversas são práticas discursivas., compreendidas como linguagem em ação. Considerando, ainda, a informalidade das situações em que ocorrem, as conversas representam modalidades privilegiadas para o estudo da produção de sentidos(MENEGON, 1997, p. 216) .

Apesar da informalidade da situação, a minha presença naquele espaço, também era um fator que estimulava outro tipo de conversa. Sempre que me apresentava a uma nova família outra mãe já conhecida provocava uma reação com a frase “conta a tua história” ou “conta como foi a cirurgia dela“ ou ainda ”ele quer saber dos pais“.

A presença da UPAE se incorporava ao cotidiano das famílias, mas os temas nem sempre versavam sobre o cuidado ou tratamento das crianças. Se conversava sobre receitas de alimentos, sobre o São João, sobre a feira e os lugares mais baratos para comprar sulanca.

Referente ao processo de registro, diferente das entrevistas que foram gravadas, no caso das conversas informais eu precisava me valer da minha própria memória para realizar os registros dos diálogos nos diários de pesquisa.

3.5 ORGANIZAÇÃO E ANÁLISE DO MATERIAL PRODUZIDO

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Era no momento da trans- crição que atribuímos os nomes fictícios aos entrevistados e entrevistadas, tomando o cuidado auxiliar para que nenhum atributo das transcrições pudesse gerar a identificação. Por exemplo, no caso dos profissionais, nos trechos destacados, foram omitidas as informações sobre a profissão dos participantes da pesquisa, o que dificultaria uma eventual identificação dos mesmos.

Com base em todo o material transcrito e impresso realizei uma primeira leitura flu- tuante que me permitiu recordar todo o processo de campo e preencher algumas lacunas que foram posteriormente preenchidas.

Retomando o conceito de experiência de Joan Scott, gostaria de destacar o trecho, quando ela aponta a necessidade que o historiador se ocupe no seu processo de análise, não da reprodução do conhecimento adquirido pela experiência, mas sim a análise da produção desse conhecimento: Experiência é sempre e imediatamente algo já interpretado e algo que precisa de interpretação. O que conta como experiência não é auto-evidente nem direto, é sempre contestado e sempre político. (. . . ) Também não pode garantir a neutralidade do historiador, pois, decidir quais categorias se deve historicizar é inevitavelmente político, estão necessariamente ligados ao reconhecimento do lugar do historiador na produção do conhecimento(SCOTT, 1998, p. 51) .

Tomamos a liberdade de substituir o lugar de ’historiador“ pelo de psicologo social na tentativa de interpretar as experiências provenientes do processo da pesquisa. Isso implica um processo de retorno aos Diários de pesquisa, trazendo agora um segundo ou terceiro olhar para a experiência anteriormente vivida. É nesse processo de releitura dos Diários que se reconhece o estranhamento frente as escolhas efetuadas no momento da observação. Essa releitura dos diários, possibilitou, posteriormente, organizar o processo de observação participante em cinco grandes blocos temáticos:

1) A experiência de pesquisa: As anotações diárias não serviam apenas para a descrição daquilo que eu presenciava ou interagia, era também um espaço de auto-reflexão sobre a pesquisa, abordando a relação que eu estabelecia com aquelas pessoas, instituições e com a própria região. Era nesse momento que eu tentava estabelecer pontes entre a situação vivida pelas famílias e os contextos apresentados. Os elementos presentes nesta parte do Diário de Pesquisa me ajudaram a construir o capítulo inicial da tese em que tento contextualizar o leitor das especificidades das famílias e da região.

2) O cotidiano de atendimentos: A minha principal atividade na UPAE era acompanhar o atendimento das crianças. Também estive em reuniões com a equipe de referência, conversei com as famílias no corredor que funcionava como sala de espera e participei de alguns momentos coletivos chamados pela equipe de “reuniões de empoderamento”. Mas a principal atividade era acompanhar as crianças nas sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e nutrição. Dai surgiram registros sobre a dinâmica dos atendimentos, do estado de saúde das crianças, suas possíveis evoluções e os diálogos que foram desenvolvidos entre as famílias, a equipe e a própria figura do pesquisador. 3) As famílias e os processos de institucionalização: A observação me permitia compreen-

der o significado prático do cuidado naquelas famílias dentro de um ambiente institucional e que impunha uma dinâmica própria. O longo processo de permanência dentro de uma unidade de saúde impactava na necessidade de que as famílias se organizassem para viver parte de seus dias numa organização hospitalar.

4) O pai no cotidiano dos atendimentos: Quando cheguei na UPAE fui informado no primeiro dia de que teria dificuldade para encontrar os pais das crianças. Logo nos primeiros dias fui identificando de que essa ausência precisava ser complexificada. Tínhamos tanto homens, pais das crianças que frequentavam as sessões de terapias, pais que compareciam a unidade, mas não entravam nos consultórios e espaços de atendimento. Além disso, encontrarmos uma presença dos homens nos discursos. Se falava muito sobre os pais, o que marcaria uma espécie de “presença na ausência”. 5) Uma ressignificação do Zika e da síndrome congênita: O hábito de produzir narrativas

cotidianas sobre a observação participante possibilitava uma revisão e reflexão contante sobre o que significava a síndrome congênita como um evento de saúde. Como o que foi

estudado na literatura se reverberava na vida das pessoas. Qual impacto, por exemplo, que gerava o internamento de uma criança numa UTI e aquela família se ausentava do dia a dia da unidade. A síndrome congênita do Zika Vírus ganhava nome, história e vinculações.

Em seguida, precisamos realizar um processo semelhante com as entrevistas realizadas com os terapeutas e com as famílias (mães e pais). Algumas entrevistas foram realizadas num único momento e outras fracionadas em encontros realizados ao longo da pesquisa. Acabamos optando por dividir os elementos constituintes das entrevistas em grupos temáticos ao invés de categorização mais fechada. Havia a preocupação de mantermos o contexto dos enunciados e optamos, no momento da apresentação dos resultados, em manter as falas dentro do contexto dos diálogos.

As entrevistas com os profissionais foram organizadas a partir dos seguintes grupos temáticos:

1) Atuação Profissional: As entrevistas sempre se inciavam com uma recuperação da biografia profissional do terapeuta. Buscávamos elementos remetem a história de forma- ção do profissional e que interferem na forma como eles olham para as questões. Foi a partir dessas informações que consegui situar e compreender como a síndrome congênita do Zika Vírus se relacionava com outras síndromes e condições de saúde nas crianças. Os profissionais abordavam o prognóstico e os desafios técnicos referentes a SCZV. 2) O Risco: Os familiares não costumavam abordarem a possibilidade de desfechos nega-

tivos com seus filhos e filhas, na verdade, o porvir era raramente citado, as famílias se centravam na história recente familiar e de como o nascimento da criança trouxe uma transformação de suas vidas e no presente no cotidiano e nas estratégias que tinham que desenvolver. Nas famílias o risco surgia só a partir de um evento especifico: a necessidade de uma cirurgia trazia o risco de morte, presente no procedimento. Já no caso dos profis- sionais o risco surgia de forma cotidiana, era o risco de bronco aspiração, de engasgo, de convulsões. Nas entrevistas surgiam as menções aos “termos de responsabilidade” documentos que eram assinados pelos familiares que se recusavam ou postergavam a adotar um procedimento recomendado pela equipe e acarretaria riscos para a criança. 3) A instituição: A UPAE é uma unidade de saúde que atende unicamente pelo Sistema

Único de Saúde, mas que tem a administração gerida por uma Organização Social (OS). Durante a realização da nossa pesquisa houve uma mudança na organização que gerenciava a unidade, o que se constituiu como um motivo de tensão ao longo de meses. A dinâmica institucional também se fazia presente na divisão de atribuições dos terapeutas e nas definições de metas de atendimento.

4) Os atendimentos: Aqui focamos a dinâmica dos atendimentos. Que técnicas e procedi- mentos são empregados e como eles devem atuar no desenvolvimento e reabilitação da criança.

5) As famílias: Aqui foi abordado a relação dos profissionais com as famílias. A convivência semanal e ao longo dos anos possibilitou o surgimento de vínculos, expectativas e conflitos entre profissionais e familiares.

É justamente no contexto das entrevistas com os profissionais de saúde que a questão da ausência paterna é abordada e complementada com o conteúdo das conversas informais e da observação participante. Os pais e mães abordados nas entrevistas trouxeram poucos elementos sobre o tema da ausência paterna, justamente por serem constituintes de famílias que mantinham a convivência cotidiana com o pai.

A experiência de paternidade é o objeto central do nosso estudo, mas era fundamen- tal também ouvir as mulheres, mães das crianças com síndrome congênita do Zika Vírus. É interessante destacar que as particularidades evocadas pelas mães.

1) A Necessidade de Mobilização: Neste recorte temos os elementos que falam de processo de reivindicação de insumos e serviços necessários a sobrevivência e bem-estar das crianças. Elementos como garantia de transporte, alimentos, BPC e moradia são objetos de mobilização das famílias. Surge tanto uma mobilização ancorada em organizações e grupos de mães, como uma mobilização mais individualizada e presente principalmente nos municípios menores.

2) O Cuidado fora de casa: São conteúdos relativos aos serviços e profissionais de saúde, de onde surgem conflitos e divergências de opiniões, mas também vínculos e parcerias. Também é o espaço onde é abordado as relações entre o cuidado especializado proveniente do setor saúde e o cuidado doméstico. Por exemplo, temos o manejo das convulsões, os cuidados pós-cirúrgicos, as dosagens de medicamentos e a manutenção das sondas. 3) O cuidado dentro de casa: O cotidiano de cuidado no ambiente doméstico e forma

como se misturam atribuições comuns a qualquer criança como alimentar e higienizar com preocupações específicas como a aferição de sinais vitais. O processo em casa de negociação e tomada de decisão também é abordado.

4) O Suporte: O suporte envolvia uma rede de cuidadores que iam além das mães. Englo- bava a família extensa e alguns amigos. O suporte também envolvia a fé e buscava dar um sentido através dos domínios espirituais e religiosos.

5) A descoberta: O nascimento da criança é um ponto reconhecido como de transformação numa trajetória de vida. A família tem suas explicações próprias para a condição da criança e que não correspondem necessariamente as hipóteses difundidas pela ciência. Existia todo um cuidado em recuperar com detalhas os momentos do pré-natal, do parto e

da descoberta de que o filho ou a filha tinham a SCZV. As mães traziam também a forma como a notícia foi dada pelos profissionais de saúde e as reações que ocorreram no pai da criança e no restante da família.

Finalmente, tivemos a organização dos temas abordados nas entrevistas com os pais. Por ser o objeto central do nosso trabalho, vamos trabalhar com maior ênfase nesse conteúdo, que vai alimentar os capítulos seguintes da nossa discussão. Com exceção da primeira seção da discussão quando vamos problematizar a questão das ausências:

1) Interdições e Impedimentos: Nestes trechos, os homens focavam principalmente as limitações provocadas pela SCZV em seus filhos. O que o filho não conseguiria fazer ou ser no futuro. Outra dimensão de impedimento era a dificuldade desse homem em encontrar meios para canalizar o seu sofrimento frente a condição do filho, a necessidade de se manter forte a atuar como sustentação da família.

2) A transformação: Como a notícia do nascimento de um filho com uma síndrome grave acarretaria uma mudança no curso de vida pessoal e da família.

3) O Transcendental: Os elementos de fé e de espiritualidade serviam tanto como apoio para esse homem como também possibilitavam uma explicação sobre o lugar daquela criança em suas vidas e aproximava aquela experiência a noção de missão.

4) O Sensível: A oportunidade de trazer as dimensões de sofrimento, de angústia.

5) O Cuidado fora de casa: A relação com os serviços de saúde, com os profissionais. A forma como a instituição, suas práticas e regras atravessava o cotidiano de cuidado que exerciam com seus filhos e filhas.

6) O cuidado dentro de casa: Elementos cotidianos como monitoramento de sinais vitais, padrões de sono etc. Também a necessidade de conciliar as demandas profissionais e o cuidado com a criança. O processo de negociação doméstica e tomada de decisões que impactavam na vida do filho ou filha.