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4.4 A QUESTÃO DA AUSÊNCIA PATERNA: DESCREVENDO ALGUMAS

4.4.1 Ele só vai ver a filha quando pagar a pensão

Era terça-feira, dia 19 junho (2018), o meu segundo dia na UPAE e na sala de espera estavam as crianças em carrinhos ou no colo das mães. Algumas eram alimentadas por sondas. Noto que não havia suporte disponível e as mães esticavam o braço para conseguir dar vazão ao alimento.

Comecei o dia observando as crianças que eram atendidas na fisioterapia, local onde também aconteciam as sessões de terapia ocupacional. As crianças com SCZV apresentavam pro- blemas respiratórios com frequência (a criança está “secretiva” já era um jargão popular entre as mães, que identificavam o desconforto respiratório). Com o frio e as fogueiras, comuns nessa época do ano, os atendimentos em fisioterapia respiratória se tornavam mais frequentes. Acompanho algumas sessões até que me aproximo de Alice que estava do outro lado da sala inciando uma sessão de terapia ocupacional.

Alice é uma menina de dois anos e meio que veio acompanhada de sua mãe Rita. Alice completará três anos em outubro e a família é de Santa Cruz do Capibaribe. O atendimento de Terapia Ocupacional envolve uma estimulação sensorial com pequenos brinquedos que faziam barulho e emitiam luzes coloridas. Depois que me apresentei a terapeuta ocupacional pede para que Rita contasse a sua história.

Conta a tua história era a frase-senha repetida pelas mães e terapeutas durante a minha estada no campo. Acabava funcionando como uma ótima forma de quebrar o gelo e engatar uma conversa.

Alice foi diagnosticada com SCZV quando já estava com três meses de vida. O pai (Carlos) não vive mais com ela. Rita explica que a separação foi motivada pelo estado de Alice, “ele queria um filho saudável e quando ela nasceu foi embora”. Os contatos atuais com o pai de

Alice são feitos só por aplicativos de mensagens.

Rita diz que já faz tempo que Carlos não vê a filha: “não deixo, só quando ele pagar a pensão” diz Rita, a fisioterapeuta interpela, dizendo para ela não fazer isso, que ele era o pai da

menina. Rita confirma e enfatiza a frase anterior de que ele só verá a filha quando resolver a questão da pensão: “Ele foi pro Ceará com outra mulher e depois voltou, agora quer ver a filha”.

Rita hoje vive com outro companheiro, pergunto como é a relação dele com Alice “Ele cuida dela, Ela só dorme com ele. . . acho que ela gosta mais dele do que de mim”. Era uma fala que trazia outra dimensão, outra possibilidade de relação de cuidado entre homens e as crianças com SCZV. E se o pai não fosse o pai biológico?

Depois descobri que essa possibilidade não era bem uma novidade em se tratando de crianças com SCZV. A participação de outros homens, sejam tios, avôs, padastros e atuais companheiros já tinha sido tema de uma conversa que tive com Iolanda, uma das coordenadoras da UMA em Recife que me fez o seguinte apontamento:“Você precisa estudar os padrastos, eles são mais pai do que os pais das crianças”.

Iolanda era um exemplo vivo do que acaba de me falar, pois também vivia com outro companheiro que não é pai biológico de seus dois filhos (o mais velho com SCZV). Iolanda me conta como o seu atual companheiro compartilha com ela as atividades de cuidador de seu filho, participando inclusive de ações políticas junto a UMA.

Foi com surpresa que descobri que já conhecia o atual companheiro de Iolanda, pois o mesmo participou há 15 anos dos grupos de homens jovens promovidos pelo instituto PAPAI, chegando a integrar o grupo Atitude, uma organização juvenil que atuou no início dos anos 2000 na periferia de Recife, abordando questões referente a gênero, violência e sexualidade. Fui recebido com um abraço e a frase: “Ei Ricardo, lembra de mim?”. Felizes reencontros que comprovam a máxima pernambucana de que Recife é a “A Maior Cidade Pequena do Mundo em Linha Reta” (MENDES, 2017).

Era uma situação bem emblemática, o relato de Rita, nos trazia tanto o afastamento do pai biológico como uma relação de cuidado cotidiana entre o seu atual companheiro e sua filha. A questão da vinculação entre homens e crianças e a problematização das certezas biológicas (as vezes nem tão certas assim) foi tema do artigo “A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA” de autoria de Cláudia Fonseca (FONSECA, 2004) que ao focar processos de reconhecimento de paternidade mediados pelo exame de DNA traz uma discussão bem interessante tanto sobre a busca de reconhecimento de paternidade como de processos que buscam anular a condição de pai de uma criança, ou adolescente.

Há homens que, por não terem afinidades com a mulher, rejeitam qualquer relação com o filho; e, contrariamente, existem homens (em particular padrastos) que assumem o status paterno, mesmo sabendo que não existe fundamento biológico nenhum para essa relação. Ao que tudo indica, a biologia nunca foi o sine qua non da paternidade – certamente não da perspectiva dos homens (FONSECA, 2004, p. 19).

Cláudia Fonseca problematizava neste artigo relação entre a conjugalidade e a vivência da paternidade. Essa relação surgia tanto no afastamento do pai biológico do cotidiano de cuidado, após uma separação, como pela aproximação do padrasto que passava a figurar como o cuidador dos filhos de sua esposa. Da relação de cuidado cotidiano eram construídos vínculos e desses vínculos nasciam afetos.

A relação entre o exercício da paternidade e a relação vivida com a parceira também foi estudada por Norma Fuller (FULLER, 2000) que abordou em sua pesquisa a relação de filiação vivenciada entre homem e seus enteados(as). Tomou como referência e objeto de estudo: “os processos de registros das crianças por seus padrastos, que registravam a criança como se fosse seu filho biológico”, processo que Juliana Perucchi abordou e relacionou com as formas não oficiais de filiação, aquelas que chamamos de “adoção a brasileira” (PERUCCHI; TONELI; CATARINA, 2008).

A adoção a brasileira é uma prática que, apesar de ilegal, se dá quando uma pessoa registra uma criança ou adolescente que não é seu filho biológico, mas que também não passou pelos trâmites legais da adoção oficial.

Assumir e criar os filhos da atual companheira se torna algo comum e esperado dentro da nova união que se inicia. O fato de estar dentro de uma união heterossexual e estável contribui para que este homem vivencie o cotidiano de cuidado das crianças e que assuma o lugar de pai, de cuidador. É o memo sistema que justificaria o afastamento do pai biológico do convívio com essa criança.

O que termos é um sistema de pesos e contrapesos entre as vivências da paternidade e da conjugalidade. Um sistema que cria mecanismos de reaproximação daquela família a um modelo de família tradicional e heterossexual:

Em outras palavras, o casamento e, por consequência, a família tradicional são pre- servados como territórios privilegiados de nascimentos e a igualdade real entre todas as nossas crianças mantém-se como um horizonte a perseguir. A incidência de não- reconhecimento paterno no Brasil expressa a resistência cultural e legal em superarmos o heteropatriarcalismo (THURLER, 2006, p. 687).

A partir desse heteropatriarcalismo a palavra do pai sobre quem são seus filhos e filhas tem valor de definição do lugar que eles irão tomar na dinâmica familiar e social. O controle patriarcal sobre a própria prole é analisado já por Max Weber, ao estudar os processos de tomada de decisão sobre o reconhecimento da filiação e que, dentro do direito romano, poderia custar a condição de pessoa livre ou de escravo. Numa analogia livre que nos damos a liberdade de fazer com a expressão o “aborto do homens”, quando o não reconhecimento da paternidade se dá por um ato de vontade. Mas voltando as palavras de Max Weber:

Mas dentro da comunidade doméstica desenvolveu-se certa diferenciação social quando a escravidão assumiu o caráter de uma instituição regular e os vínculos de sangue se tornaram mais reais: os filhos passaram a distinguir-se dos escravos, como submetidos livres (liberi). No entanto, diante da arbitrariedade do detentor do poder, esta parede divisória valia pouco. Só ele decidia quem era seu filho. Segundo o direito romano, ainda nos tempos históricos, podia ele declarar, em princípio, seu escravo o herdeiro (Cliber et heres esto) e vender seu filho como escravo (WEBER, 2012, p.235).

O título da tese de Juliana Perucchi é justamente “Mater semper certa est pater nunquam”, a filiação materna não é posta em dúvida (PERUCCHI; TONELI; CATARINA, 2008). Por outro lado, a paternidade se assentaria num processo de reconhecimento (ou não!), protagonizado pelos

homens, processo esse que seria uma das principais características do patriarcado (THURLER, 2006) quando o homem pode colocar em dúvida se o fruto daquela gestação é seu filho ou filha. O que as autoras problematizavam era que a paternidade se assentava num processo de reconhecimento, protagonizado pelo próprio homem, processo que, inclusive, superaria os avanços tecnológicos atuais. Mesmo com a popularização dos exames de DNA e os processos de reconhecimento de paternidade, o Brasil ainda contava em 2012, com 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai em seu registro de nascimento (AGÊNCIA CNJ DE NOTÍCIAS; LUIZA DE CARVALHO FARIELLO, 2015). A presença da tecnologia não garantiu que os reconhecimentos fossem, em sua totalidade, realizados.

A dissolução de relacionamentos, a consequente saída dos homens de casa e o afasta- mento dos filhos podiam se sucedidas a uma aproximação desta mulher com outro homem. A manutenção da casa e dos filhos junto a essa mulher e a circulação dos homens foi alvo da análise de Parry Scott ao estudar os ciclos de desenvolvimento doméstico de famílias pobres no bairro dos Coelhos (periferia do Recife) (SCOTT, 1990). Scott analisa as fases de formação do casal dentro de um processo cíclico, com a sucessão das fases de expansão e dissolução do grupo doméstico.

Mas voltado ao nosso relato. Rita traz duas situações que merecem um pouco mais da nossa atenção. A primeira é o movimento de re-aproximação de Carlos pai de Alice e o condicionamento imposto por Rita (“ele só vê a filha se pagar a pensão”). Num primeiro momento essa frase reforça como esta paternidade está relacionada a afirmação do lugar de provedor (e ao direito da criança em ter suas necessidades básicas atendidas), mesmo que a demanda afetiva se faça presente: “ele disse que sente saudade da filha” ou na interpelação da terapeuta: “você não pode impedir que ele veja a filha, ele é pai!”.

O segundo elemento, é a justificativa inicialmente elaborada por Marcos quando foi embora (“você me deu um filho doente). Um elemento que será analisado em seguida.