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Quando consultamos um dicionário, a definição de paternidade revela uma expressão direta e se refere a “qualidade ou estado de ser pai” (MICHAELIS, 2015). Uma definição bem sintética e que só é complexificada a medida que a paternidade passa a ser adjetivada ganhando os significados acessórios de paternidade adolescente, paternidade ausente, paternidade adotiva etc. São justamente os estudos de gênero que irão propor uma problematização do termo, como o faz Norma Fuller ao focar os diferentes sentidos e práticas de paternidade no Peru:

Definimos paternidade como um campo de práticas e significados culturais e sociais em torno da reprodução e ao vínculo que se estabelece ou não com a sua descendência e no cuidado dos filhos. Esse campo de práticas e significados emerge da do intercruzamento dos discursos que prescrevem valores sobre o que é ser pai (FULLER, 2000, p.36).

Sobre a produção internacional relativa a paternidade é interessante destacar a reflexão desenvolvida por Jorge Lyra ao analisar, no momento da sua dissertação, o estado da arte sobre o tema:

O que se observa nesta literatura é que, a partir da década de 1980, a literatura cien- tífica passa a tratar a participação dos homens na esfera privada, especialmente no contexto da sexualidade e direitos reprodutivos. Ocorre uma mudança de visão da não-participação masculina na vida doméstica, com a problematização do machismo, e a busca pela compreensão das condições criadas na sociedade que facilitam ou dificultam o envolvimento do homem na vida familiar (LYRA, 1998, p. 192). Um ano antes, quando finalizava a sua dissertação sobre paternidade na adolescência, ao analisar a “invisibilidade” em que eram submetidos os pais adolescentes no contexto dos serviços de saúde, Jorge Lyra (LYRA, 1997) levanta hipóteses sobre o papel das instituições na retroalimentação da ausência paterna.

Jorge Lyra (1997), também aponta que esforços que promovam uma maior participação dos homens em vários aspectos da vida doméstica (dentre eles o cuidado com os filhos) influencia nas relações de gênero, alterando um padrão extremamente cristalizado de mulheres/privado e homens/público. Para mostrar que ações desse tipo são possíveis constrói, já na dissertação, a ideia de um programa de apoio aos pais adolescentes, no que ganharia corpo futuramente no projeto “Paternidade, Direito, Desejo e Compromisso”, desenvolvido pelo Instituto PAPAI.

As teorias e reflexões feministas contribuem numa reflexão que apontam para uma mudança de compreensão de como as instituições operam na manutenção de uma ordem de gênero, ao mesmo tempo, que mostra, através de exemplos e propostas de intervenção, de que outros arranjos são possíveis.

Saí uma visão que encapsula o “machismo em cada homem” para uma visão mais complexa e voltada para a compreensão das condições criadas pela sociedade que podem facilitar ou dificultar a participação dos homens nas esferas de cuidado. O que destaca a antropóloga Marion Teodósio de Quadros:

A participação masculina na vida reprodutiva passa a ser reivindicada/estimulada diante da ideia de ausência do homem nas questões familiares. Esta ausência é entendida como forma de poder, minando a liberdade e autonomia das mulheres, pois, do ponto de vista feminista, as sobrecarrega com os cuidados e as responsabilidades da vida reprodutiva significa uma modalidade de controle do corpo feminino. A maternidade como livre escolha da mulher é sinônimo da autodeterminação e autocontrole sobre seu corpo e não um destino obrigatório, mas a ingerência masculina no campo da reprodução parece se dar pela sua ausência ou falta de envolvimento no trabalho doméstico e nas questões do planejamento familiar e da contracepção (QUADROS, 2004, p. 9). Essa introdução é importante para nos focarmos na questão da paternidade exercida num contexto em que o filho ou a filha apresentam uma, ou múltiplas deficiências.

A Síndrome Congênita do Zika Vírus não é uma deficiência, mas ela se expressa na vida das crianças através de uma série de deficiências. As crianças apresentam deficiências auditivas, visuais, motoras e cognitivas – apesar de nem todas apresentarem todas as modalidades de deficiências simultaneamente – que se expressam numa dimensão de cuidado diferenciado. Essa dimensão nos traz a possibilidade de traçarmos um paralelo com o que já foi escrito com respeito ao exercício da paternidade no contexto das deficiências.

Se por um lado podemos considerar a produção acadêmica sobre paternidade como um campo já consolidado, o mesmo não pode ser dito quando focamos especificamente sobre o

universo de pais de filhos com deficiência. Num exercício de revisão sistemática de literatura realizado em 2010 Camila Henn e Maúcha Sifuentes, identificaram, em bases nacionais e internacionais, 415 artigos referentes a paternidade correlacionada a uma série de descritores relacionados a temática da deficiência (HENN; SIFUENTES, 2012), dentre esses trabalhos apenas 22% (90 trabalhos) foram selecionados, após uma leitura exaustiva, por realmente se referirem a dinâmica da relação entre pais e crianças com deficiência.

O artigo de Henn e Sifuentes também contribui com informações relevantes sobre o impacto na dinâmica familiar da chegada da criança com deficiência (e que também se configura como uma das preocupações desse projeto de pesquisa). Segundo essas autoras, os resultados são bem variáveis e divergentes apontando tanto para um evento que culminaria numa crise e desarmonia do casal, quanto aqueles que se referem a impactos positivos, de que o nascimento acarretou mais ajustamento entre o casal por causa da necessidade maior de compartilharem as atividades cotidianas devido à chegada de um membro da família com deficiência.

Existem ainda os pesquisadores que defendem que a presença de uma criança com defici- ência não acarretaria, necessariamente, em processos disfuncionais na vida do casal. Contudo, os estudos destacam que existe um estresse e uma sobrecarga nas famílias com crianças com deficiência e que essa sobrecarga atinge principalmente as mães.

O estudo ainda apontou para uma grande diferença entre enfoques e metodologias entre estudos internacionais (de base mais quantitativa e focados geralmente em intervenções feitas com os pais, estresse parental e saúde mental e da experiência da paternidade), as pesquisas nacionais, se concentraram em estudos de base qualitativa e focavam principalmente a questão da experiência da paternidade:

Os dados evidenciam que um dos temas de maior destaque no cenário brasileiro e também, em certa medida, nos estudos internacionais, refere-se à experiência de paternidade no contexto das necessidades especiais. De modo geral, grande parte destes aponta a complexidade desta experiência, enfocando possíveis aspectos positivos, como a atribuição de significado para esta vivência particular de ser pai de uma criança com necessidades especiais e a não percepção deste acontecimento como um problema em suas vidas, bem como dificuldades, por questões sociais e do impacto causado nas vidas dos pais (HENN; SIFUENTES, 2012, p. 137).

Ainda dentro da raridade de pesquisas voltadas para a experiência da paternidade no contexto da deficiência, ainda são mais escassos os estudos dedicados a essa discussão a partir de uma perspectiva feminista e de gênero. Por outro lado, existe uma produção expressiva de estudos voltados para a experiência da maternidade com crianças com deficiência em que o lugar quase exclusivo de cuidadoras é problematizado e contextualizado dentro de sistemas de opressão baseados no machismo e no patriarcado.