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Zika Vírus, febre do Zika, microcefalia e síndrome congênita do Zika Vírus são quatro conceitos que mesmo estando relacionados possuem distinções que podem causar confusão ao leitor. Antes de discutirmos os detalhes epidemiológicos, clínicos e humanos referentes ao estudo precisamos diferenciar os termos e a forma como são empregados no decorrer do texto.

Como o nosso estudo não é um ensaio em virologia, entomologia ou mesmo clinica médica, faremos uma apresentação sobre o tema que tenta ser precisa, mas não exaustiva. Apenas algumas informações para situar o leitor ou a leitora sobre o tema, que até recentemente foi alvo de notícias falsas e contraditórias.

O Zika foi alvo de tantas notícias falsas que, no início de 2016, o Ministério da Saúde precisou se posicionar oficialmente a respeito de boatos que associavam o nascimento das crianças com síndrome congênita a exposição de gestantes a lotes vencidos de vacinas con- tra rubéola (NOTÍCIAS, 2016), vacinas que inclusive não foram administradas as gestantes. De forma semelhante surgiram boatos que associavam a síndrome que acometia as crianças as bactérias utilizadas no controle dos vetores, por mosquitos geneticamente modificados ou mesmo estéreis (OPAS, 2016).

Iniciaremos pelos Zika Vírus: Trata-se de um vírus pertencente à família Flaviviridae (do latim flavi, amarelo) mesma família de agentes responsáveis por pelo menos 40 outras patologias como a dengue, chikungunya, febre do Nilo Ocidental e febre-amarela. O vírus foi identificado pela primeira vez em 1947 por pesquisadores liderados pelo entomologista escocês Alexander John Haddow e que monitoravam casos de febre-amarela em macacos do tipo Rhesusque viviam na floresta Zika, situada em Uganda. Após a identificação do vírus em animais, no ano 1968, foi registrada a primeira infecção em humanos residentes na Nigéria (HAYES, 2009).

Figura 9 – Alexander John Haddow e equipe na Floresta Zika, Uganda, 1947.

Fonte: University of Glasgow - https://www.gla.ac.uk/myglasgow/library/collections/medicalhumanities/zika/

Trata-se de um RNA Vírus, também chamado de arbovírus (de arthropod borne virus) e transmitido por vários artrópodes (mosquitos e carrapatos) com destaque para o Aedes albo- pictuse Aedes aegypti. No Brasil, estudos da Fundação Oswaldo Cruz realizados em Recife apontam também para Culex quinquefasciatus (conhecido no Nordeste como muriçoca) como outro vetor possível do Zika Vírus (GUEDES et al., 2017).

A introdução do cúlex tem uma importância que vai além da incorporação de um novo vetor. Diferente do Aedes aegypti, a muriçoca tem o sue ciclo de reprodução associado a focos de água suja, sempre presentes em localidades com deficiência ou inexistência de serviços de saneamento básico. A presença do culex aproximava ainda mais a epidemia das zonas mais pobres da cidade, revelando como é classista e racista a máxima de que o mosquito é democrático e que não vê cor ou classe social.

Figura 10 – Caderno de Anotações de Alexander John Haddow com a anotação sobre a descoberta do Zika Vírus em vermelho

Fonte: University of Glasgow - https://www.gla.ac.uk/myglasgow/library/collections/medicalhumanities/zika/

Apesar de menos frequente também foram reportadas transmissões por via sexual, pelo leite materno e por transfusões de sangue (PINTO JUNIOR et al., 2015). De tal forma a prevenção da transmissão do Zika Vírus por práticas sexuais passa a constar em documentos e manuais da Organização Mundial da Saúde (ORGANIZACÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2016) e do Ministério da Saúde do Brasil (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016).

É importante ressaltar que frente o agente biológico Zika Vírus, se criou um fato social em torno do vírus e dos vetores envolvidos. Algo que mobilizava pessoas em comunidades em torno de focos, repelentes e mosquiteiros. A gestação, evento do curso da vida, foi permeada de temores e expectativas.

O Zika Vírus tornou-se, numa linguagem antropológica, um fato social total, e como tal reflete uma multiplicidade de fatos e significados que vão desde a relação estabe- lecida com o mosquito (um ser não humano) a um dos atos humanos mais básico, o nascimento(SILVA; MATOS; QUADROS, 2017., p. 225) .

O ministro da saúde1 recomentou que as mulheres não engravidassem no período de epidemia, segundo as palavras do próprio ministro e publicadas na imprensa: “Sexo é para amador, gravidez é para profissional. A pessoa que vai engravidar precisa tomar cuidados” (CANCIAN, 1 Ricardo José Magalhães Barros engenheiro civil, empresário e político brasileiro. Foi Ministro da Saúde durante o Governo Michel Temer no período de 12 de maio de 2016 até 2 de abril de 2018. Além das declarações referentes as gestações no período de epidemia de Zika fez afirmações específicas sobre a menor participação dos homens nos serviços de saúde: “É uma questão de hábito, de cultura. Até porque os homens trabalham mais, são os provedores da maioria das famílias. Eles não acham tempo para se dedicar à saúde preventiva” (CANCIAN, 2016)

2015) posicionamentos que foram imediatamente rebatidos pelos movimentos sociais que argumentavam que nem sempre a mulher tinha os meios necessários para evitar uma gravidez indesejada e que a orientação se resumia ao controle dos corpos das mulheres (PORTO; COSTA, 2017).

Mulheres com maior poder aquisitivo viajaram e permaneceram no exterior durante todo o período gestacional e só retornaram ao Brasil com os bebês nos braços (CARDOSO; CÂMARA; FIORITO, 2017). Para o restante da população restava uma rotina de apreensão, mosquiteiros, roupas de manga longa (com as altas temperaturas do Nordeste) e repelentes (FANTÁSTICO, 2016). Nas maternidades a pergunta sobre o tamanho da cabeça do recém-nascido se tornou frequente nos momentos de pós-parto.

Já a febre do Zika (popularmente chamada de Zika) é uma doença febril aguda, como dengue e a chikungunya. A zika é caracterizada por manchas vermelhas na pele (exantema maculopapular), febre, dores pelo corpo (mialgia), dor de cabeça (cefaleia) e coceira pelo corpo (purido).

Até o momento da epidemia de 2015, a literatura apresentava a febre do Zika como uma doença de apresentação branda e autolimitada (LUZ; SANTOS; VIEIRA, 2015). Antes do surgimento dos casos da síndrome congênita a única complicação de importância relacionada a febre do Zika eram esporádicos caso de Síndrome de Guillain-Barré. Provocada por uma variedade de agentes a síndrome de Guillan-Barré é caracterizada por fraqueza muscular ou paralisia em ambos os lados do corpo (BENETI; SILVA, 2006).

A microcefalia seria uma malformação congênita, que teria como principal característica a apresentação de um perímetro cefálico menor que o esperado para uma criança numa dada idade gestacional ou pós-nascimento. Essa diminuição no perímetro estaria acompanhada por alterações no sistema nervoso central. Observa-se dois tipos principais de microcefalias: 1. microcefalia primária marcada principalmente por causas genéticas como as observadas em “alterações cromossômica provocada por deleções, trissomias e translocações” (OLIVEIRA, 2016). e a 2. microcefalia secundária quando há o desenvolvimento normal do cérebro e durante a gestação ocorrer algum dano causado por eventos com potencial teratogênico como traumas, hemorragias ou infecções (SÁ, 2013), a exemplo de no caso da microcefalia ocasionada pela interferência do Zika Vírus na formação do feto teríamos um exemplo de microcefalia secundária.

Figura 11 – Bebê com microcefalia – comparativo de perímetros cefálicos

Fonte: Brar_j (Creative Commons)

Não era a primeira vez que um evento havia acarretado o nascimento em massa de crianças com algum tipo de malformações. No final dos anos 1950 e início dos 1960, tivemos na Europa, principalmente na Alemanha e na Inglaterra, a “tragédia da Talidomida”, com o nascimento de milhares de crianças com deformidades congênitas, “caracterizadas pelo encurtamento dos ossos longos dos membros superiores e/ou inferiores, com ausência total ou parcial de mãos, pés e/ou dos dedos“ (OLIVEIRA; BERMUDEZ; SOUZA, 1999).

A experiência com a Talidomida, modificou toda a nossa compreensão sobre a utilização de medicamentos com gestantes, mas um novo tipo de ameaça se apresentou, agora tendo um vírus como origem.

Durante o surgimento dos casos relacionados a síndrome congênita do Zika Vírus as notificações dos casos passaram por oscilações, isso porque aconteceram atualizações durante a epidemia dos parâmetros que definiam a faixa do perímetro cefálico que caracterizaria a microcefalia (EICKMANN et al., 2016).

Por exemplo, de 17 de novembro até 12 de dezembro de 2015, caracterizaram-se como portador de microcefalia os nascidos vivos (NV) de 37 a 42 de gestação com perímetro cefálico menor ou igual 33 cm, segundo as evidências da OMS. A partir de 13 de março de 2016 passou-se a considerar os nascidos vivos com 37 ou mais semanas mais de gestação e perímetro cefálico ao nascimento menor, ou igual a 31,5 cm para o sexo feminino e 31,9 cm para o sexo masculino, o que seria menor que 2 desvios-padrão para a idade, segundo as referências da OMS (MELO et al., 2016).

Por fim teríamos por síndrome congênita do Zika Vírus (SCZV) caracterizada por um conjunto mais amplo de sinais e sintomas que envolviam uma série de anormalidades neurológi- cas, destacando-se principalmente uma hipertonia. global grave (as crianças permaneciam com uma rigidez muscular), irritabilidade, hipersensibilidade, convulsões, choro excessivo e distúrbios de deglutição, além de comprometimentos visuais, auditivos, cognitivos e motores (EICKMANN

et al., 2016). A definição passa além dos critérios clínicos pela realização de exames de imagens que identifiquem calcificações e outras alterações características do sistema nervoso central. É importante observar que a síndrome congênita do Zika Vírus pode ser observada em crianças expostas verticalmente ao vírus, mas que não desenvolveram a microcefalia.

Como já abordamos anteriormente, a síndrome congênita do Zika Vírus é a maneira mais precisa para nos referirmos a patologia presente nas crianças e por sequência que define a escolha das famílias e profissionais de saúde participantes da pesquisa. Contudo, no cotidiano das atividades, a forma como essas crianças são reconhecidas pelos profissionais de saúde (incluíndo em documentos oficiais) e pelas próprias famílias é de crianças com microcefalia.

Esse processo de nomeação foi abordado pela equipe do FAGES/UFPE no artigo “Trocas, Gênero, Assimetrias e Alinhamentos: experiência etnográfica com mães e crianças com síndrome congênita do Zika” (LIRA; SCOTT; MEIRA, 2017). Em respeito a essa nomeação, manteremos o termo “criança com microcefalia” ou “criança com micro” no decorrer do texto, principalmente quando fizermos referência direta as falas de profissionais e familiares.

A microcefalia também é elemento de reconhecimento externo e de divulgação dos casos nos meios de comunicação, que insistem em manter o termo como definidor da situação das crianças e famílias, as famílias com “micro”. O termo “microcefalia” também ganhou um cunho político e identitário, é através dele que as famílias se reconhecem, que formam grupos (presenciais ou virtuais), que se organizam em redes de solidariedade ou em associações que buscam a garantia de direitos, que estimulam e exigem a criação de novos estudos para as crescentes necessidades de seus filhos e filhas.